Devoção Pública

| 30 Set 2022

coração colorido lgbt foto pexels

“A Igreja do Jesus que nos levanta o corpo e o olhar ainda acha aceitável menorizar alguém em função da expressão de género, da vivência da sexualidade, da aparência, do historial ou de outros adereços de curriculum vitae?” Foto: Coração colorido LGBT © Pexels

 

Às vezes pergunto-me acerca da noção que as crianças têm de espiritualidade, se será uma palavra que faça sequer sentido para elas. Se calhar, devia começar a fazer um inquérito sobre isso àquelas com que me vou cruzando.

Para os adultos, não faltam ofertas de “espiritualidade”, que parece ser um produto personalizável, como tantos outros do mercado, que pode responder às necessidades e aos buracos na agenda de cada um. Será, hoje em dia, daquelas palavras que carrega em si significados múltiplos, e até contraditórios, que vão desde um descubra-se a si mesmo até à descoberta do totalmente Outro.

Numa entrevista que ouvi há pouco, realizada a um biblista australiano, este falava da importância do ritual nas práticas religiosas romanas e de como, em claro contraste, o Evangelho segundo João descentraliza o ritual, no seguimento de Jesus.

O fascínio dos rituais pagãos continua bem vivo nos meios ditos new age, mas o próprio catolicismo apela a alguns fora dele – por exemplo, pela opulência das catedrais e pelo sem fim de objetos devocionais.

O mesmo biblista referia que, no contexto romano, as práticas devocionais eram públicas e que João reflete essa maneira de entender a devoção, ao propor um seguimento de Jesus que tem de ser público, sendo que, em João, Jesus nos oferece um único e novo mandamento: o amor.

Num artigo recente, Cristina Inogés-Sanz reflete sobre como se fará a ponte com aqueles para quem a Igreja é uma realidade totalmente alheia à sua vivência pessoal e familiar. “Para estas pessoas teríamos que começar a idealizar novas formas de aproximação longe de qualquer convite que soe a catecumenato de adultos ou à pastoral habitual”, diz a teóloga.

Acrescento que para nós também. Para aqueles que já estão em Igreja (apenas com um pezinho ou já de corpo todo), é também necessário traçar novas formas de aproximação. (E não será pela promoção de um “melhor produto”, ou pela adoção de uma mais recente estratégia de marketing).

Noutro artigo, a teóloga aponta que “o facto de Jesus ter curado a mulher, endireitando-a, é o que sempre atrai e focaliza a reflexão; no entanto, o facto de ele a ter ajudado a pôr-se direita significou para a mulher poder olhar para Jesus cara a cara”. A boa notícia, que é Jesus, é uma palavra que gera ação libertadora, e que atrai os nossos olhos aos seus olhos, ao nível do reconhecimento da nossa humanidade diversa e cheia de particularidades – todos a descoberto e à descoberta de uma nova maneira de estar em comum.

A repressão intra-religiosa reforça o apelo do mundo. Em vários sentidos, sinto-me bem em Igreja porque sei que há um mundo lá fora. Um mundo onde a diversidade humana vem criando espaços para ser vivida com humanidade e com respeito. Ora, como pode a vitalidade não caber na Igreja do Deus da Vida? A Igreja do Jesus que nos levanta o corpo e o olhar ainda acha aceitável menorizar alguém em função da expressão de género, da vivência da sexualidade, da aparência, do historial ou de outros adereços de curriculum vitae?

O biblista citado reforçava ainda que outra característica da religião, no período romano, era a sua inseparabilidade da vida. E desde então? Pode a espiritualidade ter lugar numa dimensão diferente da vida comum?

Ser cristão é um estado de pertença permanente. É-se cristão enquanto se lava a louça, se tem uma reunião de trabalho ou se fica ensardinhado no autocarro. Agora, a dificuldade está em se nos entendemos quando nos chamamos cristãos.

Quando o estar no mundo não for mais necessário para amparar o estar em Igreja, ser cristão será a claríssima evidência dAquele que nos forma.

 

Sara Leão é mediadora educativa, formadora de Português Língua Estrangeira, voluntária no Centro de Acolhimento Temporário de Refugiados/Seminário Redentorista de Cristo Rei (Gaia)

 

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