Dia das Ruas com Gente em vez de Dia Sem Carros

Pedalar por amor, com o mundo dentro de nós

| 22 Set 2023

Helena Flores, esposa do autor, há cinco anos, com o carro que o casal decidiu abater: “provocar uma mudança a favor de todos.” Foto © Abel Coentrão

Chamam-lhe o Dia Europeu Sem Carros. Eu diria que lhe deveríamos chamar, ao 22 de Setembro, o Dia Europeu das Ruas com Gente. Não estamos a tirar nada, apenas vislumbramos, por umas horas, no canto dos pássaros desocultado pelo silenciar dos motores, no ar límpido, e na alegria das crianças e dos velhos que assomam à rua, como poderia ser a cidade se nos devolvessem o espaço que o uso indiscriminado do automóvel nos roubou.

Há muito que a semiologia nos mostrou o quanto a linguagem interfere na construção da nossa visão do mundo. E há muito que a ecologia nos mostrou o quanto a nossa visão antropocêntrica desse mesmo mundo o traz em desconserto. Preocupado com isto, enquanto jornalista que faz da língua o seu instrumento de trabalho, venho questionando o lugar de cada palavra, no intuito de repensar o nosso lugar na sociedade, na cidade e, no limite, neste planeta.

Volto ao Dia Sem Carros. Não sei se há quem caminhe ou pedale contra o que quer que seja. As pessoas que conheço, ou fazem-no sem pensar muito nisso, por falta de alternativa, ou escolhem fazê-lo por conveniência, sem mais quês e porquês. Outras há, como eu, que pressentem o poder político dos seus gestos – e, lá está, das palavras que os acompanham – e os visibilizam como podem, para provocar uma mudança. A favor de todos.

Sim, temos automóveis a mais nas nossas ruas. Quem deles depende concordará – mas o inferno, parafraseando Sartre, são os carros dos outros. Presos à linguagem motor-cêntrica, que nos fala de velocidade, eficiência, rapidez, conforto, liberdade individual, etc, etc…, tornamo-nos incapazes de imaginar o que poderíamos ter na cidade se eles não estivessem lá, ou como seria a nossa vida se fizéssemos parte desse cenário.

 

Recuperar a imaginação

Madalena com saudades de bicicleta: para não “fazer mal ao planeta”. Foto © Abel Coentrão

 

Eu também sentia essa incapacidade, até ser desafiado pela minha esposa e, há precisamente cinco anos, juntos termos decidido que poderíamos ser felizes com um só automóvel, abdicando do outro, que pretendíamos trocar, e introduzindo a bicicleta em boa parte das nossas deslocações. Poupámos certamente muitos euros, com a decisão, mas já perdemos a conta. Porque foi outra, e bem mais preciosa, a riqueza que encontrámos pelo caminho.

Para as nossas duas filhas, esse gesto abriu espaço a inesperados momentos de alegria quotidiana. Contagiados por elas, procuramos o tempo para esse tempo relativamente mais lento, o tempo do encontro com a paisagem em redor, da aproximação aos desconhecidos que se cruzam connosco, do aceno aos amigos que, assim devagar, nos roubam duas palavras no caminho. A correr, dentro de um carro, somos só nós contra o mundo. Em bicicleta, pedalamos como se levássemos o mundo dentro de nós.

Compreenda por isso que quando a nossa filha mais nova, a Madalena, partiu o braço direito, há duas semanas, percebemos com tristeza que teria pela frente quase um mês de gesso e de impedimento para três das coisas de que mais gosta na vida: andar de bicicleta, tocar piano e nadar. Temos ainda a bicicleta eléctrica comprada há cinco anos, com uma cadeira de criança adaptada ao seu peso, mas, com a idade e a evolução de uma deficiência física de nascença, hoje em dia sinto-me inseguro para transportar esta criança de sete anos: cuja autonomia, ganha aos cinco, foi para mim uma bênção.

Assim, todos os dias, quando entrávamos no carro, queixávamo-nos, e ela mais do que eu, de não podermos pedalar juntos para casa da avó. E, farta desta rotina indesejada, passadas as dores iniciais, há dias que ela me dizia que não fazia sentido pegar no automóvel “e fazer mal ao planeta”, pois tinha saudades e sentia-se capaz de conduzir a sua bicicleta. Eu concordava, bem sabendo o quanto meu corpo pede aquelas curtas viagens de sete quilómetros, que me mantêm activo. Mas resisti, desculpando-me com a insegurança que aquele braço engessado lhe poderia causar.

 

Ao sol e à chuva

O autor na sua bicicleta: “diminuir a intensidade energética das nossas vidas, abrandar.” Foto © Helena Flores

 

Finalmente, no início desta semana, primeiro dia efectivo de aulas, e, cumprindo o seu desejo, lá fomos nós. Pedalámos um pouco mais devagar, mas chegámos, como sempre, à escola, cumprindo prazerosamente, e em segurança, os três quilómetros e meio de percurso de ida. O regresso a casa, na Póvoa de Varzim, como muitas vezes acontece, dá-nos um bónus, impagável, de um pôr-do-sol revigorante na praia dos nossos antepassados: gente corajosa, a atirar-se à vida e ao mar, de quem me parece que ela herdou os genes.

Durante esta semana, o seu e nosso maior momento de felicidade foi contudo um regresso a casa sob uma chuva copiosa que nos encontrou no caminho, chuva essa que ela, num jeito franciscano, aprendeu a agradecer, pelo bem que faz à natureza de que fazemos parte. Mas é o “mau tempo”, aprendemos todos. E na verdade, não poucas vezes, essa ameaça faz-me trocar aquelas duas rodas tocadas a pés e sorrisos pelo carro velhinho que mantemos na garagem. Para pena, e sob protesto da Madalena, quase sempre.

Concluí, deste episódio, que temos mil e uma desculpas para não fazer o que um dia terá de ser feito: diminuir a intensidade energética das nossas vidas, abrandar, para nos salvarmos a nós próprios e ao planeta em que nos foi dado viver, entre milhões de outras espécies que não têm culpa que nos tenham ensinado que a sua existência é meramente instrumental, postas que foram “ao nosso serviço”.

Temos medo de dar esse passo, entre muitas razões, porque nos dizem que a velocidade é sinónimo de sucesso e que abrandar é falhar. Que importa que nesse ritmo lento ofereçamos às nossas crianças a experiência da autonomia, que nos sincronizemos com o passo dos mais débeis, que a todos devolvamos o direito à cidade e nisso encontremos espaço, muitos espaços, para amar?

Uma nota final. Em casa, há duas semanas que tocamos piano juntos. Ela com a mão esquerda, eu com a direita, a minha mão de músico que nunca fui mas sonhei ser, à qual uma paralisia à nascença roubou a companhia. Quando nos sentámos lado a lado, a primeira vez, olhou para mim e brincou com o facto de, “aleijados os dois”, nos completarmos. A par, como quem dança, tocámos uma valsa de Kabalevskiy, para crianças, tentando, na dificuldade do momento, um sincronismo rítmico: se não fundado no talento, certamente fundado no amor.

 

Abel Coentrão é jornalista especializado em urbanismo e mobilidade, casado e pai de duas filhas. Tem uma paralisia de nascença, que lhe afecta parcialmente os membros do lado esquerdo, e aos 45 anos encontrou na bicicleta, quase por acaso, uma prótese que lhe alarga os horizontes de mobilidade (e de felicidade) na cidade onde vive. Podem conhecer mais dos seus textos em https://medium.com/@acoentrao

 

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