Durante o confinamento reli um livro de que muito gosto, Passagens de Teolinda Gersão (Sextante, Porto Editora, 2014), que ganhou o Prémio Fernando Namora em 2015.
Trata-se de uma obra escrita a várias vozes, tomando como ponto de partida uma senhora idosa (Srª D. Ana, ex-farmacêutica) que morre durante o sono no lar onde residia. Ao longo do livro várias “falas” se fazem ouvir à sua volta, enquanto repousa no caixão na capela do lar. Por lá passa a voz dos filhos, sobretudo de Marta que visitava a mãe diariamente, outros irmãos, os netos, uma amiga – todos eles cruzando a morte da “dona Ana” com as suas próprias experiências, culpabilidades, temores, etc. Também ouvimos a enfermeira e a diretora do lar. Segundo Marta, “as empregadas tinham um ar ausente, fatigado ou falsamente exuberante. Outras vezes pareciam-me guardiãs de um segredo terrível: crianças mortas atrás de portas fechadas, crianças velhas, anestesiadas, dormindo” (pág. 28). É sobre estas “empregadas” que a leitura de Teolinda Gersão me fez refletir.
A determinada altura do livro sobressai a voz de uma das cuidadoras, Conceição, que é colocada pela diretora do lar a velar durante a noite a senhora idosa que havia morrido, enquanto se esperava pela família. Conceição aproveita essa noite de vigília para desabafar/conversar com a senhora Dona Ana – que já não a pode ouvir – sobre o que é a sua vida enquanto cuidadora no lar.
Selecionei alguns fragmentos do sentido e pungente discurso/desabafo de Conceição que se desenrola ao longo de cerca de oito páginas:
“Pois logo a mim é que me havia de calhar, a diretora não podia ter escolhido outra? A danada da Clementina, da Florbela, da Glória? Mas eu já sabia, as coisas más vêm sempre ter comigo. Raio de vida, depois de um dia de trabalho agora ainda venho para aqui velar mortos. Poça. Como se ainda fizesse pouco: Levanto-me às cinco e meia, tomo café a correr, arranjo as lancheiras e o pequeno-almoço, acordo o Zé e as crianças às seis, faço a cama, mando as crianças despacharem-se com as camas delas, mal engolem o pão e o leite, dou um beijo ao Zé que põe as coisas no lava-louça e depois deixa as crianças na escola. (…) Entretanto eu já corri para apanhar o autocarro das seis e meia, se não apanhar aquele não chego a tempo de picar o ponto, o próximo demora e vem tão cheio (…) e ainda vou a tempo de apanhar o barco, só respiro quando já estou a balançar no rio, de pé ou sentada, tanto se me dá, depois é só correr para o metro (…) e saindo do metro são só três ruas até à porta do lar… [passo três horas por dia nos transportes…]. Mesmo assim chego a deitar os bofes pela boca fora, pego no trabalho às oito e já tenho de estar fardada. (…) Os turnos é que nos matam, a vida da família fica num sarilho (…) e os sonos trocados. Depois de uma noite de vela anda a gente a dormir em pé, às vezes tem de se ficar no lugar de outra colega o dia todo, pois saiba que já tenho estado vinte e quatro horas sem ir à cama, dona Ana. (…) O que vale é que nem sempre as senhoras chamam de noite (…) [Mas] quando o despertador toca fazemos a ronda dos quartos, há muitas que não dormem e falam toda a noite, outras gritam, talvez tenham dores ou pesadelos (…). Claro que temos pena, mas a senhora compreende, dona Ana, de nós ninguém quer saber. Chegamos moídas de todo ao fim do dia, e o salário é uma miséria, mesmo com o que o Zé ganha mal dá para a gente comer e comprar a roupa das crianças. E é um trabalho muito duro, a senhora já pensou? (…) é mesmo um dos piores trabalhos, mijo e merda e vomitado e fraldas sujas, e a gente a pegar nas senhoras em peso e faltarem-nos as forças, por causa disso arranjei uma hérnia e já fui operada à coluna duas vezes mas mesmo assim tenho muitas dores (…). As senhoras são pesadas, mesmo quando são magras pesam muito. (…) É preciso dar-lhes o comer na boca, e tratar delas o tempo todo. E depois das senhoras temos ainda tudo às costas; toda a lide do lar somos nós que a fazemos (…). E é assim o dia todo, não paramos senão para almoçar, quatro de cada vez porque não há lugar para mais, pomos uma mesa pequena no vão da porta, entre a lavandaria e a cozinha (…) e não nos dão nem o raio de um café, se o quisermos que vamos tirá-lo à máquina e meter lá as moedas. (…) E há as senhoras boas e as más, as que cospem em nós e nos mordem na mão (…). Pois, há senhoras boas, coitadas, mas outras são beras como a ferrugem (…) e mesmo assim a morte demora tanto. (…) Pois até lá há capela e padre, e o lar tem o nome de um santo, parece tudo muito santinho, mas vai-se a ver e é só a fingir, minha senhora, se aquilo é caridade cristã, vou ali e já venho” (pág. 35-43).
