
Miguel Cardoso no Santuário de Fátima, com o seu mais recente livro Do Silêncio Maior. Foto © Afonso Cardoso.
Quando pensamos nas celebrações de 12 e 13 de maio, em Fátima, vêm-nos à mente imagens do recinto repleto de peregrinos, verdade? Mas houve um aniversário dos acontecimentos de 1917, um único, em que o santuário – um dos mais visitados em todo o mundo – esteve praticamente vazio. Muitos talvez já nem se lembrem: estávamos em 2020, em plena pandemia de covid-19. O fotógrafo Miguel Cardoso foi um dos poucos autorizados a acompanhar essas celebrações presencialmente, enquanto milhões assistiam através de um ecrã. Quando regressou a casa, em Benavente, e olhou mais as mais de quatro mil fotografias que tinha tirado, percebeu que “estava ali algo muito especial”. E que a “experiência inacreditável” de ter “vivenciado Fátima daquela forma” tinha de ficar registada de um modo igualmente especial. E partilhada. Assim nasceu o livro Do Silêncio Maior, que é lançado este sábado, 18 de novembro, na Casa das Candeias (em Fátima, pois claro), e que o autor desvendou ao 7MARGENS em primeira mão.
De quatro mil fotografias, Miguel Cardoso escolheu 186 para “contar a história” daqueles dois dias, desde os preparativos para a procissão das velas ao final da missa de 13 de maio. “Como tinha sido convidado pelo próprio Santuário a fazer a cobertura fotográfica, tive acesso a zonas onde a maioria das pessoas não pode ir habitualmente, e onde eu próprio nunca tinha estado, o que me permitiu tirar fotos a partir do altar, ou na sacristia, por exemplo, e registar momentos dos ‘bastidores'”, começa por explicar o autor.
À medida que fotografava, Miguel percebeu logo “a enorme densidade” do que estava a acontecer. Já tinha estado no Santuário vezes sem conta, quer como peregrino, quer como profissional da área audiovisual, e por isso “apesar de aquele ser um espaço de oração e silêncio, estava habituado a andar ali rodeado de milhares de pessoas”, recorda. “Mas daquela vez, como estávamos numa fase em que as restrições eram enormes, só puderam participar cerca de 50 pessoas, entre bispos, padres e colaboradores do Santuário. E os jornalistas e fotógrafos, que costumam ser uma multidão, não eram mais do que dez!”.
Por isso, confessa que começou por sentir “uma solidão enorme e alguma desolação”, também porque “a solidão que se vivia naquele espaço lembrava a solidão que tantos estavam a sentir noutros locais”, diz. Marcaram-no particularmente “as linhas de velas acesas que tinham sido colocadas ao longo do recinto, a representar aqueles que não podiam estar ali fisicamente, por causa das restrições, mas também aqueles que já tinham partido devido à doença… E todos nós conhecíamos alguém que tinha falecido, ou que estava doente nessa altura… Eu próprio tinha a minha mãe doente e em isolamento”, lembra Miguel Cardoso, sem esconder a emoção.
“Ao mesmo tempo, percebia-se que nos rostos das pessoas que estavam ali existia uma intensidade também ela amplificada, como se cada um simbolizasse muitos”, refere o fotógrafo. “Senti que era um misto entre uma celebração de esperança, e ao mesmo tempo um memorial fúnebre”.
Depois, durante a missa de dia 13, houve um momento particularmente especial. “Eu estava em cima do altar, a olhar para aquele enorme vazio e a pensar que o recinto haveria de voltar a encher-se, e de repente começa a cair um nevoeiro de tal forma intenso que deixo de poder ver o recinto. Senti que foi quase como se a natureza quisesse encher o espaço e preencher esse vazio, que no fundo era um vazio cheio”.
Fotografias que comovem e uma possível exposição

O momento em que o nevoeiro preencheu o recinto é visível na foto que Miguel Cardoso escolheu para a foto da capa deste Do Silêncio Maior, por representar tão bem aquilo que viveu naqueles dois dias em Fátima. Mas é difícil para o autor escolher fotografias “preferidas” entre as milhares que tirou, porque “todas elas contribuem, à sua maneira, para contar a história do que aconteceu ali”, explica, e acrescenta: “São imagens que mostram não só aquilo que eu vi, mas aquilo que eu senti”.
Quanto à decisão de editá-las em livro, “não se trata de pôr o dedo na ferida, mas de não nos esquecermos do que aconteceu”, salvaguarda. E, tal como aquela foi uma “situação única, que nunca tinha acontecido e esperamos que não se repita”, também este livro é “único”, no sentido em que se trata de uma edição de autor, composta por apenas cem exemplares, todos eles numerados e autografados à mão.
“Foi uma coisa tão especial e vivida de forma tão exclusiva por tão poucas pessoas, que achei interessante trazer o conceito para a própria edição, também para lhe dar dignidade, e para que o livro pudesse ser mais especial e sensorial”, justifica Miguel Cardoso.
Mas não exclui a hipótese de que a obra possa vir a ter uma edição digital, ou até dar origem a uma exposição. “Já várias pessoas, depois de verem o livro, me sugeriram isso, e são hipóteses que estão em cima da mesa”, adianta, assumindo que as ideias lhe agradam “pela possibilidade de chegar a mais pessoas”.
As reações dos poucos que já viram as fotografias “têm sido muito intensas”. “Houve pessoas que ficaram em silêncio, sem palavras, com o impacto das imagens. Outras começaram a chorar, emocionadas, com a simbologia daquele vazio, a intensidade dos olhares e das expressões, e também pelo facto de o livro ser quase todo a preto e branco, com contrastes muito fortes, que usei também para mostrar que aqueles foram, ao mesmo tempo, dias de trevas e de luz”, revela Miguel Cardoso.
Um impacto que pode ser ainda maior se, ao mesmo tempo que se folheia o livro, estiver a tocar, em jeito de banda sonora, “Spiegel im Spiegel”, de Arvo Pärt, como sugere o missionário redentorista Rui Santiago, a quem coube escrever o prefácio. Os leitores do 7MARGENS podem fazer essa experiência com a seleção de fotografias que, em pré-publicação exclusiva, mostramos na galeria abaixo.
Um livro solidário e a colaboração com o 7MARGENS
Uma percentagem das receitas do livro, que Miguel Cardoso dedica “a todas as vítimas da pandemia”, reverte a favor da Casa de São Miguel, uma IPSS apoiada pelo Santuário de Fátima, que acolhe crianças e jovens ao abrigo da medida de acolhimento institucional.
A obra, que vem dentro de um estojo personalizado, poderá ser adquirida após a sessão de apresentação deste sábado, 18 de novembro, às 15h30, na Casa das Candeias, em Fátima – para qual “todos estão convidados – ou online, em miguelcardoso.com/loja. Estão também previstas sessões de apresentação no Porto e em Lisboa, em data ainda a confirmar.

Já a partir de domingo, 19 de novembro, o 7MARGENS passará a contar com uma nova rubrica semanal, intitulada “Ora vê”, em que Miguel Cardoso partilhará com os leitores uma fotografia da sua autoria, acompanhada de um curto poema-oração, escrito por Pedro Benino. Será mais uma oportunidade para descobrir o trabalho deste fotógrafo – que é também designer, ilustrador e realizador – ou “poeta visual”, como o define a curta biografia que encerra o livro.