O Papa já começou a mobilizar a sua diocese para o próximo Sínodo católico. Num encontro-celebração realizado no passado dia 18, fez um discurso que é já considerado um texto de referência, nesta etapa preparatória da fase diocesana. É marcante o trabalho de alicerçar a ideia da sinodalidade indo para lá do Vaticano II, para se centrar no livro bíblico dos Atos dos Apóstolos, exemplificando dimensões essenciais do processo sinodal com casos e experiências relatados nesse livro. Dedica igualmente uma atenção especial ao sentido de caminhar na escuta do Espírito Santo.
A parte final é de um sentido concreto e de uma riqueza assinaláveis, em especial quanto à atitude de abertura e inclusão (de portas e janelas abertas) que é suposto pôr em prática no Sínodo… e depois dele. Pela sua importância, reproduzimos a seguir o documento, que pode ser visto como um guião para todos os que acreditam que o próximo Sínodo é um convite surpreendente a uma reforma da Igreja que nasce da base e com a participação de todos. (M.P.)

“Os padres devem escutar-se; os religiosos devem escutar-se; os leigos devem escutar-se. E depois todos devem “inter-escutar-se”. Escutar-se, falar-se e escutar-se.” Foto captada de um vídeo do VaticanNews no canal YouTube.
Comunhão, participação, missão: três pilares
(Discurso do Papa Francisco aos fiéis da diocese de Roma)
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Como sabem – não há novidade nisso! –, está para começar um processo sinodal, um caminho em que toda a Igreja se encontra comprometida em torno do tema: “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão”: três pilares. Estão previstas três fases, que se desenvolverão entre outubro de 2021 e outubro de 2023. Este itinerário foi pensado como um dinamismo de escuta recíproca. Quero sublinhar isto: um dinamismo de escuta recíproca, realizado em todos os níveis da Igreja, envolvendo todo o povo de Deus.
O cardeal vigário [que substitui o Papa à frente da diocese de Roma] e os bispos auxiliares devem escutar-se; os padres devem escutar-se; os religiosos devem escutar-se; os leigos devem escutar-se. E depois todos devem “inter-escutar-se”. Escutar-se, falar-se e escutar-se. Não, não se trata de coligir opiniões. Também não é um inquérito; trata-se antes de escutar o Espírito Santo, como encontramos no livro do Apocalipse: “Quem tem ouvidos escute o que o Espírito diz às Igrejas” (2,7). Ter ouvidos, escutar, é o primeiro compromisso. Trata-se de ouvir a voz de Deus, captar a sua presença, intercetar a sua passagem e o seu sopro de vida.
O profeta Elias descobriu que Deus é sempre um Deus das surpresas, até mesmo na forma como passa e se faz sentir: “Um vento forte e impetuoso fendia as montanhas e quebrava os rochedos […], mas o Senhor não estava no vento; depois do vento houve um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto; depois do terremoto, um fogo, mas o Senhor não estava no fogo; depois do fogo, o sussurro de uma leve brisa. Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com o manto” (1Rs 19,11-13).
Eis como Deus nos fala. E é para essa “brisa suave” – que os exegetas também traduzem também como “voz subtil do silêncio” ou como “um fio de silêncio sonoro” – que devemos preparar os nossos ouvidos, para ouvir essa brisa de Deus.
O caminho da Palavra

A primeira etapa do processo (outubro de 2021 – abril de 2022) é aquela que diz respeito às Igrejas diocesanas individuais. E é por isso que eu estou aqui, como vosso bispo, para compartilhar, porque é muito importante que a Diocese de Roma se empenhe com convicção nesse caminho. Seria “o máximo” se a diocese do papa não se empenhasse nisso, não? Sê-lo-ia também para o Papa e para vocês.
O tema da sinodalidade não é o capítulo de um tratado de eclesiologia, muito menos uma moda, um slogan ou novo termo a ser usado ou instrumentalizado nos nossos encontros. Não! A sinodalidade exprime a natureza da Igreja, a sua forma, o seu estilo, a sua missão.
E, portanto, falamos de Igreja sinodal, evitando, porém, considerar que esse seja um título entre outros, um modo de pensá-la que preveja alternativas. Não digo isso com base numa opinião teológica, nem mesmo como um pensamento pessoal, mas seguindo aquele que podemos considerar como o primeiro e mais importante “manual” de eclesiologia, que é o livro dos Atos dos Apóstolos.
