A religião americana anda a dormir com o inimigo. Billy Graham avisou em tempos que o casamento entre os fundamentalistas religiosos e a extrema-direita política serviria apenas para esta manipular a religião. Parece que adivinhava…

O presidente Trump deslocando-se com a sua comitiva, em Junho, para a Igreja Episcopal de St. John, diante da qual se faria fotografar com uma Bíblia na mão: “Os eleitores de Trump que votam nele, com vista a defenderem os seus interesses, são mais honestos do que aqueles que, sendo religiosos, tentam justificar o seu apoio com argumentos estribados na fé.” Foto © The White House/Wikimedia Commons
O segmento evangélico americano pautou-se durante largas décadas por ensinar aos fiéis a integridade pessoal. A lógica era que o homem nascido de novo (born again) seria transformado à imagem de Cristo e viveria uma nova ética, sendo bom cidadão, bom profissional, parte duma família funcional, promotor da paz e cultivando o amor e o perdão para com o seu semelhante. Billy Graham foi o seu profeta maior, com uma postura de integridade e semeando uma mensagem de esperança num mundo do pós-guerra, devastado física e moralmente.
Hoje vivemos numa realidade diversa, caracterizada pela atracção da conquista do poder, mas a qualquer preço. A igreja americana vendeu-se por um prato de lentilhas. Desistiu de pregar o arrependimento e a conversão a Deus, optando por trocar a integridade pela vantagem, a paz pelo poder e o evangelho por bandeiras abstrusas e frequentemente estranhas à essência da fé cristã.
Ao contrário de todo o discurso bíblico – incluindo no Antigo Testamento – não tem hoje uma palavra contra o abuso dos poderosos sobre os mais fracos ou as minorias, a exploração dos pobres pelos ricos, contra o racismo, o sexismo, a violência doméstica ou a pena de morte. Limita-se a meia dúzia de bandeiras como o aborto, a chamada moral sexual, o nacionalismo e tantas vezes o supremacismo branco. E não consegue explicar por que razão, sendo contra o aborto, apoia a pena de morte e a guerra. Sim, não se entende como é que uma vida por nascer é mais importante do que a vida dos que já nasceram e que são frequentemente desprezados pelos ditos defensores da vida.
Diz Henrique Raposo: “Tal como salienta o bispo americano Mark Seitz, a obsessão com o aborto tem levado o voto cristão para o colo de um pagão como Donald Trump, que é a negação absoluta do evangelho. O nacionalismo é negado pela Bíblia do princípio ao fim. O Novo Testamento, então, é claríssimo: cuidado com a idolatria pagã dos poderes terrenos; cuidado com a veneração das tribos; cuidado com a ideia de que há um povo escolhido, cuidado com a ideia de que Cristo veio só para ‘nós’. Cristo e Deus são de todos, judeus e pagãos, romanos e gregos, escravos e livres, homens e mulheres.”
Nenhum cristão pode justificar o seu voto com a fé, porque nenhum partido representa por inteiro os seus valores. Tem liberdade para votar como entender, mas nunca para usar a sua fé na justificação da sua opção eleitoral. Trata-se de uma escolha pessoal e nada mais.
E quanto ao nacionalismo, é bom lembrar que não é uma religião, e opõe-se muitas vezes à fé cristã, quando serve para exaltar os que nasceram num dado espaço geográfico, em especial quando se repelem os outros. Ainda Raposo: “As pessoas têm de optar: ou são cristãs ou são nacionalistas. Não podem seguir dois deuses, não podem ser universalistas e pagãs ao mesmo tempo. Quem segue Cristo na parábola do bom samaritano não pode ter uma atitude racista. E quem segue Cristo também não pode ter os comportamentos machistas, nem pode considerar o sexismo de Trump como um pormenor.”
Uma investigação do New York Times acedeu às declarações de impostos do atual presidente dos Estados Unidos de mais de duas décadas. Ao contrário dos presidentes anteriores, recusou-se sempre a fazê-lo, recorrendo até aos tribunais. Ficou-se a saber que Trump pagou apenas 750 dólares em impostos federais no ano em que ganhou as eleições e o mesmo montante durante o primeiro ano na Casa Branca, o que é menos do que paga qualquer contribuinte português da classe média baixa. Mais. Nos quinze anos anteriores a 2016 Trump não pagou qualquer imposto em dez deles, sobretudo porque reportou perdas mais elevadas do que o dinheiro que ganhou, o que evidencia profunda desonestidade e uma evasão fiscal calculada em centenas de milhões de dólares.
A integridade pouco importa desde que os objectivos ideológicos sejam atingidos e satisfeitos os interesses das igrejas. Portanto, se a integridade pessoal e social pode ser chutada para canto em nome do acesso aos corredores do poder, há que dizer que a designação “igreja evangélica” passou a ser abusiva, porque a prática nada tem do evangelho e ainda menos do exemplo do próprio Cristo, que nunca se deixou seduzir pelos corredores do poder.
Os eleitores americanos de Trump que o consideram um palhaço mas votam nele, com vista a defenderem os seus interesses materiais pessoais, são mais honestos do que aqueles que, sendo religiosos, tentam justificar o seu apoio com argumentos estribados na fé. É por isso que aconselho os líderes religiosos a ler Georges Bernanos: “O primeiro sinal de corrupção numa sociedade é defender que os fins justificam os meios”.
José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona e coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; texto publicado também na página digital da revista Visão.