Alonguei deliberadamente a transcrição da narrativa. É que há um crescendo dramático deste discurso na primeira pessoa – o desabafo de Conceição – que nos toca até ao âmago. Conceição descreve o que é a vida das cuidadoras dos lares onde colocamos os mais velhos por um tempo indeterminado (uso deliberadamente o género feminino porque a maior parte são mulheres…). “A morte demora tanto”, desabafa Conceição. Neste registo pungente perpassa a violência da vida quotidiana de Conceição e de outras cuidadoras como ela. Neste tempo de ameaça pela covid-19, elas também estão “na linha da frente”, talvez menos visíveis do que médicos/as e enfermeiros/as. Ora, Conceição desabafa – e com ela tantas outras cuidadoras – “a senhora compreende, dona Ana, de nós ninguém quer saber.”
O esforço e investimento na “humanização” da vida dos mais velhos nos lares talvez esqueça a necessidade simultânea – e imperiosa – de uma melhor qualidade de vida para quem cuida. São sobretudo mulheres, mal pagas e pouco respeitadas – são meras empregadas: “se aquilo é caridade cristã, vou ali e já venho”.
No entanto, à medida que a esperança de vida aumenta – e ainda bem, desde que se garanta um mínimo de qualidade no seu quotidiano… “a morte demora tanto”… – há que reinventar os modos de apoiar os mais velhos nos últimos tempos da sua vida. Tenho insistido que a garantia de contato entre gerações será muito salutar, quer para os mais jovens, quer para os mais velhos. Quero, no entanto, reafirmar que nada se pode reinventar se não se “cuidar” também das cuidadoras e dos cuidadores: garantir-lhes dignidade e um tratamento humano, um salário digno, estatuto e uma formação “em serviço” que permita o seu crescimento humano e profissional. Já há largos anos Maria de Lourdes Pintasilgo, num relatório encomendado pelo Conselho da Europa, mencionava como sendo fundamentais, no futuro, as profissões ligadas ao cuidar.
“De nós ninguém quer saber” é um grito pungente de revolta. Se queremos dar dignidade à velhice, cuidemos bem de seus cuidadores. Com a sua profunda sensibilidade Teolinda Gersão traz-nos este “desabafo” de uma cuidadora. Todo o livro pede uma cuidadosa leitura, mas a narrativa de Conceição tocou-me profundamente e, confesso, também me revoltou. Fica em “jeito de aperitivo” este relato de mais um notável livro de Teolinda Gersão que tive o privilégio de voltar a ler.
Ao reler a encíclica Fratelli Tutti detenho-me no nº 96: “a vocação de formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros”. Quem cuida dos/as cuidadores/as nos lares, quem os/as acolhe, para que eles possam exercer a sua profissão (para alguns, vocação) de cuidar melhor de quem está nas suas mãos?
Lembrei-me também do livro de Valter Hugo Mãe A Máquina de Fazer Espanhóis, que descreve a vida de um grupo de homens sós num lar de idosos. No capítulo vinte e um, um dos “utentes” (palavra que detesto – prefiro que se diga “pessoas”) fala dos colegas do lar. Afirma, numa espécie de redenção depois de tanta revolta sentida por ter sido “depositado” – literalmente! – naquele lar: “Precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia”: a companhia entre uns e outros tornara-se estruturante e plena de afetividade e humor.
No caso de Conceição esse “resto de companhia” não existe. Apenas mais longe e solidão.
Teresa Vasconcelos é professora do Ensino Superior (aposentada) e participante do Movimento do Graal.