A palavra “sínodo” contém tudo aquilo de que precisamos para entender: “caminhar juntos”. O livro dos Atos é a história de um caminho que parte de Jerusalém e, atravessando a Samaria e a Judeia, prosseguindo nas regiões da Síria e da Ásia Menor e, depois, na Grécia, se conclui em Roma. Essa estrada narra a história em que caminham juntas a Palavra de Deus e as pessoas que voltam a atenção e a fé para e nessa Palavra.
A Palavra de Deus caminha connosco. Todos são protagonistas, ninguém pode ser considerado simples figurante. É preciso entender bem isto: todos são protagonistas. O papa, o cardeal vigário, os bispos auxiliares não são os protagonistas. Não: todos somos protagonistas e ninguém pode ser considerado simples figurante.
Os ministérios, naquela época, ainda eram considerados autênticos serviços. E a autoridade nascia da escuta da voz de Deus e das pessoas – nunca se deve separá-las – que mantinha “em baixo” aqueles que a recebiam. O “baixo” da vida, ao qual era preciso prestar o serviço da caridade e da fé.
Mas essa história não está em movimento apenas pelos lugares geográficos que atravessa. Ela exprime uma inquietação interior contínua: essa é uma palavra-chave, a inquietação interior. Se um cristão não sente essa inquietação interior, se não a vive, alguma coisa lhe falta; e essa inquietação interior nasce precisamente da fé e convida-nos a avaliar o que é melhor fazer, o que deve ser mantido ou mudado. Essa história ensina-nos que ficar parado não pode ser uma boa condição para a Igreja (cf. Evangelii gaudium, n. 23). E o movimento é consequência da docilidade ao Espírito Santo, que é o diretor dessa história em que todos são protagonistas inquietos e nunca parados.
Pedro e Paulo não são apenas duas pessoas cada qual com o seu carácter específico; são visões inseridas em horizontes maiores do que eles, capazes de se repensar em relação ao que acontece, testemunhas de um impulso que os põe em crise – outra expressão para lembrar sempre: pôr em crise –, que os leva a ousar, perguntar, mudar de opinião, errar e aprender com os erros; sobretudo a esperar, apesar das dificuldades.
São discípulos do Espírito Santo, que os faz descobrir a geografia da salvação divina, abrindo portas e janelas, derrubando muros, rompendo correntes, libertando fronteiras. Então, pode ser necessário partir, mudar de caminho, superar convicções que nos prendem e nos impedem de nos mover e de caminhar juntos.
O impulso do Espírito

Podemos ver o Espírito que impulsiona Pedro a ir a casa de Cornélio, o centurião pagão, apesar das suas hesitações. Lembrem-se: Pedro tivera uma visão que o havia perturbado, na qual lhe era pedido que comesse coisas consideradas impuras; apesar da garantia de que o que Deus purifica já não deve ser considerado impuro, ele ficou perplexo. Estava a tentar entender, e aí vieram os homens mandados por Cornélio.
Ele também tinha recebido uma visão e uma mensagem. Era um oficial romano piedoso, simpatizante do judaísmo, mas ainda não o suficiente para ser plenamente judeu ou cristão: nenhuma “alfândega” religiosa o teria deixado passar. Era um pagão, mas foi-lhe revelado que as suas orações chegaram a Deus, e que ele deve mandar alguém dizer a Pedro para ir a sua casa. Nessa suspensão, por um lado Pedro com as suas dúvidas, e, por outro, Cornélio que espera naquela zona de sombra, é o Espírito quem dissolve as resistências de Pedro e abre uma nova página da missão.
Assim se move o Espírito: assim. O encontro entre os dois sela uma das mais belas frases do cristianismo. Cornélio tinha ido ao seu encontro, havia-se lançado aos seus pés, mas Pedro, levantando-o, disse-lhe: “Levanta-te: eu também sou um homem!” (At 10,26), e todos dizemos isso: “Eu sou um homem, eu sou uma mulher, somos humanos”, e todos deveríamos dizer isso, até mesmo os bispos, todos nós: “Levanta-te: eu também sou um homem”. E o texto sublinha que ele conversou com ele de uma maneira familiar (cf. v. 27).
