
“Não chores meu filho, não estás sozinho, eu estarei sempre contigo. Lembras-te em que momento te perdeste de mim? Puxo pela cabeça e não sou capaz.” Foto: Direitos Reservados
Meu querido filho:
Houve um momento em que eu te perdi. Deve ter havido um momento exato, mas não me consigo recordar qual.
Ouço-te no poema do Eugénio de Andrade “No mais fundo de ti, eu sei que traí, mãe”. Que curvas e contracurvas tem a vida, para que passasses de adormecer a sorrir quentinho no meu colo para passares a adormecer a chorar numa cela? Eu sei que falhei, não fui capaz de te passar todos os valores que os meus pais me passaram a mim. Acho que nunca tive verdadeira vocação para ser mãe. Aconteceste na minha vida. Mas eu também aconteci na tua. Sem saber muito bem o que fazer, o que dizer, sozinhos, só tu e eu. E o mundo. O mundo todo tão grande, tão cheio de perigos. Tentei sempre almofadá-lo para não te magoares nas suas arestas dolorosas, se calhar protegi-te demasiado. Não te soube dar as ferramentas de que precisavas para te saberes defender sozinho. E juntaste-te às pessoas erradas. Ou tu também eras errado como elas? Fui eu quem errou. Quem não soube dizer-te não, quem não aguentava contrariar-te. Queria que visses os dias cheios de luz e hoje a pouca luz que te entra pelos olhos é através de barras de ferro. Procurei sempre fazer-te o que mais gostavas para o jantar e hoje comes o que te põem no prato e não podes queixar-te do tempero. Deves sonhar com o meu bacalhau no forno e o meu arroz-doce de que tanto gostas.
Não chores meu filho, não estás sozinho, eu estarei sempre contigo. Lembras-te em que momento te perdeste de mim? Puxo pela cabeça e não sou capaz. Talvez tenha sido numa noite, sim, o mais possível é que tenha sido numa das noites em que eu ficava acordada à espera de que chegasses e não chegavas e eu tinha de sair para trabalhar. Mas depois não te dizia nada, eras maior e vacinado, não tinha esse direito. Hoje tenho todo o direito de te chorar. Dóis-me bem cá no fundo. Não te culpo. Foi a vida que escolheste. Sem pensar nas consequências, nunca tiveste muitas, essa é a realidade.
Eras o meu menino “Não te esqueças de levar um casaco que vai esfriar e à noite um casaquinho nunca aborrece.” Tens frio aí, não tens? Nem me deixam levar-te um édredon e o cobertor faz-te espilrar toda a noite.
Não sou capaz de te imaginar a sofrer. O meu coração ficou contigo ao ver-te entrar por esses portões. Agora vivo sem coração, sem alma, vazia de ti. Como te fui perder? Onde errei? Quem te ganhou de mim? Foste por essa estrada fora e não consegui apanhar-te a tempo. Não foi por ires depressa demais, mas por ser escuro. Não te vi ir embora. Ou não quis ver?
Agora o teu abraço é maior que o meu e quando me envolves nos teus braços a minha cabeça é que pousa no teu peito e não a tua no meu, como era antigamente. Mas tu sabes que eu te amo, não sabes? Eu vou buscar-te ao fundo dessa estrada e custe o que custar, hei-de trazer-te de volta a casa.
Lígia Pires é visitadora nos estabelecimentos prisionais de Custóias, Santa Cruz do Bispo e Polícia Judiciária/Porto.