E depois dos abusos, que Igreja Católica?

| 14 Mar 2023

Abusos

“E depois dos abusos, que Igreja? Esta deveria ser a questão em debate sem ser abafada pelo arrastar de assuntos que, pela sua urgência, deveriam estar em vias de resolução e com responsabilidades claramente assumidas.” Foto © JComp / Freepik

 

Sei que há muitos e muitas para quem a fé, mais do que uma vivência, é um conjunto de ritos e de práticas que tendem a manter o seu próprio estatuto, o seu poder e a sua aparência. Para estes, a questão dos abusos será entendida como um desvio de alguns e o tempo, como sempre tem acontecido, tudo resolverá. Tenho pena que assim seja, mas enquanto católico exijo (exigimos) que me seja dado o direito de querer uma Igreja diferente, o direito a vivermos a nossa fé, dentro da comunidade que também é a nossa e à qual todos dizemos pertencer, mais de acordo com os valores evangélicos. A vivência da fé não pode ser um “faz de conta” para que tudo fique na mesma ou subjugada ao livre-arbítrio de quem detém o poder. Os católicos – uma parte, é verdade – exigem, e têm esse direito, que a conversão que preenche muita da retórica dos que estão habituados a falarem em nome de toda a Igreja seja verdadeira transformação e não “um logo se vê”.

Algumas das questões são óbvias e deviam ser tratadas de imediato para que não constituam motivo de crítica, de desconfiança e de desacreditar nos que dizem ser representantes do povo de Deus. Sublinho apenas algumas, porque muitos outros já as enunciaram:

1. Indemnizações. De uma vez por todas há que clarificar a responsabilidade institucional perante as vítimas, incluindo as vítimas de responsáveis já falecidos. Caberá depois à Igreja, no seu interior, resolver as questões com os implicados. Isto é também um modo concreto de defender as vítimas, evitando qualquer tipo de entendimento com quem violentou o seu Ser e dignidade. Deve ser a própria Igreja a criar condições que facilitem, para quem o deseje, os pedidos de indemnização. Esta questão deveria estar resolvida e ser consensual. O processo deve ser claro e transparente. A criação de uma nova Comissão verdadeiramente independente que receba, por um lado, novas queixas e que, por outro lado, aceite e analise os pedidos de indemnização, penso que resolveria em parte o problema.

2. Perdão. Pedir humildemente perdão às vítimas não é suficiente, mas será essencial, dependendo do significado que lhe atribuirmos e do modo como o fazemos.

Neste momento, este pedir de perdão deveria ser claro para todos e, esclarecido o modo de o fazer, já devia estar a acontecer ao nível de cada diocese. Pedir perdão, significa, em primeiro lugar, uma aproximação às vítimas: escutá-las, procurar entender a sua dor e ser genuinamente solidário, ou seja, fazer o impossível para ajudá-las e apoiá-las. Significa, em segundo lugar, aceitar humildemente o “não perdão” da parte das vítimas, sem que isso seja sinal de abandono. Ou seja, apesar do “não perdão”, estar disposto a escutar e a tentar responder, tanto quanto possível, às suas interrogações, dúvidas e exigências.

Solicitar o perdão não é apenas uma questão de responsabilidade, mas sobretudo porque é isso o correto à luz dos valores evangélicos. Esse acto, sendo em parte simbólico, deveria mostrar o desejo sincero de conversão, de mudança.

3. Responsáveis no ativo. Este assunto tem de ser claro e transparente, sem qualquer desculpa ou evasiva, para todos os responsáveis das dioceses. O processo deveria ter sido definido coletivamente em devido tempo (na reunião da Conferência Episcopal) e ter sido aplicado logo no dia seguinte. Fazê-lo com hesitações, aos solavancos ou, ainda mais grave, encontrando razões para o não fazer, é dar importância aos abusadores e desvalorizar as vítimas. Neste ponto não posso deixar de incluir as vítimas dos responsáveis já falecidos – o que tem servido de desculpa para uma dupla desvalorização das vítimas – e também quem omitiu, encobriu, ou escondeu o que sabia.

Poderia continuar a enumerar outras questões ainda longe de estarem resolvidas ou que provocam o titubear dos responsáveis, mas, de imediato, penso serem estas as que requerem maior urgência. Existe ainda uma outra questão que importa clarificar de vez para evitar equívocos. Há que repensar rapidamente o papel das comissões diocesanas, evitando assim interpretações erradas ou até sobreposição de papéis. Por exemplo, porque não lhes caberá o papel de criar condições, ao nível, da diocese, de apoio às vítimas, ouvir os crentes e propor alterações de procedimentos, papel de vigilância e situações menos claras, etc?…

Contudo, o que atrás escrevi não responde à questão proposta: E depois dos abusos, que Igreja? Esta deveria ser a questão em debate sem ser abafada pelo arrastar de assuntos que, pela sua urgência, deveriam estar em vias de resolução e com responsabilidades claramente assumidas. Significa isto esquecer os abusos e as vítimas? Nada disso, antes pelo contrário; mas há que, em respeito pelas próprias vítimas, exigir outro tipo de Igreja onde sobretudo as vítimas se possam reconhecer. Se pretendemos, como penso que assim seja, que o foco sejam as vítimas, temos a responsabilidade de construir uma Igreja em que também elas nela se revejam.

Esta situação revelou o que muitos de nós já sabiam e sentiam: distanciamento da realidade e dos mais fragilizados, falta de transparência em muitas atividades da Igreja, nomeadamente na prestação de contas; exercício de um ministério alicerçado no poder, na imposição de uma verdade protetora desse mesmo poder, práticas contrárias aos valores evangélicos. Jesus a todos acolheu e aproximou-se daqueles e daquelas que estavam nas margens da sociedade de então; a Igreja é seletiva nas suas escolhas e tem dificuldade em ir ao encontro. Não teremos nós, leigos e leigas, membros da mesma comunidade de irmãos e irmãs o direito de participação no processo de escolha dos nossos bispos? Como pode esse caminho ser feito? Incomoda-me uma Igreja de mão estendida no seu relacionamento com o poder, seja político ou outro menos visível e transparente. Como nos podemos tornar mais vigilantes, evitando situações como estas? Como pretendemos que sejam as nossas pequenas comunidades, as paróquias?

Penso que há que reinventar toda uma linguagem de “governo” da própria Igreja sabendo-a, mais do que uma comunidade democrática, uma comunidade de irmãos e irmãs que se regem por princípios de irmandade e de amor ao próximo e não tanto por regras, mesmo se necessárias.

Somos herdeiros de uma mensagem – amai-vos uns aos outros – e de valores evangélicos e não de rituais que se transformaram na simbologia de um poder que se perpetuou através dos séculos. Este é o tempo de nos perguntarmos, sem peias e sem ideias preconcebidas, quais as nossas escolhas e o que estamos dispostos a fazer com o legado recebido de Jesus Cristo de quem nos dizemos discípulos: Jesus escolheu a fragilidade e não o poder.

 

José Centeio é editor da opinião no 7Margens e membro do Cesis (Centro de Estudos para a Intervenção Social)contacto: jose.centeio@gmail.com 

 

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