O cristianismo deve ser sempre humano, humanizante, deve reconciliar diferenças e distâncias, transformando-as em familiaridade, em proximidade. Um dos males da Igreja, aliás uma perversão, é esse clericalismo que separa o padre, o bispo das pessoas. O bispo e o padre separado das pessoas é um funcionário, não é um pastor. São Paulo VI gostava de citar a máxima de Terêncio: “Sou homem, nada do que é humano me é estranho”.
O encontro entre Pedro e Cornélio resolveu um problema, favoreceu a decisão de se sentir livre para pregar diretamente aos pagãos, na convicção – são as palavras de Pedro – “de que Deus não faz acepção de pessoas” (At 10,34). Em nome de Deus, não se pode discriminar. E a discriminação é um pecado também entre nós: “Nós somos os puros, nós somos os eleitos, nós somos deste movimento que sabe tudo, nós somos…”. Não. Nós somos Igreja, todos juntos.
E, vejam, não podemos entender a “catolicidade” sem nos referirmos a esse campo grande, hospitaleiro, que nunca demarca as fronteiras. Ser Igreja é um caminho para entrar nessa amplitude de Deus. Depois, voltando aos Atos dos Apóstolos, há os problemas que nascem relacionados com a organização do crescente número de cristãos e, sobretudo, para responder às necessidades dos pobres.
Alguns assinalam que as viúvas eram negligenciadas. O modo como se encontrará a solução será reunir a assembleia dos discípulos, tomando juntos a decisão de designar aqueles sete homens que se ocupariam a tempo inteiro na diakonia, no serviço às mesas (At 6,1-7). E, assim, com o discernimento, com as necessidades, com a realidade da vida e a força do Espírito, a Igreja vai em frente, caminha juntamente, é sinodal. Mas há sempre o Espírito como grande protagonista da Igreja.
Dialéticas do Espírito

Além disso, há também o confronto entre visões e expectativas diferentes. Não devemos temer que isso ocorra ainda hoje. Talvez pudéssemos discutir assim! São sinais da docilidade e abertura ao Espírito. Também podem surgir confrontos que atingem picos dramáticos, como ocorreu diante do problema da circuncisão dos pagãos, até à deliberação daquele que chamamos de Concílio de Jerusalém, o primeiro Concílio.
Como também acontece hoje, há um modo rígido de considerar as circunstâncias, que mortifica a makrothymía de Deus, isto é, aquela paciência do olhar que se alimenta de visões profundas, visões amplas, visões longas: Deus vê longe, Deus não tem pressa. A rigidez é outra perversão que é um pecado contra a paciência de Deus, é um pecado contra essa soberania de Deus. Ainda hoje isso ocorre.
Havia ocorrido naquela época: alguns, convertidos do judaísmo, consideravam, na sua autorreferencialidade, que não podia haver salvação sem submissão à Lei de Moisés. Desse modo, contestava-se Paulo, que proclamava a salvação diretamente no nome de Jesus. Contrastar a sua ação comprometeria o acolhimento dos pagãos que, entretanto, se estavam a converter.
Paulo e Barnabé foram mandados a Jerusalém pelos apóstolos e pelos anciãos. Não foi fácil: diante desse problema, as posições pareciam inconciliáveis, discutiu-se longamente. Tratava-se de reconhecer a liberdade da ação de Deus e de que não havia obstáculos que pudessem impedi-lo de chegar ao coração das pessoas, fosse qual fosse a condição de origem, moral ou religiosa.
O que desbloqueou a situação foi a adesão à evidência de que “Deus, que conhece os corações” (o cardiognosta, conhece os corações), Ele mesmo sustentava a causa em favor da possibilidade de que os pagãos pudessem ser admitidos à salvação, “concedendo também a eles o Espírito Santo, tal como a nós” (At 15,8), concedendo assim o Espírito Santo também aos pagãos, como a nós.
Desse modo, prevaleceu o respeito por todas as sensibilidades, temperando os excessos; valorizou-se a experiência tida por Pedro com Cornélio: assim, no documento final, encontramos o testemunho do protagonismo do Espírito nesse caminho de decisões e da sabedoria que é sempre capaz de inspirar: “Pareceu bem, ao Espírito Santo e a nós, não lhes impor outra obrigação”, exceto a necessária (At 15,28).
