O Sete Margens deu início à publicação de uma série de textos da autoria de Carlos Pinto de Abreu (advogado) e José Verdelho (jurista) sobre a história do Islão e as suas implicações no direito. Após a publicação do primeiro texto, sobre características e fontes, publicamos agora o segundo texto que se centra na doutrina e vida em sociedade.
A concepção de Deus

Medalhão que mostra Allah, Catedral Hagia Sophia, Istambul.
A doutrina acerca de Deus no Alcorão, é rigorosamente monoteísta: Deus é um único; Ele não tem igual. Os muçulmanos acreditam que não há intermediários entre Deus e a criação. Enquanto a Sua presença se supõe estar em toda a parte, Ele não inere a nada. Ele é o único criador do universo, sendo cada criatura testemunho da sua unidade e domínio. Mas é também justo e misericordioso: a sua justiça assegura ordem na criação. Nesta nada está fora do lugar. A sua misericórdia é infinita e abrange tudo. A criação do universo é vista como acto primeiro da misericórdia, pelo qual todas as coisas cantam as suas glórias.
O Deus do Alcorão, descrito como majestoso e soberano, é também um deus pessoal. Está próximo do homem e, sempre que uma pessoa em necessidade o chama, ele responde. Sobretudo, é o Deus que indica o caminho certo ao homem. A imagem de Deus na qual os atributos de poder, justiça e misericórdia se interpenetram é tributária da tradição judeo-cristã, apesar de sofrer algumas modificações, e também dos conceitos da Arábia pagã, aos quais deu uma resposta efectiva. Os árabes pagãos tinham uma fé cega e acreditavam num inexorável destino sobre o qual o homem não tinha controle. Perante este destino forte mas insensível, o Alcorão apresenta um Deus poderoso mas misericordioso. E assumiu o monoteísmo, rejeitando todas as formas de idolatria e eliminando todos os deuses e divindades que os árabes adoravam.
A concepção do Universo
Para provar a unidade de Deus, as leis do Alcorão frequentemente referem a ordem do Universo. Não há descontinuidade ou vazios na natureza. A ordem é explicada pelo facto de cada ser criativo ter uma natureza definitiva. Esta natureza, embora permita a cada ente funcionar num todo, tem limites; esta ideia de limitação de tudo é um dos dogmas, tanto na cosmologia como na teologia do Alcorão. O Universo é, portanto, autónomo, no sentido de que tem as suas leis próprias de comportamento, mas não autocrático, porque essas leis foram estabelecidas por deus. Toda a criatura é limitada, dependente face a Deus, que é por sua vez ilimitado, independente e autossuficiente.
A concepção do Homem
É com o homem que o Alcorão está fundamentalmente preocupado. A tradição judeo-cristã da queda de Adão é aceite, mas o Alcorão afirma que Deus perdoou a Adão no acto da sua desobediência, que não é assumido como pecado original. No Alcorão, o homem é o ser mais nobre da criação. Todas as criaturas foram feitas para o servir. Nada na criação foi feito sem uma finalidade, e o homem foi criado para ser obediente à vontade de Deus.
O Alcorão descreve, contudo, a natureza humana como faltosa e débil. Enquanto tudo no Universo tem limite natural e toda a criatura reconhece a sua limitação e insuficiência, o homem é rebelde e cheio de orgulho, arrogando-se para si próprio o atributo de autossuficiência. O orgulho, é assim, o pecado cardeal do homem porque, não reconhecendo as suas limitações essenciais, torna-se culpado por querer tornar-se igual a Deus, violando a sua unidade. A verdadeira fé, assim, consiste em acreditar na unidade divina e na submissão a Deus.
A concepção da Sociedade

Porque a finalidade da existência do homem é a submissão à vontade divina, o papel de Deus na relação com aquele é de ordenar e comandar. Enquanto o resto da natureza obedece a Deus automaticamente, só o homem possui a escolha de obedecer ou não. Com a fé na existência do demónio, o fundamental do homem passa a ser a luta moral. O reconhecimento da unidade de Deus é meramente intelectual. A doutrina de auxílio social, impondo a ajuda aos que sofrem e o apoio aos que o necessitam, constitui parte integrante do ensinamento islâmico. A prática da oração ou outros actos religiosos será vazia se não acompanhada de serviço aos necessitados. A prática da usura é proibida, e o reconhecimento dos direitos dos pobres é um dever do muçulmano. Com esta doutrina cimentando o crescimento da fé, emerge a ideia de uma comunidade dos crentes que se declaram irmãos uns dos outros.
