Diários de quarentena (23): Fonte de Vida e A Última Ceia
Fonte de vida armazenada

Mazagão, El Jadida (Marrocos), 2007. Foto © António José Paulino
A Última Ceia
(poema de Maria do Rosário Pedreira, sugerido por Ana Cordovil e dito por Júlio Martín)
Trouxe as palavras e colocou-as sobre a mesa.
Trouxe-as dentro das mãos fechadas (alguns disseram
que apenas escondia as feridas do silêncio).
Pousou-as na mesa e começou a abri-las devagar,
tão devagar como passa o tempo quando o tempo
não passa. E depois distribuiu-as pelos outros,
multiplicou-se em dedos, em palavras (alguém disse
que chegariam a todos, ultrapassariam os séculos e
teriam a duração do tempo quando o tempo perdura).
Ceou com todos pão que não levedara e vinho áspero
das videiras magras do monte que os ventos dizimavam.
Quando se ergueu, havia ainda palavras sobre a mesa,
coisas por dizer no resto do pão que alguém deixara,
feridas fundas nas mãos que fechou em silêncio e devagar.
Perto dali uma figueira florescia. À espera.
(in A casa e o cheiro dos livros, 1996)