Diários de quarentena (20): Coronam Vitae e Quando chovia em abril
Antes da passagem escura
A lareira da sala pixelava escolhas vãs
O gato sonhava que dormia
E o amanhã abria-se como o ontem
Agora, o não humano acorda a humanidade
A Terra voltou a respirar
O lavar as mãos tornou-se um compromisso
E no silêncio cada espinho florirá
Cara ou coroa?
Abraço a minha noite e entrego-me à claridade

Céu vermelho. Foto Íris Martín Pereira
31 de Março de 2020
Liomarevi (pseudónimo literário)
Quando chovia em abril – a Páscoa em Alcochete
Como eu vivi e descrevi a Páscoa em Alcochete, nos anos 50 da minha adolescência, em um fragmento do meu livro Casas Contadas:
“Quando chovia em abril, o cheiro da terra molhada era tão forte como a cor da mimosa amarela, naqueles dias da Semana Santa, em que eu corria a abrigar-me debaixo do seu tronco, a chorar a Paixão de Cristo e os pecados do mundo. As pessoas ainda se vestiam de luto, as mulheres de preto pesado e os homens de gravata preta, na Sexta-Feira Santa à noite, quando a Procissão do Enterro atravessava a vila, duas filas de gente com tochas a acompanhavam, o esquife era levado em ombros, evoluía ao ritmo da banda, cadenciado. Nesse mesmo dia era a Procissão do Encontro, tão dolorosa quanto a outra. O Senhor dos Passos, vestido de roxo, quase em tamanho natural, estava ajoelhado sob o peso da cruz, num andor todo decorado de glicínias. Saía da Igreja Matriz e descia a Rua Direita, em ritmo solene, para se encontrar com Nossa Senhora das Dores, também no seu andor, que tinha saído da Capela de Nossa Senhora da Vida.
A minha azáfama começava com o senhor Prior na igreja a dizer o programa da Semana Santa. As grandes cerimónias eram iniciadas na Quinta-Feira Santa com o Lava-Pés, quando os velhos do Asilo faziam de discípulos do Senhor, os padres, que eram vários nesses dias solenes, tinham grandes bacias de água e toalhas de linho branco e ajoelhavam-se no chão, a passar de um velho para o outro, a seguir. Entre a confissão, sempre empolgante na expectativa de que o padre desse respostas às minhas dúvidas de fé, e a comunhão de Sábado de Aleluia, eu cumpria o jejum e abstinência. Com o Círio da Vigília Pascal a acender-se dentro da igreja, corriam cá fora os costumes profanos da Queima do Judas e o barulho dos bate-folhas de lata que os rapazes arrastavam pelas ruas; devo dizer que algumas vezes me atraíam mais estas coisas do que as demoradas cerimónias entoadas em latim. Passadas as dores da semana, chegava o dia de Domingo em que o padre visitava as casas, e a nossa era especialmente preparada com tudo o que houvesse de melhor para o receber e à sua comitiva de sacristão, meninos do coro e beatas de primeira classe, destacadas de todas as outras criaturas na paróquia.”
Leonor Xavier, Casas Contadas, edições Asa (Leya), 2009