
Dimas de Almeida: “…coisa surpreendente, no meio de um cristianismo fatigado, a sua figura fundadora, Jesus de Nazaré, continua a ser uma figura fascinante. Cada vez mais homens e mulheres dizem não às Igrejas e sim a Jesus.” Foto © Ana Serras, cedida pela autora.
As rubricas católicas desencorajam “elogios fúnebres” nas missas com intenção. Na eucaristia celebramos a radical entrega de Jesus Cristo à vontade do Pai; esse largar mão da vida em favor dos outros que Jesus aponta aos discípulos como caminho – caminho seu e caminho deles; esse tornar-se pão partido para a comunhão de todos. A celebração da eucaristia é expressão litúrgica desse deixar-se envolver – por leituras, cânticos, ritual, … – na única entrega de Cristo. Como se lê na anáfora: “Humildemente Vos suplicamos que… sejamos reunidos, pelo Espírito Santo, num só corpo”. Na celebração de 30.º Dia do seu falecimento, portanto, evocamos a memória do Dimas para que ela entre na grande memória que em cada missa fazemos de todos que morreram em Cristo para um dia com ele ressuscitar.
Ao lembrar hoje o meu amigo, o nosso amigo e irmão Dimas, recordo como, no fundo, foi isso mesmo que, na sua fé operativa, ele nos testemunhou: a unidade na caridade. Para lá dos detalhes – sem dúvida importantes – das doutrinas, e da tradição rica e plural dos rituais; congregando a multiplicidade de tantos caminhos percorridos, está a disciplina maior de nos descobrirmos imanados no seguimento de Cristo e, ao fazê-lo, descobrirmo-nos envolvidos no amor imenso – por cada um, por todos e pelo mundo – que nos renova como sopro do Pai.
Mas o evangelho de hoje [Marcos 8, 27-35, quando Jesus pergunta aos discípulos “E vós, quem dizeis que eu sou?”] vai mais longe. Renunciar a si mesmo não é proposto por Cristo só a cada discípulo, individualmente. É mandato também para as comunidades que em torno deles e depois deles se constituíram. Para isso nos alertava, com insistência, o Pastor Dimas, como neste texto publicado um ano atrás:
… coisa surpreendente, no meio de um cristianismo fatigado, a sua figura fundadora, Jesus de Nazaré, continua a ser uma figura fascinante. Há, cada vez mais, homens e mulheres que dizem não às Igrejas e sim a Jesus. …
Daí a importância dos evangelhos. Daí a importância da sua tradução. Os quatro evangelhos, escritos num grego de singeleza aristocrática, são textos fortes que têm resistido e continuam a resistir à usura do tempo, e que continuam a surpreender-nos. Meu Deus! Como são fortes aqueles textos! Na sua pluralidade, nas interpretações diferentes que fazem de Jesus, atestam o quanto o cristianismo nascente foi plural. E, como tal, anti-totalitário. O Jesus de Nazaré que deles emerge é sempre surpreendente: gosta mais de fazer perguntas do que dar respostas e tem um comportamento não poucas vezes desconcertante. Nele não podemos pôr um rótulo porque ele é inclassificável.
Quer isto dizer que a Igreja (una e plural) é Igreja porque os quatro evangelhos, ao longo dos séculos, a têm portado e suportado. Sim, portado e suportado. É que ele, o Evangelho uno e plural, é infinitamente maior do que as nossas Igrejas, e é ele o Evangelho que as tem portado e suportado na desobediência que tem sido a delas. Elas precisam dele para viver.
… E é louvável que a Conferência Episcopal Portuguesa tenha mostrado o seu desejo de ouvir outras vozes neste projeto de uma nova tradução da Bíblia. Procurei ser uma dessas vozes.
Falece-me o tempo para mais. Literalmente, falece-me o tempo.
Permitam-me que termine com uma citação de Thomas Merton. Perante o mistério insondável da vida e da morte, seja esta aspiração cristã a nossa invocação de bênção para o Pastor Dimas, nesta hora:
“Tenho um só desejo…
desaparecer em Deus,
mergulhar na sua paz,
perder-me no segredo da Sua Face.”
Peter Stilwell é padre católico do Patriarcado de Lisboa; este texto corresponde à homilia da missa de 11 de Setembro, na celebração do 30º dia da morte de António Dimas de Almeida, celebrada na Capela do Rato, em Lisboa.