
Jair Bolsonaro (aqui, numa fotografia de 24 de Abril de 2019): “O Presidente afirmou que às Forças Armadas cabe a escolha entre ditadura e democracia. Como nos situamos?” Foto: Isac Nóbrega/PR/Wikimedia Commons.
No final dos anos 70 no Brasil que conheci, os evangélicos eram designados crentes. As chamadas Assembleias de Deus, maioritariamente batistas, tinham altifalantes alastrando cânticos pelos subúrbios das grandes cidades ou pelos destinos da moda, em temporadas de verões, festas, feriados.
Em São Paulo, lembro-me de ouvir conversas mundanas sobre empregadas domésticas. As crentes eram as preferidas como internas para servir em casas de família, de carteira de trabalho assinada. Usavam cabelo comprido preso na cabeça, não fumavam, não bebiam, não pintavam as unhas, usavam saias e não calças. Não ouviam programa de rádio nem viam programas de auditório na tv. Não deixavam entrar homem no quarto dos fundos, raramente namoravam. Saíam para o culto na igreja e pouco mais.
Quando nele fui iniciada, todo esse universo foi para mim conhecimento, estranheza, espanto. Na distância que nos separa, o contexto de brasilidade era extraordinário, tão diferente daquele, católico, em que por cultura e tradição fui formada.
A situação atual da Igreja Católica no Brasil dá que pensar, quando revisitamos a memória dos padres Nóbrega e Anchieta, em percurso de catequização. Ou se retomarmos a figura do Padre António Vieira, como se não tivesse deixado palavra e obra, marca e traço, doutrina universal. Situação a pensar mais ainda agora, a propósito das notícias constantes, com a incidência da investigação científica, o enunciado de falhas no cenário de catástrofe em Manaus e Roraima. A cultura de morte, a criminosa omissão do governo federal, o apelo de socorro pelo amor de Deus, na angústia dos bispos da Amazónia e dos Estados do Norte.
Descatolização é hoje palavra expressiva na inteligência brasileira, quando se fala de vivência religiosa e ou experiência de espiritualidade, em identidade reconhecida de invocação ao sagrado, ao mistério, aos desígnios de Deus. No povo flagelado por desigualdades, excessos, agressões, acidentes, a fronteira entre vida e morte é invisível, a morte matada ou a morte morrida de João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa acontecem, sem cuidado, motivo ou previsão. Desencadeados pela exuberância da própria natureza, os destinos de cada um e cada qual não se anunciam por lógica ou razão.
A que atualidade assistimos no plano estratégico, social, político, se tentarmos seguir o curso dos interesses, dos poderes, das influências? Nas peripécias da crise, é raro o dia em que não haja surpreendente espetáculo. Uma frase. Uma atitude. Um desconcerto. Uma grosseria. Uma afronta. Uma ameaça. Como essa, recente, em que o Presidente Bolsonaro afirmou que às Forças Armadas cabe a escolha entre ditadura e democracia. Como nos situamos?
As transformações de vivência religiosa naquele em que 95% da população consagrava o Brasil como maior país católico do mundo são bom tema de atenção para a velocidade dos acontecimentos. Hoje, as religiões evangélicas ampliam-se nas favelas e municípios metropolitanos. Crescem as igrejas nos subúrbios, onde os moradores, retirantes, migrantes não têm acesso a paróquias, onde a Igreja Católica é formal, demorada, distante.
Já em 2009, uma investigação da Fundação Getúlio Vargas observava a perda da Igreja Católica para igrejas pentecostais nas periferias das grandes cidades. Em 2018, segundo avaliação da Datafolha, numa população de 210 milhões, o Brasil tinha 56% de católicos, 30% de evangélicos 7% sem religião, 7% de praticantes de outras confissões. De acordo com resultados atuais do IDP, Instituto Data Popular, nos Estados do Sul, só 44% de jovens de 16 a 24 anos se dizem católicos. Admite-se a quase certeza de que em 2040 a população evangélica no Brasil seja de mais de 90 milhões de fiéis.
Ainda, a concretizar a expressão poderosa de apoio político para eleição do Presidente Jair Bolsonaro, texto do Jornal do Commercio registou o número triplicado de assentos com voz na bancada evangélica, 38% dos 513 deputados do Congresso Nacional, apostados em situações de poder, cargos, prestígio, mordomia, privilégios. Estes e também outros, senadores e deputados fiéis de igrejas evangélicas não integrados na bancada, têm influência e força crescente. Defendem os valores mais conservadores de família, recusam propostas de lei para direitos de minorias, mulheres, indígenas, negros, manifestam-se contra todos os possíveis temas de comportamento e sexualidade.
Quando em sequência do Sínodo da Amazónia, foi pelo Papa Francisco adiada a solução para a ordenação de homens casados, mais evidente se tornou a falta de padres, com o aumento crescente das igrejas evangélicas nos Estados do Norte. Entretanto, 56% dos católicos brasileiros dizem-se contra o celibato, 78% a favor da ordenação das mulheres. E, bem explícito no sinal dos tempos, 64% querem que a religião seja assunto excluído da política do Governo.
Criada em 1952, quando o Governo de Getúlio Vargas considerou a Igreja Católica uma mais valia para a cultura brasileira, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) envolveu-se nas grandes questões sociais próprias da época. Depois de 1964, passou por conflitos acesos com a ditadura militar. Em 1968, ano de maior repressão política, alinhou maioritariamente com a Teologia da Libertação, atuando em comunidades eclesiais de base, pela justiça social.
Nos anos 80, censurada pela Santa Sé, a Teologia da Libertação foi sendo sucedida pelos movimentos de Renovação Carismática, menos politizados, mais centrados nos dons do Espírito Santo, incorporando expressões das igrejas pentecostais. Criando personalidades como os padres Marcelo Rossi ou Fábio de Melo, capazes de mobilizar centenas de milhares de fiéis em estádios e espaços abertos de celebrações. Com 300 membros efetivos, a CNBB divide-se entre os bispos tradicionalistas, que admitem a missa em latim e aqueles que contestam fraturas sociais, crescentes na sociedade brasileira.
Importante para a expressão religiosa no plano político, foi a mais atual notícia do movimento explícito de líderes evangélicos, batistas, luteranos, anglicanos e também católicos, que se uniram em favor da destituição, impeachment, do Presidente Jair Bolsonaro, pela sua responsabilidade criminosa, em face da pandemia de covid-19 no país. Vamos esperar a evolução dos acontecimentos. Constantes acontecimentos, na vertiginosa corrida do tempo brasileiro.
Leonor Xavier é escritora e jornalista e integra o movimento Nós Somos Igreja – Portugal; Laranjeiras em Atenas é o seu último livro.