
Ilustração © Susana Braguês, cedida pela autora
primeiro degrau
Para isto me abeirei da poesia, para o duplo milagre do vagar e da escuta. Preciso do silêncio de que é feito o poema, o branco da página a céu aberto. E da palavra ponderada, arredondada na boca antes de ser escrita, húmida ainda de saliva e sangue. E luminosa como uma janela oriental. Preciso do velho sermão corrigido – “é preciso tempo na língua, rapaz, tempo na língua” – para aprender a bem dizer e para ser alguém educado no estar. Estar, simplesmente. Terceiro andamento de milagre, afinal: estar, simplesmente. Chamemos-lhe unilocação, maravilha moderna só acessível a ungidos. Longe vão os tempos em que dos santos se contava a bilocação. As hagiografias disputavam entre si as descrições desses raros-raríssimos a quem acontecia estar aqui e acolá em simultâneo, apanhados a falar com este e aqueloutro em tempo tão igual mas em espaço tão distante. Sorrimos, hoje, como se houvesse qualquer coisa de ingénuo nesses contos ancestrais. Nos tempos da www estamos todos exponencialmente bilocados, trilocados, tresloucados até à desagregação do espaço e do tempo, primeiro, da alma e do corpo, depois.
Às vezes encontro esses raros-raríssimos que conseguem o milagre de estar em um lugar como um sobreiro ou uma fraga. Nada lhes falta nem sobra, estão ali. Quero isso, ardentemente. Nada me parece mais poético nem verdadeiro do que essa nobre arte de estar presente, do primeiro ao último átomo de atenção. E viajo para a boca do Mestre quando pronunciava a palavra Vigilância.
segundo degrau
A poesia também me ensinou a ler em voz alta. Obrigou-me. Forçou-me à escuta. As palavras contorcem-se como seres vivos que querem dançar na própria música que têm dentro. As palavras querem apenas usar-me. O leitor é um gramofone para o poema, um búzio ao qual ele encosta o ouvido. Quando me perguntam como se há-de ler a bíblia, sempre digo que frequentem poesia, porque é urgente ler devagar e ser modelado pela escuta. E também, claro, para conviver com palavras cujo corpo se move subtilmente como animais que dormem depois da comida.
terceiro degrau
Sou frágil diante da confusão, reajo-lhe como a uma agressão. E no íntimo da minha imaginação, sempre tão visual na pronúncia que tem das coisas, sei que toda a precipitação é o princípio de um tombo. As únicas variantes são a velocidade e o estrondo, mas nunca o resultado. Por isso me assusta que em tempos de mudança, aqueles de quem espero que me ensinem a esperar e a pensar enquanto o faço, se apressem desalmadamente para soluções. Esta pandemia tem sido vistosa nesse âmbito, sobretudo nos primeiros meses. A paragem do confinamento gerou uma azáfama de remedeios nas práticas religiosas que se descreveriam entre o foleiro e o barulhento. A pressa gera cópias de mau gosto do que já antes não era especialmente bonito nem bem feito. A ansiedade inventou réplicas e imitações com tanto de comprovada boa vontade quanto de mau gosto.
Gosto da palavra solução. Mas prefiro-a em semântica laboratorial, como calda de verificação, como ferramenta de cultura. Assim, a palavra solução invoca lentidão, cuidado, minúcia, tempo, investimento, vigilância, avaliação, hipótese, novas experiências. Este é o caminho para o desenho alternativo das coisas. Há um espalhafato na pressa que imediatamente inventa uma maneira de continuar a fazer o que se fazia, proliferaram os subprodutos das contingências. Mas isso são alterações. Normalmente, de quem se altera facilmente, também. Mas alternativa é outra coisa, implica a poética paragem diante do vórtex, a lucidez para não seguir na espiral. Uma alternativa autêntica tem a vitalidade de uma semente, mas também a sua lógica. Assim o Mestre falou da alternativa divina que salva o mundo, à qual chamou Reino.
Quero muito um cristianismo em cujas comunidades se pronuncie belamente o Reino, se oiça devagar o Verbo, se intua lucidamente o Espírito e – porque não? – se pense com elegância comunitária e inteligência inspirada.
Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico