
“Os grupos paroquiais de ação social ainda são tratados como “assistencialistas” e não promotores de desenvolvimento social”. Foto: associação Virar a Página, em Braga. © Catarina Soares Barbosa.
No artigo publicado em 21 de janeiro, sobre “re-samaritanização”, foi assinalado que a encíclica Fratelli Tutti defende a “re-samaritanização” da ação-intervenção social, com dois objetivos: assumir que o exemplo do “bom samaritano” (cf. Lc 10, 25-37) é intemporal (nºs. 67-68 da encíclica); e afirmar que ele não se limita às relações interpessoais, mas também se aplica à ação-intervenção estrutural (nºs. 186-189, 67, 71, 75, 77-78, 165, 180, 182-183 e 193-197). Dir-se-á que a ajuda direta do Samaritano ocorre nessas relações, e que o recurso ao estalajadeiro simboliza a esfera estrutural: sejam empresas, instituições particulares ou o próprio Estado, com os seus órgãos próprios e inúmeras organizações, bem como a própria ordem internacional.
O alerta de Francisco para três patamares de ação – interpessoal, institucional e estatal – justifica-se plenamente, atendendo à evolução ocorrida a partir, pelo menos, da Idade Média. De facto, no seio da Igreja, foram criadas inúmeras instituições de ação social e quase se fixaram duas imagens bastante discutíveis sobre a missão dela própria no domínio social: a primeira imagem consistiu na substituição da relevância do Samaritano pela do estalajadeiro; a segunda, porventura mais grave, consistiu na visão da Igreja como instância de respostas sociais e não tanto como entidade inserida na humanidade fragilizada, cooperando, com ela e com cada pessoa, na procura das soluções possíveis para os seus males e influenciando os centros de decisão política ou de outra natureza.
O posicionamento da Igreja, no lado da oferta de serviços e não tanto da procura, dificultou-lhe a aceitação do Estado social que, até certo ponto, foi considerado seu competidor; ao mesmo tempo, deu origem a que fosse descurado o desenvolvimento e a qualificação dos grupos paroquiais de ação social, em contraste com a importância atribuída aos centros sociais paroquiais, às santas casas da misericórdia e a outras instituições.
Provavelmente, o número daqueles grupos, com o mínimo de organização, qualificação e enquadramento, é inferior ao de instituições eclesiais de ação social; mas, enquanto eles se constituem e funcionam quase sem encargos financeiros, as instituições requerem vultosos recursos. O menosprezo dos grupos, face às instituições, não fica por aqui: eles ainda são tratados como “assistencialistas” e não promotores de desenvolvimento social; quase são condenados à dispensabilidade por se dedicaram aos casos e problemas sociais não resolvidos pelas instituições, eclesiais ou outras, nem pelo Estado central, regional e autárquico nem pela sócioeconomia no seu todo.
Sabemos que esta evolução factual, em desfavor dos grupos de ação social, não resultou de opções doutrinárias, mas da própria inércia histórica. Por isso, uma das grandes orientações estratégicas, para a ação-intervenção social cristã no futuro, deveria consistir na assunção consequente dos três patamares de ação atrás referidos: o básico, próprio das relações interpessoais, onde atuam os grupos paroquiais e as conferências vicentinas; o intermédio, próprio das instituições; e o estatal, próprio dos diferentes órgãos e organizações de natureza estatal.
Há que assumir os três patamares, em pé de igualdade, visando sempre os três objetivos da missão da Igreja no domínio social: o cuidado direto e permanente às pessoas necessitadas; as respostas necessárias e possíveis através das instituições particulares – “corpos intermédios”; e a intervenção nas estruturas políticas ou de outra natureza (cf.: Bento XVI, Deus Caritas Est, 2005, nº. 29; Conferência Episcopal Portuguesa, Instrução Pastoral A Ação Social da Igreja, 1997, nºs. 1, 6, 11-13, 24 e 30; e Pastoral Social – Que Objetivos? – Textos da II Semana Nacional de Pastoral Social (Fátima – 1984).
Acácio Catarino é consultor social