#Out in Church

E agora, o que fazemos? (Perdendo a profecia, para que servem as igrejas?)

| 6 Fev 2022

Movimento #outinchurch pretende mudar visão a Igreja sobre a comunidade LGBTQIA+. Foto © Sharon Mccutcheon | Unsplash

 

Análise

Na noite de 23 para 24 de Janeiro, ficou público o site “Out In Church”. A iniciativa alemã – que, em Portugal, o 7MARGENS noticiou em primeira mão – reuniu nessa plataforma: 125 pessoas, cristãs, católicas (leigas, leigos, padres, todos trabalhadores em instituições ligadas à Igreja Católica e em estruturas eclesiásticas de governo); um manifesto; sete exigências; uma petição pública; um livro e um documentário, tudo isto sob o mote: “por uma Igreja sem medo”.

Trata-se de algo inédito no modo, na medida em que essas 125 pessoas, profundamente comprometidas com a vida e a acção da Igreja, definem a sua identidade e a sua afectividade com uma das letras da sigla LGBTQIA+. Habitualmente, essa assunção acontece em actos isolados, lidos como escândalos, não raramente, com (muito) prejuízo dos próprios, perdendo vínculos laborais e dinâmicas de pertença a famílias, comunidades, organismos e instituições, muitas vezes, perdendo saúde mental e física, acabando tragicamente, em alguns casos, em suicídio… A verdade é que isso não se vê, e volvidas as habituais 48 horas depois do escândalo, já tudo se pulverizou na máquina trituradora da informação diária. E assim deixa de haver escândalo. “Assentada a poeira”, deixa de haver um problema institucional, uma questão a avaliar, a integrar, a superar. Não se vê, não se fala, não se assume o erro, não se aprende, logo, não se cresce. No fim do dia, o saldo é (quase sempre) negativo: perdemos uma irmã nossa, um irmão nosso.

Creio que refugiarmo-nos atrás de uma certa interpretação bíblica, de tradições desajustadas ao tempo presente e de textos doutrinais discutíveis e polémicos na sua redacção não consensual, para nos convencermos de que em relação a pessoas LGBTQIA+ baptizadas, católicas, não há nada a oferecer-lhes, a não ser a escolha entre o disfarce e a purga, envergonha-nos a todos, pelo menos, na oração do fim do dia, onde, na consciência, ecoa a pergunta: “onde está o teu irmão? O que fizeste?” (Génesis 4,9-10).

Desta vez, o número 125 e a proveniência de cada rosto dos que dão voz a este clamor, continua a ser um acto de coragem, considerando as possíveis consequências, mas acrescenta um dado decisivo: temos mesmo de falar sobre isto, admitir que erramos, para errarmos menos e para sermos cada vez mais fiéis ao sonho de Jesus. E os católicos já estão cansados de saber que “falar sobre isto” já não significa remeter para a leitura de documentos. Antes, “falar sobre isto” começa com um grande exercício de silêncio e escuta. De escuta a sério. Não para, no fim, forçar tudo e todos às mesmas conclusões.

A verdade é que muitos, no seio das igrejas, no seu profundo desconhecimento e indisponibilidade para conhecer pessoas que vivem “coisas” que, muitas vezes, ainda nem sabem explicar, acreditam que ao verem imagens de uma parada pride, sabem tudo sobre a sigla LGBTQIA+. “#Out In Church” pretende construir conhecimento ao afirmar: “esses somos nós”. E esses “nós” não correspondem à caricatura que a ignorância alimenta. Afinal “esses” são nossos. E se são nossos, torna-se ridículo insistirmos na caricatura impessoal, quando se percebe que é uma invenção para sossegarmos a consciência, para justificarmos a comodidade de estarmos do lado certo; inventando gente impura, vivemos sossegados na sua pretensa pureza. Apontando para “gente impura”, Jesus de Nazaré disse, aos que se julgavam puros: aqueles “irão à vossa frente para o reino de Deus” (Mateus 21,31). É uma perda de tempo o campeonato da mostra exterior da pureza. Aos fariseus, o mesmo Jesus dizia que só servia para esconder misérias…

Que bom seria que não errássemos outra vez. Que bom seria se fossem escutados e levados a sério, “esses” de quem muitos pensam que sabem falar.

