Diários de quarentena (6): Redescobrir sentido e os mocassins dos outros
Redescoberta do sentido

Há sempre uma passagem… Foto © José Centeio
Vivemos uma época de muita preocupação. Quem vive com profissionais de saúde, tem familiares já idosos com outros problemas de saúde, alguns à distância de uma viagem, anda com o coração um pouco apertado. De repente, mesmo se próximos, sentimos saudade dos netos, dos filhos, da magia do toque, afeto que as crianças tão bem entendem.
O ritmo frenético e o ruído da comunicação deixam-nos completamente loucos, invadem-nos, ocupam o espaço que ainda nos resta. É ainda mais irritante ouvir sempre as mesmas perguntas, as quais parecem exigir, a todo o custo, as certezas que não temos como se pudéssemos tudo controlar. E, contudo, esta situação levanta questões tão importantes em termos de sociedade que parece termos medo de as enfrentar.
Preferimos esconder-nos por detrás das certezas, mesmo se ilusórias. Convivemos mal com as fragilidades, com o inesperado, com o que não podemos controlar. Como se não bastasse, este é um vírus pouco dado a afetos: nada de abraços, nada de beijos, nada de apertos de mão… Que diabo, sobretudo quando mais necessitávamos do afeto do toque! Até os afetos temos que reinventar. Mas é também um vírus pedagógico, pois obriga-nos a adotar comportamentos que, em vários casos, deveriam fazer parte do nosso quotidiano.
De um momento para o outro esquecemos o mundo, centramo-nos na nossa sobrevivência. E, contudo, há pessoas, crianças, mulheres, jovens… a quem negamos a vida e que continuam a morrer por outras pandemias: a indiferença, a desumanidade, o esquecimento, o fingirmos que não é nada connosco. As guerras continuam, os refugiados esperam ainda um olhar que seja promessa de futuro, o ódio e a crença em verdades construídas à medida continua a matar… Soterrados por esta “pandemia informativa” tornamo-nos um pouco mais egoístas, autocentrados, narcisistas, porque a nossa dor é sempre mais funda que a do outro.
Sentimo-nos perdidos, faltam-nos explicações e tudo nos parece absurdo, ou seja, é a própria negação de sentido. E, contudo, este é também um tempo de reinvenção e de redescoberta do que nos parecia ter perdido sentido: a solidariedade, a presença, o estar próximo, assumem novas formas. É verdade que nos assusta agora termos o tempo que ainda há dias nos queixávamos de não ter, mas cabe-nos a nós, porque somos livres, saber o que fazer do tempo que agora temos de sobra. A vida, apesar de pensarmos que tudo controlamos, continua a ser um mistério, ou seja, uma promessa de sentido.
José Centeio é gestor de organizações sociais e membro do Cesis (Centro de Estudos para a Intervenção Social); jose.centeio@gmail.com
os mocassins dos outros

Fechada em casa, com pequenas saídas nas quais mantenho a distância em relação a outras pessoas em pelo menos dois metros, tenho-me lembrado das descrições sobre a vida nas leprosarias que lia nos almanaques das missões na casa da minha avó. Ficava horrorizada com a imagem de pessoas a perder o corpo bocado após bocado, abandonadas num local onde não infectassem os outros. A covid-19 obriga-nos a muitos sacrifícios, mas nenhum de nós está sujeito a sofrer o que sofriam muitas pessoas com lepra não vai sequer há meia dúzia de décadas.
Penso também nos refugiados fechados em campos sem um mínimo de condições e sem a menor dignidade. Apesar de termos de ficar em casa, ainda estamos muito longe de viver numa situação como a que oprime essas pessoas durante meses e anos.
A crise da covid-19 está a ter um efeito colateral interessante na minha consciência: aumentou a proximidade emocional com pessoas a viver em circunstâncias muito piores que as minhas.
Helena Araújo vive em Berlim e é autora do blogue 2 Dedos de Conversa, de onde se reproduz este texto e a ilustração.
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