“Nós”: neste Sínodo, percorremos o caminho de poder dizer “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós”, porque vocês estarão em diálogo contínuo entre vocês, sob a ação do Espírito Santo, também em diálogo com o Espírito Santo.
Não se esqueçam desta fórmula: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não lhes impor outra obrigação”: pareceu bem ao Espírito Santo e a nós. Assim vocês deverão tentar expressar-se, nesta estrada sinodal, neste caminho sinodal.
Se não houver o Espírito, será um parlamento diocesano, mas não um Sínodo. Não é um parlamento diocesano o que estamos a fazer, não estamos a fazer um estudo sobre isto ou aquilo; não: estamos fazendo um caminho de nos escutarmos e de escutar o Espírito Santo, de discutir e também discutir com o Espírito Santo, que é um modo de rezar.
A eclesiologia substitutiva

“O Espírito Santo e nós”. Em vez disso, haverá sempre a tentação de fazer sozinho, expressando uma eclesiologia substitutiva – existem muitas eclesiologias substitutivas – como se, tendo ascendido ao Céu, o Senhor tivesse deixado um vazio a ser preenchido, e nós o tivéssemos preenchido. Não, o Senhor deixou-nos o Espírito! Mas as palavras de Jesus são claras: “Eu pedirei ao Pai, e ele dar-vos-á outro Paráclito, para que permaneça com vocês para sempre. […] Eu não vos deixarei órfãos” (Jo 14,16.18).
Para a implementação dessa promessa, a Igreja é sacramento, como afirmado na Lumen gentium 1: “A Igreja, em Cristo, é de algum modo o sacramento, ou seja, o sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano”.
Nessa frase, que recolhe o testemunho do Concílio de Jerusalém, está a negação de quem se obstina em tomar o lugar de Deus, pretendendo modelar a Igreja sobre as suas próprias convicções culturais e históricas, forçando-a a fronteiras armadas, a alfândegas culpabilizantes, a espiritualidades que blasfemam contra a gratuidade da ação envolvente de Deus.
Quando a Igreja é testemunha, em palavra e factos, do amor incondicional de Deus, da sua amplitude hospitaleira, ela exprime verdadeiramente a sua própria catolicidade. E é impulsionada, interior e exteriormente, a atravessar os espaços e os tempos.
O impulso e a capacidade vêm do Espírito: “Recebereis a força do Espírito Santo que descerá sobre vós e sereis as minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8). Receber a força do Espírito Santo para ser testemunhas: esse é o nosso caminho, Igreja, e nós seremos Igreja se andarmos nesse caminho.
Sacramento de uma promessa

E isto é importante: o modo de entender, de interpretar. Uma hermenêutica peregrina, isto é, que está a caminho. O caminho que começou depois do Concílio? Não. Começou com os primeiros Apóstolos e continua. Quando a Igreja se fecha, já não é Igreja, mas uma bela associação piedosa, porque enjaula o Espírito Santo. Hermenêutica peregrina que sabe conservar o caminho iniciado nos Atos dos Apóstolos. Caso contrário, o Espírito Santo seria humilhado.
Gustav Mahler – já disse isto noutras ocasiões – defendia que a fidelidade à tradição não consiste em adorar as cinzas, mas em conservar o fogo. Eu pergunto: antes de começarem este caminho sinodal, a que é que vocês estão mais inclinados: a conservar as cinzas da Igreja, isto é, da vossa associação, do vosso grupo, ou a conservar o fogo? Têm mais tendência a adorar as coisas que vos encerram – sou de Pedro, sou de Paulo, sou desta associação, tu és da outra, sou padre, sou bispo – ou sentem-se chamados a guardar o fogo do Espírito? Gustav Mahler foi um grande compositor, mas é também um mestre de sabedoria com essa reflexão. A Dei Verbum (n. 8), citando a Carta aos Hebreus, afirma: “‘Deus, que muitas vezes e de diversos modos nos tempos antigos havia falado aos pais’ (Hb 1,1), não cessa de falar com a Esposa do seu Filho”.
Há uma fórmula feliz de São Vicente de Lérins que, comparando o ser humano em crescimento e a Tradição que se transmite de uma geração à outra, afirma que não se pode conservar o “depósito da fé” sem fazê-lo progredir: “Consolidando-se com os anos, desenvolvendo-se com o tempo, aprofundando-se com a idade” (Commonitorium primum, 23,9) – “ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate”.
