Diários de quarentena (3): Uma pequena flor, um hamster com asas e um vírus que não nos isola
Alimentar esta “pequena flor que parece ser nada” (Texto de Teresa Vasconcelos)
Esta manhã bem cedinho, enquanto andava em passo estugado no parque da Quinta das Conchas e dos Lilases (perto de minha casa, um privilégio!), bem “protegida” e saboreando esta primavera verde e irradiante que brota por todos os lados, veio-me à mente um poema de Sophia. Em momentos difíceis da minha vida, não me cansava de o murmurar. Sei-o quase de cor. Cheguei a casa e verifiquei se estava a dizê-lo bem:
Depois da cinza morta destes dias,
Quando o vazio branco destas noites
Se gastar, quando a névoa deste instante
Sem forma, sem imagem, sem caminhos,
Se dissolver, cumprindo o seu tormento,
A terra emergirá pura do mar
De lágrimas sem fim onde me invento.
(Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral)

Quinta das Conchas, em Lisboa. Foto © Teresa Vasconcelos
De repente “cai-me” uma mensagem no telefone: uma amiga muito querida, mãe de três rapazes, que vive e trabalha em Bruxelas, está com o coronavírus. Uma mulher nos seus quarenta anos, profissional muito ativa no âmbito do diálogo entre culturas. Esta é a primeira notícia relacionada com os que me são próximos. Tomo consciência aguda de que vai ser assim. A “cinza morta destes dias”… a preocupação e o “vazio branco das noites”. Quero acreditar, como Sophia, que “a terra emergirá pura do mar” e que todos “nos vamos [re]inventar” a partir das lágrimas que derramarmos… Todos somos convocados a alimentar a esperança, cette petite fleur qui a l’air de rien du tout, como lhe chamava Charles Péguy.
Teresa Vasconcelos é professora do ensino superior aposentada e integra o Movimento do Graal (t.m.vasconcelos49@gmail.com)
Uma festinha a um hamster com asas (Fotolegenda de Catarina Sá Couto)
Já há uns dias me vinha à mente o estranho desejo de ver um filme sobre pandemias mundiais, para fazer um “descubra as diferenças!” com a realidade actual. Nos debates sobre a origem do corona e no filme que acabei por ver – O Contágio – percebi o quão inconsciente/irresponsável foi a festinha que fiz a este amoroso hamster com asas em S. Tomé, na fotografia. Ainda bem que não causei uma epidemia mundial…
(Catarina Sá Couto, missionária leiga da Igreja Lusitana – Comunhão Anglicana, “jovem líder” da Carta da Terra e representante em Portugal dos Green Anglicans – Rede Lusófona)
Não há vírus que nos isole! (Texto de Joaquim Nunes)
Reina o paradoxo. As sociedades apelam à redução daquilo que as constitui. Evitar ao máximo possível as saídas de casa, as idas à rua, os encontros, os contactos sociais, as viagens, as concentrações… Os locais de encontro – cafés, centros comerciais – estão vazios, por si ou mesmo fechados por lei… E até as Igrejas, habitualmente preocupadas com a diminuição da prática religiosa, cancelam agora as suas celebrações, desmarcam encontros e reuniões. A vida social no seu conjunto está posta em causa…
Se há que aceitar as análises dos peritos no que diz respeito à necessidade de tais medidas para travar a epidemia, sinto no entanto, dentro de mim, como é importante encontrar formas de manifestar a sua convicção de que os outros nos faltam, de que continuará sempre a ser melhor um abraço apertado que um sorriso à distância, que o isolamento quase nunca termina bem e que é necessário tudo fazer para não deixar ninguém isolado… Como viver esta “quarentena” sem resignar nem perder a fé nos valores em que sempre acreditamos: na proximidade, na comunidade, na comunhão?
Há que encontrar gestos simbólicos. Os italianos deram o exemplo: a horas marcadas, vêm às janelas e varandas para cantar. Onde não é possível mudar a realidade nos seus factos e durezas, há que encontrar gestos que tenham força profética, que mantenham acesa a chama da esperança, que sejam interrupção e protesto.
É a força de um destes gestos que eu sinto e estou a viver nestes dias. Os permanentes de Taizé dos anos 1980-1982 (“permanentes” são essas e esses que ficam em Taizé um tempo prolongado para ajudar nas tarefas do acolhimento e da organização dos encontros) continuamos em contacto e, ao longo dos últimos anos, completou-se a lista dos nossos contactos via e-mail.

Foto © Joaquim Nunes
Uma de nós lançou a bela ideia de fazer um gesto de comunhão contra todas as formas de isolamento… e convidou todos os elementos do grupo (e são muitos!) a parar todos os dias às 12h00 para um momento de oração, lá onde cada uma e cada um se encontra, cada um em sua casa, mas todos em comunhão. E a adesão está a ser grande! Espalhados por toda a Europa, e mesmo fora da Europa, ao meio-dia estamos em comunhão para rezar! Não há vírus que nos isole!
Joaquim Nunes é assistente pastoral da Igreja Católica e vive em Offenbach (Alemanha)