
“Em todas as religiões e espiritualidades há ritos de purificação onde podemos ressurgir para uma nova vida.” Foto © Joshua Earl / Unsplash.
Habituamo-nos a tudo na vida, até a ter a alma em frangalhos, cheia de dores, pisaduras, feridas novas e velhas, algumas ainda com sangue a jorrar. Como são dores na alma, não sabemos o que fazer com elas e vamo-las mascarando com distrações várias, pecúlios, alegrias breves e ilusões de felicidade, numa superficialidade tão mais evidente quanto mais fundo é o abismo que levamos dentro.
São deste género as ofensas imperdoáveis, os rancores entranhados, o orgulho desdenhoso e implacável, as memórias graníticas que erguem muralhas intransponíveis dentro de nós. Como são os desrespeitos, os ostracismos, os aviltamentos, as animalidades e todas as formas de abusos. Como são todos os desamores.
Nesse negro isolado e frio, vamos mirrando. Passam os minutos, os dias, os meses e os anos e o acumulado das dores vai-nos transformando em seres que carregam tanto passado que se tornam incapazes de viver o presente sem ser por referência a uma dor qualquer que aí resolva despertar.
Podemos chamar a isto “pecado”. Pecar é ficar aquém do amor, dado e recebido. É cristalizar, montar estandartes e trincheiras, reduzir cada vez mais o próprio mundo; e a dada altura não conseguir reconhecer sequer o bom, o belo e o verdadeiro. É, para quem crê, não corresponder à graça do Amor maior em cada momento. É a morte da alma.
Em todas as religiões e espiritualidades há ritos de purificação onde podemos ressurgir para uma nova vida. Enfrentar as feridas chamando-as pelo seu nome é o primeiro passo para a cura. E também desejar curar-se, lembrando a paz transparente da antiga inocência, que não tem tempo nem lugar.
Somos chamados a ver com verdade, a ver por inteiro. E a revelar, como cartas de jogar voltadas para cima, sem deixar cair nenhuma nem lhe mudar o naipe. Um pequeno passo, a coragem desse passo e, depois, a Vida.
É possível sermos restaurados. Às vezes o fundo é tão fundo que achamos não ser possível, mas é possível. O que nos espera é muitíssimo mais do que ousaríamos sonhar, porque nós damos o nosso ridículo nada de criaturas e recebemos o amor infinito do Criador.
Por mais fundo que caiamos, por mais dores que carreguemos, por maiores os desamores, não percamos de vista que somos nada e, por isso, é como exponenciar um zero: nunca tem relevância, desde que o entreguemos.
Esses “rituais de passagem” onde tocamos o divino (a permuta caricatural em que entregamos as misérias e recebemos o Criador), fazem-nos sempre perceber a desproporção entre o que entregamos e o que recebemos, e a consequência é um vendaval de alegria. Ser-se inundado por Deus torna-nos ébrios como aos Apóstolos no dia de Pentecostes.
Percebermos em nós a redenção, essa avalanche que quase sufoca e nos empurra para mil desconhecidos, é efetivamente entrarmos na vida da graça, uma outra dimensão. Uma dimensão onde a liberdade joga um papel essencial em cada momento, tornando a vida plena à medida do que Deus quer.
Não se trata já de ir cumprindo os mandamentos e ajustando aqui e ali à medida dos nossos desejos. Trata-se de estar possuído por Deus, que faz em nós a Sua morada (João 14:19-27) e só querer responder aos seus apelos, na intimidade do coração.
Ter passado pelo inferno que é a ausência de Deus faz-nos perceber que, sim, há inferno. E sentir-se resgatado, redimido, mostra-nos maravilhosamente que, sim, há Céu. Um Céu como não conhecíamos antes do pecado e que nos faz vibrar, dizendo: “Oh! Feliz culpa que nos mereceu tão grande Redentor!” (Precónio Pascal).
A beleza desta nova vida é que nada é decisivo, nada é adquirido, nada é um ganho perene ou uma perda irreparável. E nunca é tarde para renascer, mesmo que, imersos no Amor, ecoe em nós o grito de Santo Agostinho: “Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova. Tarde Te amei”…
Dina Matos Ferreira é consultora e docente universitária