Este é o estilo do nosso caminho: as realidades, se não caminham, são como as águas. As realidades teológicas são como a água: se a água não flui e é imprópria é a primeira a entrar em putrefação. Uma Igreja imprópria começa a ficar putrefacta.
Vejam como a nossa Tradição é uma massa fermentada, uma realidade em fermento na qual podemos reconhecer o crescimento e, na massa, uma comunhão que se realiza em movimento: caminhar juntos realiza a verdadeira comunhão. É ainda o livro dos Atos dos Apóstolos que nos ajuda, mostrando-nos que a comunhão não suprime as diferenças.
É a surpresa do Pentecostes, quando as línguas diferentes não são obstáculo: embora fossem estrangeiros uns em relação aos outros, graças à ação do Espírito, “cada um ouve na sua própria língua materna” (At 2,8). Sentir-se em casa, diferentes mas solidários no caminho. Desculpem-me pela extensão, mas o Sínodo é uma coisa séria, e por isso me permiti falar…
O senso de fé para as coisas de Deus

Voltando ao processo sinodal, a fase diocesana é muito importante, porque realiza a escuta da totalidade dos batizados, sujeito do sensus fidei infalível in credendo. Há muitas resistências para superar a imagem de uma Igreja que faz uma distinção rígida entre chefes e subalternos, entre quem ensina e quem deve aprender, esquecendo-se de que Deus gosta de inverter as posições: “Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,52), disse Maria.
Caminhar juntos leva a descobrir como linha própria a horizontalidade em vez da verticalidade. A Igreja sinodal restaura o horizonte do qual surge o sol [que é] Cristo: erigir monumentos hierárquicos significa encobri-lo. Os pastores caminham com o povo: nós, pastores, caminhamos com o povo, às vezes na frente, às vezes no meio, às vezes atrás. O bom pastor deve movimentar-se assim: na frente para guiar, no meio para encorajar e não esquecer o cheiro do rebanho, atrás porque o povo também tem “faro”. Tem faro para encontrar novas vias para o caminho ou para encontrar a estrada perdida.
Quero sublinhar isso, e também aos bispos e aos padres da diocese. No vosso caminho sinodal, perguntem-se: “Eu sou capaz de caminhar, de me movimentar na frente, no meio e atrás, ou estou apenas na cátedra, mitra e báculo?’. Pastores misturados, mas pastores, não rebanho: o rebanho sabe que somos pastores, o rebanho sabe a diferença. Na frente para indicar a estrada, no meio para sentir o que o povo sente e atrás para ajudar quem fica um pouco para trás e para deixar que o povo veja um pouco com o seu faro onde estão as melhores ervas.
O sensus fidei qualifica todos na dignidade da função profética de Cristo (cf. Lumen gentium, n. 34-35), para que possam discernir quais são os caminhos do Evangelho no presente. É o “faro” das ovelhas. Mas prestemos atenção porque, na história da salvação, todos somos ovelhas em relação ao Pastor que é o Senhor. A imagem ajuda-nos a entender as duas dimensões que contribuem para esse “faro”. Uma pessoal e outra comunitária: somos ovelhas e fazemos parte do rebanho, que neste caso representa a Igreja.
Lemos no Breviário, no Ofício das Leituras, o “De pastoribus”, de Agostinho, e lá ele diz-nos: “Com vocês sou ovelha, para vocês sou pastor”. Esses dois aspetos, pessoal e eclesial, são inseparáveis: não pode haver sensus fidei sem participação na vida da Igreja, que não é apenas ativismo católico, deve haver sobretudo aquele “sentir” que se alimenta dos “sentimentos de Cristo” (Fl 2,5).
O exercício do sensus fidei não pode ser reduzido à comunicação e ao debate entre opiniões que possamos ter sobre este ou aquele tema, aquele aspeto individual da doutrina ou aquela regra da disciplina. Não, estes são instrumentos, são verbalizações, são expressões dogmáticas ou disciplinares. Mas não deve prevalecer a ideia de distinguir maiorias e minorias: isso faz-se num parlamento.
Quantas vezes os “descartados” se tornaram “pedras angulares” (cf. Sl 118,22; Mt 21,42), os “distantes” se tornaram “próximos” (Ef 2,13). Os marginalizados, os pobres, os sem esperança foram eleitos como sacramento de Cristo (cf. Mt 25,31-46). A Igreja é assim.
