
“Percebi naquele momento que os bispos ainda não sentiram o verdadeiro drama que aconteceu a cada uma das vítimas. É preciso deixar-se ferir, é essencial rasgar o coração para ir ao encontro, para entrar em comunhão com o sofrimento de cada vítima.” Foto © JComp / Freepik
Ao assistir à conferência de imprensa da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) senti vergonha, revolta e uma total ausência de esperança nesta hierarquia. Que pena, que oportunidade perdida!
Começo pelo menos relevante, embora com um impacto determinante na mensagem que transmitiu: foi um péssimo momento de comunicação. O espaço, as más condições técnicas, o comunicado sem alma, a linguagem verbal e não-verbal de todos os intervenientes, o ambiente cinzento, monocórdico e vazio.
Reconheço que a Comissão Independente foi criada graças ao empenho e determinação de D. José Ornelas, acredito que ele (e mais uns poucos) continua a tentar resolver o problema dos abusos sexuais de menores no seio da Igreja. Mas então, o que aconteceu? Na conferência pudemos observar um bispo cansado, mal preparado, desamparado, com um discurso confuso e mal articulado, que não é admissível nos nossos dias, muito menos a propósito deste assunto tão sensível.
Antes de chegar ao mais grave – as decisões tomadas – questiono: qual a estratégia de comunicação da CEP sobre este assunto? Terá feito sentido a data e a hora? Se as perguntas dos jornalistas eram óbvias, porque não foram preparadas? Comunicação de crise, já alguém ouviu falar?
Incomoda-me profundamente esta falta de profissionalismo, de preparação, de valorização do tema. O relatório da comissão independente era conhecido há três semanas… basta de mediocridade!
Espero que este momento desastroso tenha mostrado, de uma forma clara, a necessidade de um investimento sério em comunicação. Espero que o episcopado português tenha definitivamente a humildade de se deixar ajudar.
Mas vamos ao que realmente importa! A CEP decidiu garantir o apoio psicológico, psiquiátrico e espiritual às vítimas, criar outra comissão (semi)independente, fazer um pedido formal de perdão e construir um memorial. Decidiram optar pelo caminho mais fácil, nenhuma destas medidas tem implicações graves na vida de cada bispo e da sua diocese. Tudo o que era a doer, foi ignorado!
Depois da apresentação do relatório com os relatos dramáticos em pormenor, acreditei que o murro no estômago que todos sentimos tivesse atingido também os bispos portugueses de ar consternado, sentados na primeira fila do anfiteatro da Gulbenkian. Acreditei que poderia ser o trigger para a conversão. Mas enganei-me, o assunto não voltou a ser uma prioridade nas suas vidas; dedicaram-lhe uma manhã com a comissão independente (CI) e uma tarde, imediatamente antes da conferência de imprensa – o último ponto da agenda de uma semana de retiro em Fátima.
No momento de fazer escolhas, as vítimas foram preteridas em detrimento da defesa dos interesses da instituição. Tocou-me profundamente a falta de empatia e compaixão pelas vítimas, demonstrada por todos ao longo de toda a conferência. Enquanto mulher, mãe, médica, católica, senti uma dor indescritível.
Percebi naquele momento que os bispos ainda não sentiram o verdadeiro drama que aconteceu a cada uma das vítimas. É preciso deixar-se ferir, é essencial rasgar o coração para ir ao encontro, para entrar em comunhão com o sofrimento de cada vítima. Não são apenas números que nos envergonham, são pessoas com rosto, com história, com vidas destruídas. Poderiam ser os nossos filhos, irmãos, amigos, poderíamos ter sido nós!
A minha desilusão é total. Ao contrário do que aconteceu, eu esperava do episcopado português a disponibilidade para ir ao encontro das vítimas, de braços abertos para as acolher, escutar e abraçar; esperava a determinação para combater o abuso de poder e clericalismo que está a destruir a nossa Igreja; esperava a coragem para construir uma Igreja centrada no verdadeiro espírito do Evangelho. Sabem, srs. bispos, eu esperava, acima de tudo, a vossa conversão!
Sinto que estamos à beira do precipício, mas não me resigno; não basta criticar, é preciso apontar caminhos de esperança, caminhos que levem à Igreja do futuro, reencontrando-se com Cristo e com os seus fiéis. Utópico? Impossível? Não, essencial!
O que fazer?
- Acreditar no testemunho das vítimas. De acordo com a opinião de vários psicólogos com experiência na área, as vítimas de abusos não mentem e, para além disso, já passaram pela avaliação da CI.
- Suspender preventivamente de forma imediata todos os suspeitos de abuso, ação que pode ser revertida no caso de a suspeita não se confirmar.
- Mostrar disponibilidade para um encontro pessoal entre cada bispo e as vítimas da sua diocese. O Papa Francisco assumiu que foi absolutamente transformador escutar as pessoas, falar com elas olhos nos olhos. Acho este passo essencial: têm de estar frente a frente, tocar o sofrimento, chorar com as vítimas, deixar-se ferir para se converterem.
- Assumir a necessidade de uma transformação e renovação da Igreja. O abuso de poder é a raiz de todos os males da Igreja, foi essa cultura que permitiu o encobrimento sistémico dos abusos. É necessário ter a coragem de repensar a Igreja como um todo, para a tornar mais humana, inclusiva, missionária, aberta a todos e ao mundo – o Sínodo convocado pelo Papa aí está para nos desafiar a esse exercício.
Todos juntos, leigos e clero, deixemo-nos conduzir pelo Espírito rumo a uma igreja realmente de todos e para todos. Não destruam a nossa esperança!
Sílvia Monteiro é médica cardiologista na Unidade de Cuidados Intensivos Cardíacos e integra o Gabinete de Humanização Hospitalar do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC).