
O Papa Pio XII no bairro de San Lorenzo, em Roma, depois do bombardeamento da zona pela aviação aliada, em 19 de julho de 1943. Pio XII evitou pronunciamento sobre campos de concentração e genocídio de judeus. Foto: Direitos reservados.
É publicado esta segunda-feira, dia 18, em Roma, um livro intitulado “Os ‘documentos’ de Pio XII para além do mito”, que inclui uma investigação com evidência de que o Papa e o Vaticano tiveram conhecimento, desde 1942, de que os fornos crematórios dos nazis estavam a exterminar judeus aos milhares. A notícia saiu em primeira mão este fim de semana, no jornal italiano Corriere della Sera. O assunto vai ser debatido numa conferência internacional, em outubro.
“No forno crematório perto de Rava Rus’ka, ou seja, em Bełzec [na Polónia, então ocupada pelos alemães], todos os dias morrem até 6.000 homens, especialmente polacos e judeus.” É esta a frase-chave de uma carta enviada em 14 de dezembro de 1942 ao secretário particular de Pio XII, que permite concluir que o pontífice não soube apenas da existência de campos de concentração, mas também do genocídio em fornos crematórios que aí se praticava em larga escala.
A carta amarelada foi recentemente encontrada nos Arquivos do Vaticano pelo arquivista vaticano Giovanni Coco. É da autoria do padre jesuíta Lother König, implicado na resistência, na Alemanha, e o destinatário foi o secretário particular de Pio XII, o também alemão Robert Leiber.
De acordo com informações do arquivista, a missiva foi recebida, mas acabou, posteriormente, na Secretaria de Estado do Vaticano e, mais tarde, foi encaminhada para os Arquivos Secretos do Vaticano, onde foi, agora encontrada.
Sublinhe-se que isto só foi possível porque, através de uma decisão do Papa Francisco, datada de março de 2020, se procedeu à desclassificação dos dossiês relativos ao longo pontificado de Pio XII (1939 a 1958), colocando à disposição dos investigadores mais de 40.000 documentos, que têm estado a ser analisados, sobretudo depois da fase mais aguda da pandemia do covid 19.
Sobre o Papa da II Guerra Mundial pairava e continua a pairar a polémica entre os que sustentavam que Pio XII, pelos seus profundos contactos na Alemanha, conhecia o que se estava a passar, antes e depois da ascensão de Hitler ao poder, e, por outro lado, os que acreditavam que ele desconhecia o genocídio e enalteciam, pelo contrário, o seu trabalho de apoio discreto a muitos judeus perseguidos, em Roma.
Neste contexto, “a importância da carta [agora descoberta] é enorme, um caso único”, na opinião daquele que a localizou e deu a conhecer. “Representa a única evidência de uma correspondência que teve de ser nutrida e prolongada no tempo”, acrescenta Giovanni Coco, que refere também a existência da menção a um relatório relativo ao campo de Auschwitz, relatório esse ainda não localizado.
Estes elementos levam o Corriere della Sera a concluir estar-se perante “uma prova fundamental da existência de um fluxo de notícias sobre os crimes nazis que chegou à Santa Sé enquanto o genocídio estava a acontecer”, sem que tal tivesse levado o Papa a um pronunciamento. No máximo, diz o jornal, limitou-se a “expimir em termos genéricos a sua dor”.
O jornal recorda, a este propósito, “uma rápida passagem do longo discurso” de Natal proferido pelo Papa Pacelli em 24 de dezembro de 1942, no qual ele se referiu às “centenas de milhares de pessoas que, sem qualquer culpa própria, por vezes apenas por razões de nacionalidade ou linhagem, estão destinados à morte ou à deterioração progressiva”. Admitindo que a referência se possa ter ficado a dever à carta do jesuíta König, o diário nota que “uma condenação explícita do Terceiro Reich e do seu regime nunca foi formulada pela Santa Sé, nem Pio XII indicou claramente os judeus como vítimas do extermínio em curso”, certamente para evitar que “uma sua posição clara agravasse a situação, dificultando o importante trabalho de ajuda aos perseguidos que a Igreja realizava naqueles dias sombrios”. SE isso não foi feito nessa altura, depois a situação complicou-se ainda mais, com com os alemães a ocuparem Roma, em setembro de 1943.

O volume que agora é publicado pelo Arquivo Apostólico Vaticano, e que contém a investigação de Giovanni Coco, vai ser apresentada numa importante conferência internacional que vai decorrer na Universidade Gregoriana, em Roma, de 9 a 11 de outubro próximo, subordinada à temática “Os novos documentos do pontificado de Pio XII e o seu significado para as relações judaico-cristãs – um diálogo entre historiadores e teólogos”.
Esta iniciativa científica é patrocinada por vários departamentos do Vaticano e diversas instituições judaicas e pode ser seguido a distância, no canal da Universidade Gregoriana no YouTube.
(Em Junho, o 7MARGENS publicou em vídeo a reportagem A Lista do Padre Carreira, onde o papel de Pio XII durante a II Guerra Mundial também era debatido; a reportagem pode ser vista nesta ligação)