
Gleis 17, cais ferroviário em Berlim de onde partiam comboios que levavam judeus para os campos de extermínio nazi. Foto © Helena Araújo.
Num dos passeios com o nosso cão, num descampado ao lado do memorial Gleis 17 – que nos lembra as deportações dos judeus berlinenses –, ele meteu conversa com os outros cães e eu meti conversa com os donos. Palavra puxa palavra, começámos a falar do projecto em curso para urbanizar aquele terreno tão jeitoso para os nossos animais correrem à vontade. Querem fazer três prédios, com uma exposição permanente sobre as deportações, um “jardim dos justos” para lembrar aqueles que ajudaram judeus a escapar à implacável máquina do Holocausto, e também mais de 150 apartamentos minúsculos para estudantes.
Há tempos vi o projecto, e fiquei chocada, porque o arquitecto que o desenhou achou muito engraçado dispor três prédios em forma de triângulo (ele diz que é para lembrar a estrela de David), condenando assim duas dúzias de estudantes a viver virados para norte. Oh, que grande artista!…
As pessoas que moram naquela zona estão mais chocadas com outras questões. O projecto não prevê estacionamento, e mesmo sabendo que poucos estudantes berlinenses usam carro hoje em dia, elas temem perder o lugarzinho em frente à sua porta. E depois há o camião do lixo, as festas de estudantes, o barulho…
O barulho era justamente aquilo de que o dono de um dos cães já se queixava por antecipação. Tentei deitar água na fervura, argumentei que os estudantes precisam de casas que possam pagar, mas ele cortou-me a palavra:
– Berlim já tem demasiada gente. Em algum momento é preciso impedir que as pessoas continuem a vir para aqui [eu a pensar: “este até me lembra os portugueses em França que votam Le Pen”]. Além disso – continuou ele – há aí muito apartamento que pode ser usado.
Pelo decorrer da conversa – mas devo ter percebido mal, aliás: só posso ter percebido mal! – pareceu-me que ele estava a sugerir expulsar de Berlim as pessoas que recebem apoios da segurança social e dar as suas casas a outros. Falou-me em números exactos de vários milhões de metros quadrados, tinha-os bem contados.
– Essa gente que em vez de baixar o aquecimento abre a janela! – dizia ele, muito zangado. – O Estado paga tudo, e eles abusam! Ir trabalhar é que não lhes passa pela cabeça. Tantas empresas a precisar de trabalhadores, mas eles não vão. Claro, não precisam. Eu sozinho arranjava trabalho para mais de cem.
– Que trabalho? – perguntei eu, subitamente consciente de estar a falar com um dos famosos “bonzos” de Grunewald.
– Construção civil, restaurantes… Não vê as bicicletas a levar comida a casa das pessoas? É essa gente, que nem quer trabalhar nem se dá ao esforço de fazer o seu almoço, preferem encomendar para entregar em casa.
– Olhe que os desempregados de longa duração não têm dinheiro nem sequer para pagar a gorjeta ao ciclista, quanto mais para mandar vir comida! Recebem 150 euros para comer o mês inteiro, e as despesas de aquecimento são controladíssimas. Se apresentam uma conta de aquecimento mais alta, estão desgraçados.
– Ai, não é que eu tenha alguma coisa contra eles, mas…
Desistiu de conversar comigo nesse preciso momento. Eu assobiei ao cão e fui-me embora a pensar que ele não tinha nada contra eles, apenas queria que “fossem todos morrer longe” (expressão muito apropriada para usar junto ao Gleis 17). Estranhei alguém com tanto poder e dinheiro exaltar-se tanto por causa de pessoas que não têm nenhum. Parecia que tinha inveja delas.
Mais à frente cruzei-me com outra dona de cão, que também está cheia de pena de fazerem casas no belo do descampado. Que não se pode construir por todos os lados, que a natureza também precisa de espaço para respirar…
– E depois – acrescentou ela – estes apartamentos são para judeus. Trata-se de um projecto só para estudantes judeus. Que horror, viverem ao lado do sítio de onde saíram os comboios para Auschwitz! Os judeus deviam misturar-se connosco, em vez de ficarem apenas entre si. Já estou a ver o filme completo: põem seguranças à entrada e à saída, e já não vai ser possível passear os nossos cães por aqui.
Eu também não gostaria de morar ao lado do local de onde saíram os comboios que levaram os meus familiares para Auschwitz. Mas o maior horror é isto: estamos em 2022, na Alemanha, e nem pestanejamos ao mencionar a necessidade de ter seguranças à porta de residências de estudantes judeus. E de sinagogas, e de infantários.
* * *
Talvez aquela história de ser mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus não seja propriamente uma questão de ser rico, mas de ser egoísta, de ter o coração agarrado àquilo que já se conquistou, e de o ter pesado e negro de ódio em relação a quem vive com imensas dificuldades.
E talvez o reino dos céus não seja algo que nos vai acontecer depois da morte, mas algo que acontece aqui e agora: na nossa vida. Aquele homem que tinha cem empregos para dar, por exemplo: não seria a sua vida muito mais feliz se tivesse um coração generoso e aberto às pessoas mais pobres desta sociedade, em vez de andar tão amargurado por causa de problemas que só existem na cabeça dele?

Helena Araújo vive em Berlim e é autora do blog Dois Dedos de Conversa, onde este texto foi inicialmente publicado.