Este livro de Tom Holland, escritor inglês com vária obra histórica publicada, obteve uma apreciação positiva e generalizada, quando saiu em 2019: “Cativante” (The Times), “Arrebatador” (The Economist), “Fascinante” (Library Journal)… Mais assertivo ainda, The Sunday Times: “Se os grandes livros nos encorajam a olhar o mundo de um modo completamente novo, então Domínio é, sem dúvida, um grande livro.”
Não sendo “completamente nova”, a tese de Tom Holland é a seguinte: “Viver num país ocidental é viver numa sociedade completamente impregnada de conceitos e pressupostos cristãos. […] Quer se trate da convicção de que as operações da consciência são a melhor maneira de determinar as boas leis, de que a Igreja e o Estado são entidades distintas ou de que poligamia é inaceitável, os seus vestígios encontram-se por todo o lado no Ocidente” (p. 24 da ed. portuguesa).
É esta a ideia fundamental. Para a ilustrar, o autor vai assinalando como ao longo de dois milénios ela se foi concretizando nos vários campos da sociedade e da cultura “ocidentais”. Contrastando com muito do que era habitual e aceite no mundo em que se foi implantando, o cristianismo apresentou-se como “revolução”, por tocar em pontos axiais da vida individual e coletiva. Também como “reforma”, por pretender retomar ciclicamente o seu modo inicial, visto como conclusivo para o mundo inteiro. Tal aconteceu de modo ortodoxo ou heterodoxo em relação ao que estivesse, podendo mesmo extravasar do âmbito confessional e verificar-se onde menos se esperaria. O próprio autor, ainda que educado no cristianismo anglicano, afirma-se não crente. O estilo do livro é ágil e persuasivo, encadeando as várias etapas com episódios e protagonistas que assinalam cada uma.
É o caso, entre outros, de Gregório VII (papa de 1073 a 1085) e da reforma eclesial do seu tempo, assim mesmo designada como “reforma gregoriana”. À primeira vista um confronto entre o papa e o imperador germânico Henrique IV sobre quem tinha o direito de “investir” em altos cargos eclesiásticos, Holland apresenta o caso como muito mais do que isso, a saber, como a tentativa de refazer a vida em geral a partir dum primado espiritual autónomo, que purificasse a sociedade no seu todo e a “reformasse” de raiz. Assim, conclui, a autonomização do sagrado (religioso) em relação ao profano (secular), motivo maior daquele tempo, ensaiou o que aconteceria depois em todos os momentos “revolucionários”, em busca de uma sociedade ideal e em contraste com a realidade da altura e o respetivo sistema: “Gregório [VII] e os seus apoiantes reformistas não inventaram a distinção entre religio e saeculum, entre o sagrado e o profano, mas fizeram com que se tornasse em algo de fundamental para o futuro do Ocidente […]. Triunfava um modelo de reformatio cujos ecos, ao longo dos séculos, fariam tremer muitas monarquias e inspirariam visionários a sonhar com um renascimento da sociedade. Este terramoto iria longe e teria inúmeras réplicas. Foi, para o Ocidente Latino, a primeira experiência formativa de revolução” (p. 258-259).
Também no respeitante à base canónica e jurídica que se pretendeu depois. Quando, a partir do século XII, Graciano e os seus seguidores tentaram sistematizar as normas canónicas anteriores, conciliando-as entre si em torno de um princípio geral, foi no direito “natural” que o encontraram, em coincidência com a criação comum da humanidade e a obrigação mútua daí decorrente, como o próprio Cristo acentuara: “Por volta de 1200, meio seculo após o Decretum [de Graciano] estar completo, chegara-se finalmente a uma solução – uma solução fértil em implicações para o futuro. Um pedinte esfomeado que roubasse a um homem rico fazia-o, de acordo com um número crescente de juristas [canonistas], iure natural – ‘de acordo com a lei natural’. […] O princípio de que os ricos tinham o dever de dar aos pobres era tão antigo como o próprio Cristianismo. O que antes ninguém tinha pensado em defender, porém, era um princípio correspondente: os pobres tinham direito [de responder] às necessidades da vida. Era – numa fórmula cada vez mais comum entre os canonistas – um ‘direito’ humano. No Ocidente Latino, a lei tornara-se um instrumento essencial da revolução em curso” (p. 267-268).
Os saberes e os direitos humanos

Bartolomé de las Casas: “Cada mortal – cristão ou não – tinha direitos procedentes de Deus. Derechos humanos foi a expressão usada por Las Casas.” Ilustração
Por essa época algo de semelhante se passou no largo campo dos saberes em geral. Se os direitos básicos provinham duma criação comum e estrutural, também a natureza se podia estudar racionalmente, naquilo que cada matéria tinha de próprio e garantido pelo mesmo ato criativo que a originara: “O estudo dos animais e plantas, da astronomia, até da matemática: todas estas áreas pertenciam à categoria da filosofia natural. O verdadeiro milagre não era o miraculoso, era o funcionamento ordeiro do céu e da terra” (p. 273).
