Na intervenção que foi convidado a fazer na conferência sobre os abusos sexuais de dia 10, o jornalista João Francisco Gomes teceu várias críticas ao modo como a Igreja Católica se relaciona com os média em Portugal. Depois de ter publicado esse texto na íntegra, e também tendo em conta o Dia Mundial das Comunicações Sociais, que a Igreja Católica assinalou no último domingo, 29 de maio, o 7MARGENS convidou vários jornalistas que têm acompanhado a informação religiosa com alguma regularidade a escrever um depoimento sobre o tema. A seguir, o contributo de Joaquim Franco, jornalista da TVI.

Joaquim Franco em Roma, acompanhando o conclave de 2013, na altura em serviço para a SIC. Foto © José Silva
1. Há uma sensação de déjà vu quando refletimos sobre as relações entre a Igreja Católica e os órgãos de comunicação social, maior ainda quando o foco é para a situação em Portugal. Ano após ano, jornadas de comunicação social organizadas pela CEP oscilam entre humores e opiniões dos oradores convidados e alertas assertivos sobre a crescente dificuldade na relação entre dois mundos que precisam de pontos de ligação.
Seria interessante fazer o balanço dessas reflexões que já têm décadas. Houve alguns avanços estruturais, como o reconhecimento da necessidade de uma mais robusta agência oficial – com meios e recursos ainda escassos para as exigências de uma agência fornecedora de serviços temáticos –, a criação de assessorias diocesanas para a comunicação, o desenvolvimento do anuário católico – importante ferramenta para os jornalistas – ou a adaptação tecnológica. Mas estas são opções que se entendem mais como imposição das circunstâncias – a comunicação da Santa Sé tem sido uma referência – do que como resultado das inúmeras e longas conversas nos referidos encontros anuais, para os quais já foram convidados jornalistas de órgãos de comunicação social não-confessionais.
Estes encontros, que, entretanto, foram perdendo a vocação de fronteira para se focarem mais na comunicação interna, conseguiam, ainda assim, concretizar um dos objetivos iniciais: pôr jornalistas a falar com a hierarquia e a hierarquia a ouvir os jornalistas. Quebraram-se alguns preconceitos e colocou-se a questão no devido patamar das relações humanas. O drama é maior quando responsáveis eclesiais entendem a comunicação com os jornalistas como um empecilho que tem de ser suportado em nome da “missão” e não como um processo inevitável, feito de e com pessoas, que exige transparência e respeito mútuos.
2. Nos últimos anos, estes encontros chamaram à reflexão especialistas de marketing e organização de eventos, youtubers e outros atores emergentes na comunicação digital. Embora reconhecendo a importância destas dinâmicas comunicacionais, a essência racional da comunicação social – a mediação jornalística – não pode deixar de ser prioritária. É precisamente na mediação jornalística que a Igreja – que não é uma marca ou uma empresa para estratégias de marketing, apesar de poder usar estes instrumentos – tem revelado fragilidades. Não é um problema de marketing, media training ou de mera “imagem” e desempenho técnico, mas de transparência, linguagem e relação com a realidade jornalística. Ou seja, é um problema de conteúdo. Em muitas dimensões, a mensagem da Igreja sobrevive num estranho e indecifrável comprimento de onda. Se há temas em que não é possível sintonizar as doutrinas com a prática geral na sociedade, sobram abordagens nas quais a Igreja podia e devia ter uma palavra assertiva e dianteira. Não se trata apenas de ouvir este ou aquele bispo a fazer denúncias – os agitadores são muito apreciados mediaticamente… –, mas de assumir que a Igreja (tome-se, como exemplo, o pensamento social cristão) carece de anunciadores e da perspicácia da intervenção social, sob risco de perder respeito e relevância. Evidentemente, só tem legitimidade para pedir contas quem presta contas.
3. Há que perceber o que está em causa: estamos diante de mundos com interesses distintos. A instituição Igreja apresenta-se como baluarte moral, com impacto social e político, sem conseguir evitar retratos de profundas incoerências e contradições. O jornalismo rege-se por uma cartilha deontológica, reavalia-se no tempo e na circunstância, incompatível com a falta de transparência, não estando, igualmente, isento de desvios. A instituição Igreja reivindica uma Verdade construtora de uma ética só visível no comportamento dos que se dizem crentes. As únicas verdades que o jornalismo procura são as factuais e contextualizadas, o que, no tempo atual, amplia a importância da imagem e da emoção.
As estruturas religiosas, como outras, são cada vez mais escrutinadas e tendem a ser tratadas pelos aspetos incidentais e emotivos – as devoções quentes, como Fátima, a emoção dos crentes, o que diz o Papa ou outros líderes religiosos com relevância política, abusos sexuais, temas de fratura social e cultural… –, obrigando a uma simplificação ou banalização narrativa que pode empobrecer o fenómeno religioso e o distancia, até, de novas e crescentes experiências espirituais, mais individuais e discretas, desinstitucionalizadas, com ambientes e estilos de vida multifacetados, metamorfoses culturais que acabam por assegurar novas convivências e alargar o espectro da experiência religiosa.
4. É evidente que a falta de sintonia se deve também à incapacidade de as redações garantirem jornalismo especializado nos temas religiosos. O desconhecimento das linguagens, da história e das características das estruturas religiosas ou do fenómeno religioso ergue barreiras intransponíveis de incompreensão. A consequência é a desvalorização de outros aspetos relevantes da experiência religiosa. A religião é remetida para os últimos planos das prioridades editoriais. Os poucos jornalistas que se empenham no assunto enfrentam esse preconceito nas redações. Seria importante que as estruturas religiosas entendessem esta situação, até para balizarem expectativas e redefinirem estratégias, colocando a experiência religiosa noutro patamar de interesse editorial. Isto leva-nos a outro equívoco: a ideia de que há um “jornalismo religioso”. Como acontece com outras áreas editoriais, não há um “jornalismo religioso”, há jornalistas que acompanham o fenómeno e a vida das instituições religiosas.
As ferramentas jornalísticas podem estar ao serviço de um qualquer proselitismo, mas o exercício jornalístico não é compatível com proselitismo ou qualquer outro interesse que contrarie os preceitos deontológicos.
A Igreja tem utilizado os meios adequados para estar em quase todas as frentes da comunicação, mas a utilização destes numa perspetiva meramente instrumental não será a melhor forma de comunicar no mundo secularizado. Se a velocidade da comunicação não aceita demoras ou hesitações, exigindo a disponibilidade dos responsáveis, o risco de confundir comunicação com propaganda e marketing é maior. Não há fórmulas exatas, mas percebe-se que a Igreja tem de ir mais longe na comunicação, sem prejuízo de repensar e até solidificar os seus meios próprios.
5. O escândalo de abusos sexuais em contexto católico, do qual se conhece apenas a ponta de um iceberg em Portugal, é simultaneamente uma consequência e uma prova de fogo, porque, como era expectável, abre mais feridas, exigindo clarividência e frontalidade. Durante muito tempo, demasiado tempo, parte do episcopado desvalorizou o problema alegando que seria estatisticamente insignificante. Os primeiros dados da Comissão Independente estão aí, a revelar o contrário. Ao “poder” eclesial que permitiu a humilhação, devia corresponder agora o “poder” da humildade e do serviço à verdade.
Joaquim Franco é jornalista da TVI; trabalhou, entre outros média, na SIC durante 20 anos, acompanhando em ambos a informação sobre o fenómeno religioso.