
Presente na conclusão do encontro, o Papa lamentou que hoje dar à luz um filho seja considerado um esforço titânico privado, em vez de um valor partilhado que todos reconhecem e apoiam. Foto © Vatican Media.
Já imaginaram um mundo sem crianças?
Pelo terceiro ano, esta pergunta ressoou no Auditório da Conciliação, em Roma, onde nos dias 11 e 12 de maio decorreram os Estados Gerais da Natalidade, um evento que chama à reflexão e à ação sobre aquela que pode ser definida como uma emergência (social, económica e espiritual): a diminuição do número de nascimentos.
Muitos os convidados de várias áreas – politica, religião, empresas, bancas, desporto, espetáculo, jornalismo – reunidos para pensar em como passar do inverno à primavera demográfica, porque um filho “é de todos e para todos, afirmam os organizadores, é um investimento para o Bem Comum e não é apenas um assunto de família”. Por isto, o Fórum das Associações Familiares e a Fundação para a Natalidade, constituída em março de 2022, convidaram todos a assumir a própria responsabilidade na questão.
Entre os convidados de honra, o Papa Francisco, o Presidente da Republica e a primeira-ministra, o presidente da conferência episcopal, representantes dos partidos, ministros, artistas. O objetivo – afirmou Gigi De Palo, presidente da Fundação e promotor de várias iniciativas para a natalidade em Itália – era fazer síntese e encontrar soluções para uma questão transversal, que abrange toda a população, atual e futura, juntando diferentes sensibilidades e competências. O objetivo último é inverter a tendência demográfica.
Mas quais os números desta tendência?
Para dar alguns, em Itália em 2022 nasceram 339 mil crianças (o número mais baixo desde a unificação), face a 700 mil mortos. O número médio de filhos por mulher é de 1,24, contra um número de filhos desejados, se as condições fossem favoráveis, de 2,4. Isto quer dizer que a falta de políticas familiares está a privar cada família de, pelo menos, um filho, e a sociedade dos recursos necessários para sustentar os seus pilares fundamentais: sistema escolar, saúde, pensões. Pois o sistema de welfare italiano fundamenta-se num pacto intergeracional garantido pelas contribuições fiscais. Com menos crianças é fácil prever o colapso iminente do estado social.
E em Portugal?
Em 2022, nasceram 83.915 bebés e registaram-se 124.755 óbitos. O número de filhos por mulher em 2021 foi de 1,35. Um cenário praticamente equivalente.
Para Francisco: os filhos, indicador da esperança de um povo

O Papa Francisco iniciou o seu discurso manifestando empatia com os casais que se encontram perante a aventura de constituir família. “Quando nascem poucos filhos é porque um povo tem pouca esperança. Isto tem repercussões não só económicas e sociais, mas enfraquece a confiança no futuro”. O Papa lamenta que hoje dar à luz um filho seja considerado um esforço titânico privado, em vez de um valor partilhado que todos reconhecem e apoiam, e este sentido de solidão leva à resignação a existências em que cada um pensa por si, “com a consequência que só os mais ricos podem ter maior liberdade em escolher que forma dar às próprias vidas, e isto é injusto além de ser humilhante”.
O pontífice evidencia como, devido a guerras, pandemias, migrações e crises climáticas, o futuro parece incerto e nas novas gerações aumenta o sentido de precariedade, pelo que “o amanhã parece uma montanha impossível de escalar”. E fala nos problemas reais das famílias: salários insuficientes, trabalho precário, casas com preços incomportáveis. “São problemas que interpelam a política, porque o mercado livre, sem os indispensáveis corretivos, torna-se selvagem e produz desigualdades sempre mais graves”.
Francisco fala ainda de uma cultura inimiga da família, centrada nas necessidades dos indivíduos e não das famílias; das mulheres, “escravas da regra do trabalho seletivo”, que muitas vezes as obriga a escolher entre trabalho e maternidade ou cuidados informais de familiares não autónomos.
O Papa agradeceu aos organizadores dos Estados Gerais, reconhecendo que graças a eles muito foi feito, mas não é suficiente: é necessário mudar de mentalidade, porque “a família não é parte do problema, mas é parte da sua solução. Não podemos aceitar que a nossa sociedade deixe de ser generativa e degenere na tristeza, um mal-estar cinzento. Não podemos aceitar passivamente que tantos jovens sejam obrigados a baixar a fasquia do desejo, contentando-se a sub-rogados egoísticos” – como dinheiro, carreira, tempo livre – os quais, fora de um projeto gerativo maior, levam ao cansaço interior que anestesia os grandes desejos.
Referindo-se às migrações, o Papa contrapõe tristeza e esperança: “A natalidade, como o acolhimento, que não podem ser contrapostas porque representam duas faces da mesma medalha, revelam-nos quanta felicidade existe numa sociedade. Uma comunidade feliz desenvolve naturalmente os desejos de gerar e de integrar, de acolher, enquanto uma sociedade infeliz reduz-se a uma soma de indivíduos que tentam defender a toda custa o que possuem”.
E conclui a intervenção reafirmando que o desafio da natalidade é uma questão de esperança, entendida não como otimismo (ilusão ou emoção), mas como virtude concreta e atitude de vida. “Alimentar a esperança é uma ação social, intelectual, artística, politica, é meter as próprias capacidades e recursos ao serviço do bem comum, é semear futuro. A esperança gera mudança. É a mais pequena das virtudes mas é a que te leva mais longe. A esperança não desilude (cfr Rm 5,5)”.
“Não nos resignemos, não pensemos que a história seja já escrita, que nada podemos fazer para inverter a tendência – conclui o Papa Francisco – porque é nos desertos mais áridos que Deus abre novos caminhos” (cfr Is 43,19). Procuramos juntos este caminho.”
Medidas concretas: conquistas e propostas

Este ano, o mote dos Estados Gerais foi #quota500mil, rumo a 500.000 bebés nascidos a cada ano até 2033, para retomar uma curva de crescimento e sustentabilidade. Para isto é necessário reformar o sistema fiscal – dizem os organizadores, que já podem contar com conquistas interessantes dos últimos anos.
Uma destas é o chamado cheque único universal, que desde março do ano passado reconhece um valor mensal até 190€ por cada filho até aos 21 anos. Isto quer dizer que todas as famílias podem obtê-lo, sem um valor máximo de remunerações, recebendo no mínimo 54€ mensais. Agora o convite é a utilizar os fundos do plano de recuperação italiano para as políticas familiares, que na União Europeia representam uma média de 8,4% das despesas da segurança social, com picos de 12% em países como Luxemburgo, Irlanda, Hungria, e menos de 5% em Portugal, Grécia, Itália.
O cheque único foi o resultado de uma batalha de associações e movimentos civis que envolveram, pressionaram e ajudaram a política a ver, analisar e assumir compromissos, conforme o mais nobre princípio da subsidiariedade.
Muito falta ainda fazer, mas parece que algo se partiu no icebergue indiferente deste frio demográfico que arrisca hibernar a Europa. Talvez seja o germinar de uma nova consciência que – para usar as palavras do Papa Francisco – nos faça “recomeçar a nascer, não apenas fisicamente, mas interiormente, para vir à luz a cada dia e iluminar de esperança o amanhã”.