 

Cuidados novos
Homofobia. Homossexualidade

Manifestação em Estrasburgo, em Janeiro de 2013, contra a homofobia. Foto © Claude Truong-Ngoc/WikiCommons

 

Escutar um dado novo que precisa de cuidados novos. “Vinho novo em odres novos”. “Sempre assim foi” é o botão off do cérebro. A fidelidade exige mudança. Entre nós, até ao século XX as pessoas que amavam de formas diferentes da maioria, se fossem identificadas, eram reprimidas, punidas, condenadas, eliminadas, quer com enquadramento legal quer por espontâneo impulso de ódio, tantas vezes impune, na via pública ou nas próprias casas. As leis são mais fáceis de mudar do que as mentalidades, que não mudam por decreto, nem com assinaturas de quem manda. Somos precisos todos, a começar na pequena escala. Forçando as mudanças legislativas para apressar o caminho de todos, salvamos pessoas, por um lado, mas também nos fragmentamos, enquanto sociedade, em tribos e partidos que tendem a polarizar-se, tornando cada vez mais difícil o diálogo e o consenso. Mas importa que cada um se questione sobre o que será mais importante: cuidar de pessoas feridas ou vencer discussões?

Na tradição romana do cristianismo, a experiência diz-nos que as revoluções e reivindicações tendem a não surtir o efeito desejado. Habitualmente, são ridicularizadas, os seus agentes são diminuídos e menosprezados, envolve-se tudo numa teoria de conspiração, num lóbi invisível, mas ameaçador, que quer destruir a Igreja… Seria profético se acolhêssemos estas histórias de 125 pessoas como sagradas. Seria profético se as levássemos a sério: não por serem 125, mas por serem pessoas, em conflito interior, em sofrimento existencial, em apuros… Os discípulos de Jesus lembram-se de uma pergunta de uma história: quando é que te vimos em apuros e não te prestamos assistência? “Sempre que deixastes de fazer a um destes pequeninos, foi a mim que deixastes de fazer” (Mateus 25,31ss). Que bom seria se reconhecêssemos com serenidade a necessidade de conversarmos sobre tudo isto.

Se aceitarmos que no tempo presente cerca de 10% da população define a sua identidade e a sua afectividade com as letras da sigla LGBTQIA+, permanecendo cidadãos e cidadãs de “plenos” direitos e deveres, teremos de reconhecer que o cuidado específico que temos para oferecer, enquanto igrejas, é mais ajustado aos tempos em que a percentagem era 0%. Falta aceitar que, nas nossas assembleias, 10% das pessoas têm de disfarçar ou sair. Têm de alimentar aparências e mentiras, ou viver inteiras e em verdade, mas forçadas a abandonar a comunidade. Têm de suportar o peso da condenação, sistematicamente, por quem usa e abusa da palavra. Têm de olhar por cima do ombro com medo de serem denunciadas e poderem perder o emprego ou o serviço, ainda que voluntário, que significa exclusão, diminuição, perda de dignidade, com todas as consequências disso… Em comunidade, decidimos premiar o disfarce e castigar a verdade. Que a Verdade tenha piedade de nós…

