Para uma nova redescoberta do verdadeiro Jesus
“Quem os homens dizem que eu sou? (…)
E vós, quem dizeis que eu sou?”
(Evangelho de Marcos 8:29)

“Como poderemos, então, recuperar o verdadeiro rosto de Jesus? Como o vemos então? Independentemente das respostas que possamos dar, teológicas ou não – e elas estarão sempre em aberto –, por vezes esquece-se o rosto humano de Jesus, aquele que é um verdadeiro homem, que se humaniza até ao mais profundo do nosso e que é pleno de afetividade, misericórdia e alteridade.” Fotomontagem: Os rostos de Jesus © Vítor Rafael
Muito se tem escrito ao longo dos séculos acerca da figura real de Jesus. Assumido pela esmagadora maioria dos cristãos como o Filho de Deus, nunca a figura de Jesus foi tão controversa e paradoxal como nos dias de hoje. O que pensarão as pessoas acerca da sua pessoa? Uma pesquisa levada a cabo pelo Barna Groups nos Estados Unidos revela bem as diferentes opiniões acerca da figura de Jesus: apesar da grande maioria afirmar que foi de facto uma pessoa real, entre as gerações mais novas vai prevalecendo cada vez mais a crença de que ele não era uma figura divina. Quase metade dos inquiridos afirma mesmo que ele era um homem igual a tantos outros, tendo mesmo pecado. Apesar de a grande maioria ter afirmado ter um compromisso pessoal com ele – interpretado como sendo o primeiro passo para se acreditar como cristão – assiste-se a uma divisão entre aqueles que afirmam ser a fé em Jesus e a prática das boas obras como caminho para ir para o céu. Curioso que há quase dois mil anos, o próprio Jesus tenha igualmente interpelado os seus discípulos acerca da sua pessoa. “Quem os homens dizem que eu sou? (…) e vós, quem dizeis que eu sou?”. Desde então, até aos dias de hoje, Jesus tem continuado a requerer uma resposta de cada pessoa, até porque disso depende a identidade dos cristãos enquanto discípulos seus.
A história tem revelado como a figura real de Jesus tem sido muitas vezes descaracterizada, desfigurada, adulterada. De um simples e humilde rabi que percorria os campos e as aldeias da Galileia pregando o Evangelho aos pobres, proclamando a libertação dos aprisionados, recuperando a vista aos cegos e restituindo a liberdade aos oprimidos, não demoraria até que muitos vissem nele um Messias que viria trazer a libertação política a um povo já tão martirizado e subjugado pelo Império Romano. Mesmo depois da sua crucificação, morte e ressurreição, foram goradas as expectativas de muitos dos seus seguidores e discípulos que o esperavam vê-lo muito em breve retornando triunfalmente dos céus, à maneira de um Rei todo-poderoso, vindo em glória para restabelecer aqui na terra o Reino de Deus.
Desde a perda progressiva da influência da teologia no seio das sociedades a partir do Iluminismo, altura em que se tentou subordinar a religião à razão, muitos têm tentado encontrar o verdadeiro rosto de Jesus através das famosas buscas do Jesus histórico, iniciadas a partir dos finais do século XVI. A primeira, por Hermann Reimairus, partia do pressuposto que as informações contidas nos Evangelhos acerca de Jesus não eram confiáveis e que seriam reconstruções dos primeiros cristãos sobre o Jesus histórico. Seria então necessário empreender uma análise critica aos evangelhos canónicos – a principal fonte para a biografia de Jesus – servindo-se dos métodos histórico-críticos.
Nesta primeira fase, Jesus é retratado como sendo uma figura política ou um revolucionário, sendo mesmo colocada a hipótese da sua não existência. Na segunda fase, iniciada em 1953 por um dos alunos de Bultmann, Ernst Käsemann, tentou-se reverter o estado de pessimismo que até então permeava os estudos académicos acerca de Jesus. Os métodos da crítica das fontes, munidos com novas metodologias de outras disciplinas como a sociologia, a antropologia, a linguística e as importantes descobertas arqueológicas e dos pergaminhos do Mar Morto, vieram mostrar que, embora os evangelhos possam ser interpretados numa perspetiva teológica, eles ainda contêm memórias históricas que podem produzir informações acerca de Jesus.
Desde os inícios da terceira fase que se tem vindo a renovar o interesse pelo Jesus histórico, principalmente naqueles que o procuram agora entender essencialmente como judeu no contexto da Palestina. Destacam-se aqui os importantes trabalhos de John Dominic Crossan, E.P. Sanders, N.T.Wright e Geza Vermes, entre outros. Para a discussão desta problemática, não deixa de ser interessante observar que, nestes últimos tempos, se assistem a tentativas revisionistas dos rostos de Jesus, algumas interpretando-o como um camponês, um cínico ou até mesmo um revolucionário conforme popularizado pelo famoso Jesus Seminary nas décadas de 1990, ou, por exemplo, por aquele Jesus neognóstico retratado por Dan Brow na sua obra O Código Da Vinci.
Como poderemos, então, recuperar o verdadeiro rosto de Jesus? Como o vemos então? Independentemente das respostas que possamos dar, teológicas ou não – e elas estarão sempre em aberto –, por vezes esquece-se o rosto humano de Jesus, aquele que é um verdadeiro homem, que se humaniza até ao mais profundo do nosso e que é pleno de afetividade, misericórdia e alteridade. Como referiu, e muito bem, o padre jesuíta Adroaldo Palaoro, “a identificação de Deus com o ser humano é tão forte e tão decisiva que, no momento do encontro definitivo com Ele, o critério para entrar no Reino não é o que cada pessoa fez ou deixou de fazer ‘para’ Deus, mas o que ela fez ou deixou de fazer ‘para’ os seus semelhantes, com os quais conviveu”.
Podemos então, encontrar o rosto de Jesus em cada rosto humano, e principalmente naqueles “pequeninos do Reino”, como tão bem explicitado no Evangelho de Mateus (25:31-40).
“Quando vier o Filho da Humanidade na sua glória e todos os anjos com ele, então se sentará sobre o trono da sua glória. E serão reunidos diante dele todos os povos e ele separará uns dos outros, tal como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à esquerda. Então dirá o rei àqueles que estão à sua direita: ‘Vinde, benditos do meu Pai, e herdai o reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Eu tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber; eu era estrangeiro e acolhestes-me, estava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava na prisão e viestes até mim’. Então lhe responderão os justos, dizendo: ‘Senhor, quando te vimos esfomeado e te alimentamos, ou quando sedento e te demos de beber? Quando te vimos estrangeiro e te acolhemos, ou quando nu e te vestimos? Quando te vimos doente ou na prisão e fomos encontrar contigo?’. E o rei, respondendo, dir-lhes-á: ‘Amém vos digo: quanto fizestes a um desses mais insignificantes dos meus irmãos, a mim o fizestes’.”
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.