
Os abusos sucedem-se “às mãos de atores estatais e não-estatais” e reina o “clima de impunidade”, revela o mais recente relatório sobre a Líbia. Foto: Amnistia Internacional.
Execuções, tortura, violência sexual, extorsão, trabalho forçado, obrigação de participar em operações militares. Estes são apenas alguns dos “chocantes abusos” que milhares de refugiados e migrantes têm sofrido ou presenciado na Líbia, muitas vezes os mesmos aos quais tentavam escapar quando abandonaram os seus países de origem, denuncia a Amnistia Internacional num relatório de meia centena de páginas divulgado às zero horas desta quinta-feira, 24 de setembro, e enviado também ao 7MARGENS.
Os abusos sucedem-se “às mãos de atores estatais e não-estatais”, revela a organização de defesa dos direitos humanos, e reina o “clima de impunidade”. De acordo com o relatório, intitulado Entre a vida e a morte – Refugiados e Migrantes apanhados no ciclo de abusos da Líbia, as restrições de viagem impostas na sequência da pandemia de covid-19 vieram exacerbar ainda mais a situação.
“A Líbia, um país dilacerado por anos de guerra, tornou-se um ambiente ainda mais hostil para refugiados e migrantes que procuram uma vida melhor. Em vez de serem protegidos, enfrentam um rol de chocantes abusos dos direitos humanos e, agora, são injustamente acusados pela disseminação da covid-19 com base em argumentos profundamente racistas e xenófobos”, afirma a diretora-adjunta para o Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional, Diana Eltahawy.
A responsável sublinha ainda que “apesar disto, mesmo em 2020, a União Europeia e os seus Estados-membros continuam a implementar políticas que aprisionam dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças num ciclo de abusos, demonstrando um desprezo cruel pelas vidas e pela dignidade das pessoas”.
De acordo com o relatório, desde 2016, os Estados-membros da UE, liderados pela Itália, têm colaborado com as autoridades da Líbia, fornecendo embarcações, formação e assistência na coordenação de operações marítimas, com o objetivo de garantir que quem tenta fugir do país por mar é intercetado e levado de volta. Nos últimos quatro anos, um número calculado em 60 mil pessoas terão sido capturadas e desembarcadas de novo no país pela Guarda Costeira Líbia (GCL).
Uma vez de regresso forçado, muitos acabam em centros de detenção oficiais da Direção de Combate à Migração Ilegal (DCMI), sob a tutela do ministro da Administração Interna do Governo de Acordo Nacional (GAN), apoiado pelas Nações Unidas, que controla a Líbia Ocidental. Outros são submetidos a desaparecimento forçado, após terem sido transferidos para locais de detenção não oficiais.
A Amnistia Internacional verificou vídeos que mostram os abusos de milícias e grupos armados contra inúmeros refugiados e migrantes. Em alguns casos, foram obrigados a participar em operações militares, colocando em perigo as suas vidas e a sua segurança.
Atravessar o Mediterrâneo é a única saída?

Nabil Minas, um sírio cristão, beija terra grega e chora de alegria, a 30 de Outubro de 2015. Minas atravessou o Mediterrâneo com o filho, vindos da Turquia: nem sempre a travessia do Meditterâneo corre bem, sobretudo para quem sai da Líbia. Foto © Paul Jeffrey/WCC-CMI
De acordo com dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM, na sigla inglesa), entre março e abril de 2020, cerca de 600 mil refugiados e migrantes viviam na Líbia, oriundos maioritariamente do Níger (21%), Egito (16%), Chade (16%), Sudão (13%) e Nigéria (8%).
Desses, apenas 5709 refugiados terão beneficiado de programas de evacuação e reinstalação através de vias legais e seguras, desde 2017 até ao dia 11 de setembro de 2020, apurou a AI. Este ano, com as restrições de viagem impostas devido à pandemia, somente 297 refugiados foram retirados da Líbia, antes do encerramento das fronteiras, em março.
Para muitos migrantes, as travessias do Mediterrâneo são vistas como a única forma viável de sair da Líbia, mas estas continuam a ser “extremamente perigosas”, refere o relatório, devido às interceções da GCL e também de grupos criminosos.
“Num incidente em meados de agosto, sobreviventes disseram à Amnistia Internacional que foram vítimas de roubo por homens armados, que, depois, dispararam contra a embarcação. Estima-se que 40 pessoas tenham morrido, depois de terem sido deixadas à deriva”, recorda a organização.
Um dia depois de a Comissão Europeia ter proposto um Pacto para as Migrações e Asilo com procedimentos mais rápidos e eficazes e à luz do qual “todos os Estados-membros, sem exceção”, devem assumir as suas responsabilidades e ser solidários, a AI assinala, assim, que “dezenas de milhares de refugiados e migrantes enfrentam ciclos de crueldade na Líbia, com pouca ou nenhuma esperança de encontrarem vias seguras e legais de saída”.
“Esperamos melhor da Europa”, dizem igrejas cristãs

“Devemos aceitar a nossa obrigação de acolher e proteger os nossos irmãos e irmãs sofredores”, sublinhou o arcebispo ortodoxo de Atenas, Ieronymus. Foto: Christos Bonis/Church of Greece.
Também o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que reúne 350 igrejas e comunidades do universo protestante e ortodoxo, emitiu esta quarta-feira um comunicado sobre a “terrível situação dos migrantes e refugiados na Europa”, apelando à União Europeia que adote “uma abordagem mais compassiva”. “A solidariedade deve ser o princípio orientador da migração e, em particular, da receção de refugiados”, afirma o texto publicado na página digital do CMI.
A instituição considera que os incêndios no campo de refugiados de Moria, na Grécia, foram uma consequência “inteiramente previsível e evitável de uma política de asilo e migração da UE que coloca a integridade das fronteiras acima das vidas humanas, e favorece o populismo em detrimento da dignidade e da humanidade. Esperamos melhor da Europa e dos seus líderes. É hora de mudar o rumo”, afirmou Rudelmar Bueno de Faria, secretário-geral da ACT Alliance, a maior coligação de igrejas ortodoxas e protestantes do mundo, e uma das signatárias do documento.
A propósito do incidente de Moria e da crise de refugiados na Europa, também o arcebispo Ieronymos, de Atenas, disse em entrevista ao CMI, esta segunda-feira, que considera as políticas europeias “repressivas”.
Na opinião do líder da Igreja Ortodoxa Grega, esta crise recentemente agravada pelos incêndios no maior campo de refugiados da Europa “é na verdade uma crise de valores e princípios”. O “princípio essencial da UE” de “solidariedade” deve ser a força motriz na gestão da migração e acolhimento de refugiados, defendeu Ieronymus.
“Devemos aceitar a nossa obrigação de acolher e proteger os nossos irmãos e irmãs sofredores”, sublinhou o arcebispo, anunciando que a Igreja Ortodoxa Grega está neste momento a preparar a abertura de quatro casas de acolhimento para menores desacompanhados, que irão somar-se às cinco já existentes. “É mais do que tempo de nos empenharmos na promoção da integração social dos refugiados de uma forma que seja justa para eles e benéfica para a sociedade de acolhimento”, concluiu, para que “a presença do outro seja considerada uma vantagem e não uma ameaça”.