E quando alguns grupos quiseram distinguir-se mais, acabaram sempre mal, até mesmo na negação da Salvação, nas heresias. Pensemos naquelas heresias que pretendiam levar em frente a Igreja, como o pelagianismo e, depois, o jansenismo. Todas as heresias acabaram mal. O gnosticismo e o pelagianismo são tentações contínuas da Igreja.
Preocupamo-nos tanto, e com razão, em que tudo possa honrar as celebrações litúrgicas, e isso é bom – mesmo que muitas vezes acabemos confortando-nos apenas a nós mesmos –, mas São João Crisóstomo admoesta-nos: “Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que ele seja objeto de desprezo nos seus membros, isto é, nos pobres, desprovidos de panos para se cobrirem. Não o honres aqui na igreja com tecidos de seda, enquanto lá fora tu o ignoras quando ele sofre com o frio e a nudez. Aquele que disse: ‘Este é o meu corpo’, confirmando o facto com a palavra, também disse: ‘Vós vistes-me com fome e não me destes de comer’ e: ‘Sempre que não fizestes essas coisas a um dos mais pequenos entre estes, também não o fizestes a mim’” (Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3).
“Mas, padre, o que está dizer? Os pobres, os mendigos, os jovens toxicodependentes, todos esses que a sociedade descarta, fazem parte do Sínodo?” Sim, meu caro, sim, minha cara: não sou eu quem diz, quem o diz é o Senhor: eles fazem parte da Igreja. A tal ponto que, se vocês não os chamarem, eles verão como fazer isso, ou, se vocês não forem ao encontro deles para ficarem um pouco com eles, para escutarem não o que eles dizem, mas o que eles sentem, até os insultos que vos lançarão, vocês não estarão a fazer bem o Sínodo. O Sínodo vai até aos limites, inclui a todos.
O Sínodo também é abrir espaço para o diálogo sobre as nossas misérias, as misérias que eu tenho como vosso bispo, as misérias que os bispos auxiliares têm, as misérias que os padres e os leigos e quem pertence às associações têm; tomar toda essa miséria! Mas se nós não incluirmos os “miseráveis” – entre aspas – da sociedade, os descartados, jamais poderemos encarregar-nos das nossas misérias. E isto é importante: que, no diálogo, possam emergir as próprias misérias, sem justificativas. Não tenham medo!
Não a um povo de privilegiados

É preciso sentir-se parte de um único grande povo destinatário das divinas promessas, abertas a um futuro que espera que cada um possa participar do banquete preparado por Deus para todos os povos (cf. Is 25,6).
E aqui gostaria de especificar que, mesmo sobre o conceito de “povo de Deus”, pode haver hermenêuticas rígidas e antagónicas, presas à ideia de exclusividade, de privilégio, como ocorreu com a interpretação do conceito de “eleição” que os profetas corrigiram, indicando como ele deveria ser retamente entendido.
Não se trata de um privilégio – ser povo de Deus – mas de um dom que alguém recebe. Para si mesmo? Não: para todos; o dom é para doar: essa é a vocação. É um dom que alguém recebe para todos, que nós recebemos para os outros, é um dom que é também uma responsabilidade. A responsabilidade de testemunhar nos factos e não só com palavras as maravilhas de Deus, que, se conhecidas, ajudam as pessoas a descobrirem a sua existência e a acolherem a sua salvação.
A eleição é um dom, e a pergunta é: como é que doo o meu modo de ser cristão, a minha confissão cristã? A vontade salvífica universal de Deus oferece-se à história, a toda a humanidade por meio da encarnação do Filho, para que todos, pela mediação da Igreja, possam tornar-se filhos seus e irmãos e irmãs entre si. É desse modo que se realiza a reconciliação universal entre Deus e a humanidade, aquela unidade de todo o género humano de que a Igreja é sinal e instrumento (cf. Lumen gentium, n. 1).
Ainda antes do Concílio Vaticano II, tinha amadurecido a reflexão, elaborada sobre o estudo cuidadoso dos Padres, de que o povo de Deus se orienta para a realização do Reino, rumo à unidade do género humano criado e amado por Deus. E a Igreja, como nós a conhecemos e experimentamos, na sucessão apostólica, deve sentir-se em relação com essa eleição universal e, por isso, desempenhar a sua missão. Com esse espírito eu escrevi a Fratelli tutti. A Igreja, como dizia São Paulo VI, é mestra de humanidade que hoje tem o objetivo de se tornar escola de fraternidade.
