
Foto © Inês Patrício
Há uns meses, aqui em Berlim, observei na Urgência uma senhora de 92 anos. Ela vivia sozinha e, por motivos não muito claros, tinha o sódio baixo. Estava por isso confusa e foi internada. Uma semana depois percebi, numa reunião com a Radiologia, que ela tinha caído e partido uma perna. Foi operada. Mais tarde comentou-se que estava em isolamento após contacto com uma doente com covid-19. Entristecida, pensei que mais lhe poderia acontecer. Num turno noturno disseram-me que ela precisava de um acesso venoso. Passava das 23 horas. Pus-me a caminho à espera de ver uma pessoa devastada pela doença e pelo internamento. Vesti lentamente o meu equipamento de proteção. Neste momento preparei-me. Tentei preparar-me.
Um dia assisti a um pequeno vídeo com o neurocirurgião João Lobo Antunes. A certa altura, ele falava do conceito da dignidade supletiva: “É quando na aparência a situação é tal que nós questionamos a dignidade daquela pessoa que está à nossa frente, ou porque não fala, ou porque está em coma. (..) Significa que nós completamos a dignidade do outro com a nossa própria dignidade. Ou seja, a dignidade do outro está refletida em nós.”
Os meus dias estão cheios destas situações. Os doentes delirantes ou dementes. Os doentes que se despem, que dizem coisas sem um sentido que possamos compreender. Os doentes muito frágeis. Os doentes muito doentes. Este conceito de dignidade supletiva tem tudo a ver com os meus dias. Ele significa não menorizar, não esquecer que ali está sempre uma pessoa, não falar como se não ouvisse, não fazer de conta que se ouve. Significa cobrir um corpo que se descobriu, mas também não insistir em o cobrir se ele não quer estar coberto. Significa não conter fisicamente os movimentos que lhe possam ser perigosos. É conter quimicamente, cada vez menos, apenas o absolutamente necessário. Respeitar quando dizem não. Significa, com a nossa própria postura, tentar refletir à pessoa aquilo que é, inquestionavelmente, dela: a sua dignidade.
Acontece que naquela noite entrei no quarto e encontrei uma senhora dignamente deitada na cama, com a cabeceira levantada. Os olhos solenemente fechados. A solenidade de quem está a fazer uma coisa muito séria. Ao lado dela um rádio com muita pinta, moderno, tocava uma música clássica muito bonita, bem alto. Agora já completamente orientada, aceitou sem complicações que a picasse àquela hora, naquele momento. E eu pensei: aqui está uma mulher que decidiu não se ralar! Disfruta a sua música, sem derrota, sem ansiedade, em tranquila resistência.
A minha estadia aqui na Alemanha tem-me feito pensar que nunca na minha vida tive de discutir e explicar tanto aos doentes os planos e propostas terapêuticas como aqui. Os doentes, na sua maioria, não se entregam nem à família nem aos profissionais de saúde. Quase todos têm documentos oficiais onde dizem concretamente o que querem (ou não querem) que seja feito caso fiquem incapazes de se pronunciar. E se se podem pronunciar, perguntam e discutem até ficarem suficientemente esclarecidos para tomarem a sua decisão. Os alemães não são nem melhores nem piores que nós, mas este conceito de autonomia está profundamente enraizado e dele não prescindem.
Dignidade e autonomia são talvez os dois conceitos que mais retiro da minha vida profissional para a minha vida.
Inês Patrício é médica, vive em Berlim com o marido de olhos de mar e uma filha solar.