É na mesma ordem de ideias que Holland situa os “direitos humanos”, como foram afirmados a partir do século XVI e em referência aos povos entretanto encontrados pelos europeus em expansão. A partir duma criação comum, defendeu-se o direito ao autogoverno de cada comunidade, sem supremacia ou elitismo que justificasse a tutela duma por outra: “Em 1550 num debate realizado na cidade espanhola de Valladolid sobre se os Índios tinham ou não o direito de se governarem a si próprios, o já idoso Bartolomé de las Casas defendeu vigorosamente o seu caso. Quem eram os verdadeiros bárbaros, perguntou: os Índios, um povo ‘meigo, paciente e humilde’, ou os conquistadores Espanhóis, cuja ganância por ouro e prata só era superada pela sua crueldade? […] Cada mortal – cristão ou não – tinha direitos procedentes de Deus. Derechos humanos foi a expressão usada por Las Casas” (p. 384).
Entretanto, a pretensão “reformista”, afirmou-se também fora do campo eclesial – dos vários campos, aliás, depois das cisões do século XVI em diante. Holland verifica-a mesmo entre os “filósofos” setecentistas, precursores das revoluções que abriram a idade contemporânea. Assim em França: “Num reino que era há muito considerado a filha mais velha da Igreja, a ambição de inaugurar uma nova ordem mundial purgada da superstição e resgatada à tirania, não podia senão estar imbuída de pressupostos cristãos. Os sonhos dos philosophes eram simultaneamente algo de novo e algo que de novo nada tinham. Antes deles, já muitos se tinham esforçado para fazer a humanidade sair das trevas: Lutero, Gregório VII, Paulo. Desde o princípio de tudo que os Cristãos esperavam por uma grande transformação na ordem mundial. ‘A noite vai adiantada e o dia está próximo’“ (p. 436-437). E algo idêntico encontrará o autor em Karl Marx: “As próprias palavras usadas por Marx para construir o seu modelo de luta de classes – ‘exploração’, ‘escravidão’, ‘avareza’ – tinham menos que ver com as formulações frias dos economistas do que com algo muito mais antigo: as reivindicações dos profetas bíblicos que se diziam inspirados por Deus. Se, como afirmava, o que oferecia aos seus seguidores era a libertação do Cristianismo, era uma libertação estranhamente parecida com uma reformulação desse mesmo Cristianismo” (p. 506).
A “Marcha das Mulheres” de 2017

Marcha das Mulheres em 2017: “O corpo humano não era um objeto ou um bem para ser usado pelos ricos e poderosos quando e como quisessem.” Foto © Mark Dixon
Para respigar só mais um exemplo, dos muitos que o autor vai ilustrando, chegamos ao nosso tempo, com o que Holland crê estar subjacente à libertação feminina de todo o tipo de exploração, designadamente a sexual: “… o manifesto subjacente [à Woman´s March de 2017] era tão baseado em pressupostos teológicos quanto o movimento dos direitos civis [Martin Luter King, 1963]. Implícito no #MeToo estava o mesmo apelo à continência sexual que reverberara ao longo da história da Igreja. […] Apetites que os entusiastas da libertação sexual aplaudiram como dionisíacos eram mais uma vez condenados como predatórios e violentos. O corpo humano não era um objeto ou um bem para ser usado pelos ricos e poderosos quando e como quisessem” (p. 588).
No prefácio Holland escrevera o seguinte (p. 24): “‘Religião’, ‘secular’, ‘ateu’: nenhum destes termos é neutro. Embora tenham as suas origens no passado clássico, chegam até nós carregados do legado da Cristandade. Quem não compreender isto corre o risco de incorrer em anacronismos. Por muito que se esvaziem os bancos das igrejas, o Ocidente continua solidamente ancorado no seu passado cristão.” Podemos ver este trecho também como advertência: as ideias cristãs nasceram na comunidade que Jesus criou com os que o seguiram e nas que dos primeiros séculos chegaram até hoje. Aí se lembram os textos e retomam os gestos iniciais, sendo esta a Igreja em permanente “reforma”. Sem comunidade viva não há “cristandade” influente. O desafio atual está precisamente aqui, no que podemos designar como recomposição comunitária da experiência cristã, num mundo em que estamos muito menos fixos na geografia e na (in)formação.
Tom Holland, Domínio – Como o cristianismo transformou o pensamento ocidental
Ed. Vogais, 2022, 668 pgs.
Manuel Clemente, patriarca de Lisboa; título e subtítulos da responsabilidade do 7MARGENS