Os muçulmanos são descritos como a “melhor comunidade feita para a humanidade”, cuja função é “praticar o bem e proibir o mal” (Alcorão). A cooperação e o bom conselho dentro da comunidade são enfatizados e a pessoa que deliberadamente tente prejudicar os interesses da comunidade deve ser severamente punida. Os opositores dentro da comunidade devem ser combatidos com a força armada, se não for possível fazê-lo pela persuasão. Nesta conformidade, a doutrina da jihad, em vista da constituição da comunidade como base do poder, é o passo lógico. Jihad significa luta activa, usando a força armada, se necessário. O objectivo da jihad é, não a conversão dos indivíduos ao Islão, mas a tomada de controlo político sobre os assuntos colectivos da sociedade, para a dirigir de acordo com os princípios do Islão. As conversões individuais ocorrem como consequência deste processo, quando o poder passa para as mãos da comunidade muçulmana. Na doutrina islâmica em vigor, as conversões forçadas são proibidas, dada a revelação corânica da distinção do bem e do mal, de tal forma que cada um possa seguir o que escolher. Do mesmo modo, é estritamente proibido fazer a guerra para procurar a glória mundana ou o poder.
Com o estabelecimento do império muçulmano, contudo, a doutrina do jihad foi modificada pelos líderes da comunidade. A sua preocupação principal passou a ser a consolidação do império e a sua administração, e assim, interpretam o ensinamento de uma forma mais defensiva que ofensiva. Para além de uma noção de justiça económica e da criação de uma forte comunidade ideal, o profeta efectuou uma reforma geral na sociedade arábica, em particular protegendo os seus segmentos mais fracos: os pobres, os órfãos, as mulheres, os escravos. A escravatura não foi legalmente abolida, mas a emancipação dos escravos foi encorajada pela religião como acto meritório. Os escravos receberam direitos, incluindo o de adquirir a sua liberdade mediante um pagamento. Foi também negado o infanticídio feminino, praticado em certas tribos.
As distinções e privilégios baseados na origem tribal ou raça, foram repudiados no Alcorão. Todos os homens são declarados filhos iguais de Adão, e a única distinção reconhecida à vista de Deus é baseada na piedade e nas boas acções. A antiga instituição tribal da vingança segundo a qual não era necessariamente o assassino que era executado, mas uma pessoa da mesma origem tribal foi abolida. Surgiu, assim, a exaltação de um ideal islâmico de virtude moral e piedade. É encorajado o casamento, tolerando-se a poligamia (pré-existente ao Islão), embora em termos limitados. De salientar a possibilidade de o marido poder repudiar unilateralmente a mulher. É também valorizada como virtude a castidade, punindo-se mesmo o adultério (o Alcorão impõe 100 chicotadas, tendo a tradição agravado a pena, quanto aos casados, para o apedrejamento até à morte).
O direito é visto como conjunto globalizante de comandos (a lei islâmica), verdadeira mistura de preceitos morais e sociais. Por isso, a lei islâmica regula todos os actos humanos, públicos ou privados, não distinguindo as esferas religiosa e temporal. Também em consonância, são considerados como relevantes os estados de espírito ou intenções do agente. Sendo bastante valorizadas a aceitação consensual dos destinatários da lei, isto é, a vontade geral da comunidade: porém a construção do direito é feita a partir das “raízes da lei”: o Alcorão e a sunna, quer aplicados directamente, quer argumentados por analogia.
O Estado muçulmano é, naturalmente, confessional, não sendo, porém, pacífica a definição do seu papel na sociedade islâmica. A propósito destas divergências discutiram bastante sunitas e xiitas, sendo estes últimos os de posições mais radicais.
Próximo texto: Grupos religiosos e correntes no islão (a publicar dia 26)
Carlos Pinto de Abreu é advogado; José Verdelho é jurista. O texto foi actualizado a partir da versão original, elaborada em 1987 para o XXIII Encontro Europeu de Universitários e publicado depois numa compilação de artigos em memória do Padre Joaquim António de Aguiar que foi director do Colégio Universitário Pio XII: “A Difícil Contemporaneidade da Concepção do Direito no Islão” in Educação e Cidadania, Lisboa, Almedina, 2017, pp. 163 a 200. A edição final e alguns títulos e subtítulos são do 7MARGENS.