Por que motivo nos distinguimos por questões de ordem afectiva? Qual é o ponto? O que ganha ou perde um coro de uma igreja cujo director é L, ou G, ou B? Bach continua a soar a Bach. E o que perde ou ganha uma comunidade cuja catequista é L ou B? Invalida a experiência religiosa de quem a ouve e caminha com ela? E um professor ou professora num colégio? E um padre? E um bispo? Somos todos chamados ao mesmo, a um único mandamento: a um compromisso de amor fiel, ao dom de si, à aceitação mútua da fragilidade que nos defina, a um cuidado paciente uns com os outros, a não permitirmos o abuso e o descarte. Se somos todos chamados ao mesmo, porque insistimos em ler-nos mutuamente com os óculos da pureza, com a graduação ajustada com a herança do estoicismo e de correntes puritanas do judaísmo? Por que razão as religiões e as igrejas se preocupam mais em gastar energias a fazer cumprir uma ideologia (uma ideia divorciada do dado empírico que, desde o séc. XX, felizmente, é outro, é novo) da afectividade e a prevenir escândalos, ao invés de ser perita em educar para o cuidado, o dom, o amor, a verdade, a fidelidade, conceitos caros a todas as religiões, e, para os cristãos, plasmados em todos os evangelhos?

 

A Igreja não é uma coisa só

Página do manifesto OutInChurch, com fotos de alguns dos protagonistas que assumem a sua condição LGBT

 

Creio que, um pouco por todo o lado, na Igreja a que pertenço, há, no universo da afectividade, uma consciência de discursos, escolhas e gestos desajustados. A percepção comum é a de que a Igreja é uma coisa só. E não é. Habitualmente, confunde-se “Igreja” com um grupo organizado e unívoco, que fala mais, ou melhor, ou mais alto, ou de forma oficial. E como a experiência do desencanto, da exclusão, da incompreensão remete para o silêncio e para uma certa solidão, esta grande assembleia silenciosa, esta grande comunidade de “vencidos do catolicismo”, nem sabe bem como encontrar-se, nem sabe bem como organizar-se, já nem sabe bem se vale a pena…

Em Portugal, havemos de reconhecer que os esforços que existem de cuidado e acompanhamento espiritual, no seio do catolicismo, são discretos, quase secretos, e quase só respondem a pessoas que se identificam com as letras L, G e B. Quando têm um apoio mais explícito da hierarquia, habitualmente, tendem a apresentar “terapias de conversão” e/ou a continência sexual como únicas possibilidades de acompanhamento. Com mais visibilidade, a associação Rumos Novos, o CaDiv (Caminhar na diversidade), entre outros pequenos grupos de oração e partilha de vida, sem nome, procuram simplesmente oferecer um tempo e um espaço de ser Igreja, de construir comunidade, de encontro com Deus e com irmãs e irmãos, de cuidado, de caminho espiritual conjunto, reconhecendo que devem desaparecer no dia em que a sigla desaparecer, quando nos respeitarmos cada um na sua singularidade, quando já não for uma questão na vida das igrejas.

Em breve, em Portugal, aparecerá uma plataforma, Sopro, que pretende apresentar-se, como se diz, levemente, sem barulho nem revoluções. Pretende dizer: que existem pessoas cristãs, católicas, que vivem em verdade, em fidelidade ao evangelho, em relações fiéis e saudáveis, comprometidas e empenhadas na vida da Igreja; que existem baptizadas e baptizados que se reconhecem numa das letras da sigla LGBTQIA+, sem terem escolhido; que existem pessoas que, pertencendo à maioria que não tem letra, ou que seriam os “H” de heteroafectivos, reconhecem que assim como está não está certo; que existem pessoas que pretendem ajudar pessoas em processo de se descobrirem, de aceitarem, de se amarem inteiras e em verdade, bem como os seus pais e familiares com dificuldades de aceitação, bem como pastores e agentes pastorais que reconhecem que precisam de ajuda para cuidar mais e melhor.

Que Manuel António Pina nos acalme só com um título: “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde”. E José Augusto Mourão nos anime: “enquanto não sabemos o caminho, cantemos já o dom de caminhar; se estamos juntos, não teremos medo: alguém no invisível nos espera”.

 

 

António Pedro Monteiro é padre dehoniano desde 2010. Tem trabalhado como capelão nos serviços de Assistência Espiritual e Religiosa de vários hospitais públicos da cidade de Lisboa; acompanha pessoas e grupos em contextos pastoralmente periféricos. Publica no blog e no podcast “Aquele que habita os céus sorri”,  e é parceiro, desde 2019, do 7MARGENS.

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