“Isto eu vos digo…”

Por que é que eu vos digo estas coisas? Porque, no caminho sinodal, a escuta deve levar em conta o sensus fidei, mas não deve ignorar todos aqueles “pressentimentos” encarnados onde não esperaríamos: pode haver um “faro sem cidadania”, mas não menos eficaz. O Espírito Santo, na sua liberdade, não conhece fronteiras e nem se deixa limitar pelas pertenças.
Se a paróquia é a casa de todos no bairro, e não um clube exclusivo, eu recomendo: deixem abertas as portas e as janelas, não se limitem a levar em consideração apenas quem frequenta ou pensa como vocês – que serão 3%, 4% ou 5%, não mais. Permitam que todos entrem… Permitam-se, vocês mesmos, ir ao seu encontro e deixar-se interrogar, que as perguntas deles sejam as vossas perguntas, permitam-se caminhar juntos: o Espírito conduzi-los-á, tenham confiança no Espírito. Não tenham medo de entrar em diálogo e deixem-se sacudir pelo diálogo: é o diálogo da salvação.
Não desanimem, preparem-se para as surpresas. Há um episódio do livro dos Números (cap. 22) que conta a história de uma jumenta que se tornará profetisa de Deus: os judeus estão prestes a concluir a longa viagem que os levará à terra prometida. A sua passagem assusta o rei Balac de Moabe, que se confia aos poderes do mago Balaão para impedir essas pessoas, esperando evitar uma guerra. O mago, fiel ao seu modo, pergunta a Deus o que fazer.
Deus diz-lhe para não condescender com o rei, que, porém, insiste, e então ele cede e monta em uma jumenta para cumprir a ordem recebida. Mas a jumenta muda de direção porque vê um anjo com a espada desembainhada que está ali para representar a contrariedade de Deus.
Balaão puxa-a e espanca-a, sem conseguir fazer com que ela volte para o caminho. Até que a jumenta começa a falar, iniciando um diálogo que abrirá os olhos do mago, transformando a sua missão de maldição e morte em missão de bênção e vida.
Essa história ensina-nos a ter confiança que o Espírito sempre fará ouvir a sua voz. Até mesmo uma jumenta pode tornar-se a voz de Deus, abrir os nossos olhos e converter as nossas direções equivocadas. Se uma jumenta pode fazer isso, quanto mais um batizado, uma batizada, um padre, um bispo, um papa… Basta confiar-se ao Espírito Santo, que usa todas as criaturas para falar connosco: ele apenas nos pede que limpemos os nossos ouvidos para ouvir bem.
Vim aqui para vos encorajar a levar a sério este processo sinodal e para vos dizer que o Espírito Santo precisa de vós. E isto é verdade: o Espírito Santo precisa de nós. Escutem-no escutando-se. Não deixem ninguém de fora ou atrás.
Será bom para a Diocese de Roma e para toda a Igreja, que não se fortalece apenas através da reforma das estruturas – este é o grande engano! –, dando instruções, oferecendo retiros e conferências, ou à força de diretrizes e programas – isso é bom, mas como parte de outra coisa –, mas redescobrindo que é um povo que quer caminhar junto, entre nós e com a humanidade. Um povo, o de Roma, que contém a variedade de todos os povos e de todas as condições: que riqueza extraordinária na sua complexidade!
Mas é preciso sair dos 3-4% que representam os mais próximos e ir além para escutar os outros, os quais até vos poderão insultar ou expulsar, mas é preciso ouvir o que pensam, sem querer impor as nossas coisas: deixar que o Espírito nos fale.
Neste tempo de pandemia, o Senhor impulsiona a missão de uma Igreja que é sacramento de cuidado. O mundo levantou o seu grito, manifestou a sua vulnerabilidade: o mundo precisa de cuidado.
Coragem e avante! Obrigado!
[Texto original em italiano; esta tradução tem por base a tradução publicada pela newsletter do Instituto Humanitas da Unisinos, Brasil, da autoria de Moisés Sbardelotto, aqui adaptada para o português de Portugal]