Na poesia otomana é frequente Deus aparecer na figura masculina e com atributos de beleza semelhantes ao de um adolescente. O historiador Selim Kuru explica que o género de Deus não seria definitivamente ou masculino ou feminino, já que as meninas e os meninos, até à puberdade, não se distinguem como tal [1]; as semelhanças entre os dois sexos são tantas que essa diferença não se nota. Na verdade, acrescenta, neste tipo de poesia, é o estar no mundo que acaba por fazer-nos mergulhar nas trevas no obscurantismo e a engendrar o género de Deus, quiçá, com a beleza de um menino novo.
A poesia otomana marcada pelo misticismo sufi lembra várias vezes a necessidade de nos abstrairmos das ilusões mundanas e de irmos ao encontro da Luz. É em grande parte influenciada por esta filosofia religiosa sufi que imagino a figura de Deus como sendo a de uma mãe – de uma mulher, portanto.
Para quem conheceu a sua fé através do ismailismo, onde a liderança espiritual se faz, desde sempre, através de um homem, esta forma de pensar Deus parece contrariar a história desta corrente do islão. Mas o que é curioso é que nesta tradição há três fatores, pelo menos, que marcaram a minha perceção do divino como sendo porventura também feminino.
O primeiro tem a ver com o facto histórico de, no apogeu do islão dinástico, os ismailis fatimidas terem proclamado Fatima como a figura central desta corrente religiosa e política. Os ismailis fatimidas são o único grupo muçulmano que assumiu o nome de uma mulher para a sua designação dinástica. Em segundo lugar, acho curioso que, nas missivas (farman e/ou taliqa) aos seus crentes, o líder espiritual depois de se dirigir aos crentes como “meus amados filhos espirituais”, termina estas mensagens enviando as suas “bênçãos paternais e maternais”.
Por último, a cultura religiosa de que participo, sendo marcadamente sul-asiática, e muito assente nas suas tradições “guinanicas” (cânticos devocionais), ela contém inúmeros exemplos em que o suplicador, homem ou mulher, assume variavelmente ou o lugar de uma mulher-filha, ou refere-se a si mesmo como a vulnerável e frágil serva que veio para cumprir trabalhos duros na vida terrena. Nos atributos de Deus, frequente é também a imagem de Deus mulher, a quem o/a crente pede auxílio e amparo, como um filho espera de uma mãe.
Em virtude da minha familiaridade com a cultura cristã, e porque ser portuguesa é ser essa multiplicidade e pluralidade de identidades, lembrei-me de procurar, para este tempo de Natal de 2020, um dos vários objetos de arte islâmica que conheço e onde a Virgem Maria e o Menino Jesus sugerem a relação entre protetora e protegido e o amor divino que, depois de recebido, transborda para a humanidade.

“Virgem Maria e a Criança”, prato iznik, dinastia Otomana, século XVII, Museu Britânico. © The Trustees of the British Museum
Uma amiga mostrou-me este prato produzido no período otomano [2]. Ele representa bem a mensagem que eu gostaria de deixar. O prato de pasta de pedra transparente, pintado a azul, verde, vermelho e preto, foi produzido em Iznik, na Turquia, no século XVII, e tem um diâmetro de cerca de 26 cm. O desenho “retrata Maria (em árabe Maryam) que segura carinhosamente no seu colo Cristo ainda menino. Enquanto Jesus (Isa) é reconhecido no islão como profeta e uma ‘misericórdia de Deus’ (Alcorão 19:21), Maria é a figura mais proeminente no Alcorão e a única a ser identificada num dos seus capítulos pelo nome (o capítulo 19 tem o seu nome). A anunciação e o nascimento virgem são reconhecidos no islão e Maria é celebrada como um exemplo de castidade, de obediência e de fé” [3].
Afinal, o cristianismo e o islão estão muito mais próximos do que imaginamos, embora o ensino secular nos tenha retirado a possibilidade de conhecer este importante facto. Uma das coisas que gostaria que conseguíssemos fazer a partir deste ano, é oferecer mais conhecimento sobre a proximidade das civilizações muçulmanas, principalmente aqui em Portugal, e porque não, começando pela arte.
Num ano marcado por inúmeras reflexões sobre a fragilidade e a vulnerabilidade dos humanos, e porque eu mesma encontrei refúgio e conforto na fé dos meus antepassados, desejei aos meus amigos, e desejo aqui também que, nos tempos que passamos e nos que ainda vamos ter de passar, insh’Allah [4] rapidamente recebamos um colo, um abraço, um afeto e a proteção de que qualquer ser humano precisa. Na circunstância presente de sermos forçados a prevenir os abraços e o afeto dos humanos, fica o desejo de que sintamos esse “abraço” e esse “colo” de alguém que, não se podendo ver com os olhos do rosto, se permita sentir através da sensação poética do amor e da fé. Que a Mãe-Deus nos carregue no seu colo maternal em todos os dias de 2021!
Festas Felizes e um 2021 cheio de Barakah [5]!
Faranaz Keshavjee é especialista em estudos islâmicos e investigadora na Universidade de Lisboa
Notas
[1] Sex, Love and Worship in Ottoman Texts, In “The Ottoman History Podcast”.
[2] “Virgem Maria e a Criança”, prato iznik, dinastia Otomana, século XVII, Museu Britânico.
[3] Fahmida Suleman, curadora, Mundo Islâmico, Royal Ontario Museum, Toronto.
[4] “Se Deus quiser”, em árabe.
[5] Prosperidade e abundância.