
“Não vejo, por isso, como possa ser possível afirmar que a deficiência humana decorre da vontade de Deus. A meu ver, tal não é possível sem afetarmos profundamente a imagem de Deus que o Evangelho nos propõe.” Foto © Ivan Samkov / Pexels
Cara Alice,
Foi com muito apreço que li o seu comentário ao meu artigo.
Agradeço-lhe, desde já, a atenção com que o leu. Devo dizer-lhe que, em princípio, subscrevo quase tudo (ou mesmo tudo) o que refere. Talvez o meu artigo não tenha sido suficientemente esclarecedor sobre a relação entre deficiência humana e vontade de Deus, até porque não era esse o tema sobre o qual incidia.
Subscrevo inteiramente a sua posição – em perfeita sintonia com o Evangelho – de que a deficiência não pode ser interpretada como resultado do castigo divino. Decorre antes, parece-me, da forma imperfeita como a natureza se organiza, exatamente porque a natureza é uma alteridade em relação a Deus e, neste sentido, está repleta de erros, limitações e imperfeições.
Não vejo, por isso, como possa ser possível afirmar que a deficiência humana decorre da vontade de Deus. A meu ver, tal não é possível sem afetarmos profundamente a imagem de Deus que o Evangelho nos propõe. Penso que estamos todos de acordo que, num mundo ideal, inteiramente correspondente ao Reino de Deus (à vontade de Deus), a deficiência humana não existiria e que esta, como a Alice bem refere, “incide sobre capacidades que podem ser limitativas de uma plena participação na vida social”, além de outras consequências. A verdade é que nenhum pai e nenhuma mãe, se o pudessem fazer, escolheriam para o seu filho uma determinada deficiência. Ora se nós, apesar de amarmos de forma muito limitada, não o faríamos, como poderia Deus, no seu amor infinito, decidir atribuir determinada deficiência a um dos seus filhos?
Neste contexto, talvez seja oportuno distinguir a pessoa enquanto tal da deficiência de que é portadora. Decerto que a pessoa, qualquer que ela seja e quaisquer que sejam as suas limitações, foi querida e amada por Deus desde toda a eternidade. Porque para Deus não existe passado, presente e futuro e a sua natureza é ser amor eterno e infinito, temos desde sempre os nossos nomes inscritos no seu coração. É por isso que a pessoa, quaisquer que sejam as suas limitações, tem uma dignidade inalienável, a qual decorre do facto de a sua existência estar intimamente dependente da vontade de Deus. Já o mesmo não me parece ser possível afirmar da deficiência enquanto fator limitativo das capacidades humanas, uma vez que fazê-la depender da vontade de Deus implicaria uma distorção na imagem de Deus, enquanto Pai absolutamente bom, que o Evangelho propõe, ou seja, na sua luminosidade absoluta.
Quando ambos falamos de realização humana, talvez estejamos a referir-nos a coisas diferentes. Decerto que uma pessoa com deficiência pode ser feliz, se for amada e tiver ao seu alcance um ambiente propício à atribuição de sentido para a sua existência. No entanto, isso não exclui o facto da deficiência ser uma inegável limitação a algumas capacidades que se espera que todos os seres humanos tenham (e aqui não falo de deficiência no sentido da nossa imperfeição geral).
Espero que tenha conseguido clarificar um pouco mais o meu pensamento e agradeço mais uma vez a atenção que votou ao meu artigo.
Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.