
“Se há verdade que os últimos dois atos eleitorais nos mostraram é que o nosso voto conta, que os resultados das eleições ainda são decididos pelo povo nas urnas.” Foto © Alex Arnaud Jaegers | Unsplash
Costuma dizer-se que o Natal é quando o Homem quiser, mas depois das últimas eleições legislativas quase que se pode alterar o provérbio para “O Natal é quando a abstenção quiser”. Não houve bacalhau, é pouco provável que alguém se tenha deliciado com sobremesas da avó enquanto acompanhava as projeções e também ninguém correu até aos centros comerciais para comprar as típicas meias ou velas de última hora. Mas, em tudo o resto, a noite eleitoral foi tal e qual um serão de Natal: cada família reuniu-se esperançosamente na sua casa, o menu da consoada foi adorado por uns e odiado por outros e, no fim, os pais e avós uniram-se por este país fora para convencerem as crianças de que os presentes que receberam são bem melhores (e mais baratos e fáceis de arranjar) do que aqueles que pediram.
Não falo da maioria absoluta, nem da distribuição dos lugares no Parlamento, mas sim daquele presente que teimam em oferecer-nos ano após ano, que todos se queixam por não o usarmos (tal é a sua inutilidade!) e que, mesmo assim, nada fazemos para impedir que apareça de novo debaixo da árvore de Natal – a abstenção.
Este ano, quando se deram as doze badaladas (que é como quem diz as oito da noite), foi a alegria total. Raiavam os sorrisos pelos líderes partidários da esquerda à direita, deslumbravam-se os analistas políticos na televisão e, na rádio, quase que se pegava nas vuvuzelas para se festejar o fantástico golo da “lição cívica dada pelos portugueses ao reduzirem a abstenção em relação às legislativas de 2019 e de 2015”.
Não é preciso saber muito de futebol para perceber que, apesar do jogo de 30 de janeiro ter sido o melhor das últimas três jornadas, continuamos a mandar bolas ao poste. A abstenção em território nacional (excluem-se desta contabilização os círculos da Europa e de Fora da Europa) fixou-se nos 42,04% e foi a terceira maior registada em legislativas, a seguir às eleições de 2015 (44,1%) e de 2019 (51,4%). Foram quase quatro milhões os portugueses que não exerceram o seu direito de voto nestas eleições antecipadas, que se destacaram não só por terem sido provocadas pelo segundo chumbo de um Orçamento do Estado desde o 25 de abril, mas também porque tudo fazia prever (ainda que erradamente) que fossem renhidas – mas já lá iremos, às mil e uma sondagens e à sua influência nos níveis de abstenção.
Por agora, e sem nos perdermos numa imensidão de estatísticas, foquemo-nos nos chamados “eleitores-fantasma”: em Portugal, estima-se que andem perto de um milhão. Mais do que percebermos as razões para esta discrepância de números e desatualização dos cadernos eleitorais, devemos focarmo-nos nas suas consequências. Acima de tudo, os eleitores-fantasma minam a credibilidade e a imagem da nossa democracia. Como é que se convence alguém – que não percebe a festa que é a democracia – a ir votar quando o que lhe damos a entender é que não nos importa calcular corretamente quem vota ou não? Estaremos verdadeiramente a lutar contra o problema quando parecemos ignorar o primeiro passo (e, se calhar, o mais crucial) de entender as suas reais dimensões?
A existência de eleitores-fantasma é acrescentar um motivo para que os desiludidos e descontentes ignorem a sua missão cívica e continuem a achar que “não vai ser o meu voto a mudar alguma coisa”, que “não posso estar errado, com tanta gente a também não ir votar” ou que “já está tudo decidido: olha só para as sondagens!” Aliás, se há verdade que os últimos dois atos eleitorais nos mostraram é que o nosso voto conta, que os resultados das eleições ainda são decididos pelo povo nas urnas (e não por amostras estatísticas) e que, apesar de já terem passado quase 50 anos desde o 25 de abril, a nossa democracia ainda funciona e continua bem viva.
Mas, como todos os organismos vivos, a democracia também precisa de renovação, de se saber adaptar e fortalecer, nomeadamente em tempos em que qualquer pessoa tem facilmente voz no espaço público. A internet e as redes sociais vieram permitir que toda a gente expressasse quase que instantaneamente a sua opinião (até eu o estou a fazer com esta crónica!), principalmente nas camadas mais jovens.
A minha geração já não assistiu ao 25 de abril, não sabe o que é viver no mundo polarizado da Guerra Fria, não testemunhou nem a felicidade da Queda do Muro de Berlim nem o pavor do 11 de setembro. E se não termos vivido na pele acontecimentos incontornáveis do século XX (ou XXI) não deteriorou o nosso sentido democrático (salvo raras e infelizes exceções), a verdade é que o alterou.
Para ter impacto político na atualidade, um jovem já não precisa de acreditar afincadamente numa ideologia ou de se filiar numa juventude partidária. Prefere, ao invés de tudo isso, ter uma influência direta na sociedade: mais facilmente participa em manifestações ou petições que lutam por causas específicas (como a pobreza, a igualdade de género, a discriminação racial, entre outras) do que ergue bandeiras em prol de uma força partidária específica. Não renega, porém, o voto – utiliza-o antes como um instrumento ao serviço das matérias sociopolíticas que defende, tornando-o, assim, particularmente volátil. Quer sentir-se representado e saber quem o representa.
No dia de reflexão destas legislativas, conversava com o meu melhor amigo sobre as nossas intenções de voto e, a certa altura, ele colocou o dedo na ferida: “Já pensei em votar no partido A, mas abri as listas para o meu círculo eleitoral e, dentro dos lugares elegíveis, há muita gente em quem simplesmente nunca ouvi falar.” Não quero entrar em discussões sobre uma possível reforma profunda do sistema eleitoral, o método de Hondt ou o número de deputados na Assembleia da República, mas, se realmente queremos preservar a nossa democracia, é crucial não desprezarmos o que ela verdadeiramente é – uma democracia representativa.
As campanhas eleitorais devem aproximar os cidadãos dos candidatos a deputados pelos seus círculos eleitorais. As arruadas, as visitas a banquinhas em feiras e os panfletos nas caixas do correio de pouco servem se não potenciarem uma reflexão sobre quem está a representar o nosso voto. Sei quem são os deputados que estou a eleger? A sua visão aproxima-se da minha nos assuntos que considero cruciais para o País? Apresentam propostas específicas para o meu círculo eleitoral? Acho que vão cumprir corretamente a missão cívica a que se propõem?
É disto que é feita a democracia: questionar, refletir, não gostar de todas as respostas, não ter medo de fazer mais perguntas, voltar a pensar e nunca olhar para o mundo como se fosse uma tábua rasa ou uma espécie de narrativa em que os bons são sempre bons e os maus são sempre maus. Nesta história, só há um inimigo e ele não merece festas como o Natal eleitoral deste ano de que falava no início. É como diz mais um provérbio: quem cala consente – e já há muito tempo que andamos demasiado calados no que toca à abstenção.
Alexandre Abrantes Neves é estudante de Comunicação Social e Jornalismo na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Contacto: alexandre.m.a.neves@gmail.com