
Cristina Inogés Sanz: os leigos católicos não encontraram ainda o seu lugar na Igreja “porque não os deixam encontrar o seu lugar”. Foto © António Marujo/7Margens
“O lugar da mulher na Igreja, que é dado pelo baptismo, permite-nos ser tão criativos” como foram os primeiros cristãos na adaptação que fizeram do credo, para serem ouvidos pelos gregos e romanos. A ideia é de Cristina Inogés Sanz, teóloga espanhola que integra a comissão metodológica do sínodo da Igreja Católica, que está a decorrer até 2024. “E isso não irá destruir os fundamentos do cristianismo. Pelo contrário, permitirá que esteja mais presente no mundo real”, defende, nesta entrevista ao 7MARGENS.
De passagem por Portugal, Cristina Inogés Sanz, conhecida de quem lê este jornal também pelas crónicas da sua autoria que publicamos regularmente, participou como convidada, em Novembro, no Congresso sobre os seminários católicos, em Braga.
Formada na Faculdade de Teologia Protestante de Madrid, Cristina Inogés colaborou já com a Faculdade de Teologia de Gotinga (Gottingen), Alemanha, e actualmente é colaboradora regular de várias publicações, entre as quais a revista espanhola Vida Nueva, além de autora de vários livros, que inclui os recentes Beguinas, Memoria Herida (“Beguinas, memória ferida”), sobre a experiência medieval comunitária e autónoma das beguinas, e La Sinfonía Femenina (Incompleta) de Thomas Merton, sobre a relação do monge místico do século XX com as mulheres.
Nesta entrevista, cuja segunda parte será publicada neste sábado, 11, Cristina Inogés defende que os leigos católicos não encontraram ainda o seu lugar na Igreja “porque não os deixam encontrar o seu lugar”. Os abusos sexuais, a relação de Merton com as mulheres e o futuro próximo do Papa Francisco e do Sínodo são os temas da segunda parte da conversa. Nesta primeira, a teóloga fala também da intervenção política dos cristãos, da questão LGBTI e do lugar das mulheres. E, sobre este último tema e apesar de gostar muito do Papa, diz que lhe diria algumas coisas, se tivesse oportunidade.

7MARGENS – Escrevia numa crónica sobre o Sínodo católico que estamos num momento em que as mudanças se podem tornar evidentes. Que mudanças?
CRISTINA INOGÉS SANZ – O laicado tomou consciência de que há um antes e um depois deste sínodo, seja ele mais lento ou mais rápido, tomou consciência de que sabe pensar, tem voz para expressar o pensamento e o que diz é importante.
Isso já é uma grande mudança e um grande avanço. A palavra única do laicado era “ámen”. Ao que vinha de cima, o laicado dizia “ámen”, era a sua única forma de expressão.
7M – Mesmo se falamos 60 anos depois do Concílio Vaticano II…
Sim, inclusive agora a sua palavra é “ámen”. É verdade que sobretudo a fase diocesana do Sínodo [da Igreja Católica] criou essa consciência de que sabemos pensar, sabemos expressar o pensamento e que o que dizemos é importante.
Estamos conscientes de que em Outubro de 2024 não teremos uma Igreja sinodal, isso é impossível. Mas já teremos um pouco a consciência de que isso se poderá alcançar e de que há um antes e um depois deste Sínodo, isso é uma grande evidência.
7M – Será essa a evidência destas mudanças?
De momento, sim. Quem tenha lido o documento da fase continental, verá que saltaram as mesmas questões em todo o mundo; questões que muitas vezes pensamos que são de índole cultural, de uma parte do mundo, porque temos uma forma de vida determinada; mas de facto destacaram-se em todo o mundo. Isso realmente é um primeiro indício de que o Espírito voa com liberdade e que essa liberdade se manifesta numa ampla base do povo de Deus. Se o povo de Deus somos todos, há uma base ampla que é o laicado e que descobriu que as coisas importantes que tem para dizer coincidem em todo o mundo. Ou seja, há uma forma de pensamento que necessita de mudar – sem se impor – e expressar-se dessa maneira.
7M – Falamos de questões como o papel dos leigos, o papel da mulher na Igreja…
O lugar da mulher…
7M – Registo a correcção. Falamos ainda das questões morais, da administração económica, das questões LGBT, dos abusos sexuais… A partir deste quadro, como olha para o momento presente da Igreja?
O meu olhar parte de uma Europa que viveu o que viveu, vive o que vive e agora está a pagar as consequências de uma forma de vida muito concreta. Mas o curioso é que as mesmas inquietudes vêm de todo o mundo, o que nos deve levar a pensar que para lá de uma visão europeia, ocidental, há, no interior das pessoas, uma reflexão que leva a ver que as coisas não são o que têm de ser.
Essas reflexões plasmaram-se em todos os pontos falados. É muito interessante que num lugar de África, como o Lesoto, tenha aparecido como um clamor, dentro da própria Igreja, [a pergunta]: o que fazemos com as pessoas LGBTI, que de repente se manifestaram enquanto tal na nossa comunidade e que não sabemos como acolhê-las? Isso mostra que há um grau de reflexão, que não há uma recusa frontal porque se reconhece que não se sabe como acolher essas pessoas; portanto, pede-se ajuda sobre o que fazer com essas pessoas, que não se quer que se vão embora e que não querem abandonar a comunidade.

7M – De que modo isso a surpreendeu?
Isto pode levar-nos a reflectir porque não fizemos, por exemplo na Europa, esta reflexão. Continuamos a colocar palas perante a realidade LGBTI, [não conseguindo] que [essas pessoas] tenham uma vida normal na Igreja, como qualquer outra. Parece que as questões LGBTI são apenas relativas aos leigos, mas há pessoas LGBTI na vida religiosa, na vida sacerdotal, entre os cardeais, terá havido entre os papas mesmo que não nos tenhamos sabido, e terá havido santos, que não sabemos que eram LGBTI. Mas é uma realidade que está aí.
Só a forma como no Lesoto se colocou a questão, sem qualquer recusa, desafia-nos a nós, que cremos que conquistámos tudo o que era conquistável como direito. Na verdade, sofremos um retrocesso, porque há muita homofobia, muito latente, sobretudo na Igreja. Alguém [que queira ser] padre porque se confessa homossexual, tem uma de duas hipóteses: se confessa, é mandado embora; se mente, vai viver toda a sua vida reprimido e com medo de que alguém descubra e o possa chantagear. Isso já não se deveria admitir hoje.
7M – Algum tema mais?…
Claro: há ainda a transparência em todas as questões económicas ou a realidade da mulher na Igreja – somos 80 por cento da Igreja neste momento, de uma Igreja que não nos aceita plenamente. Mesmo em culturas em que a submissão da mulher não se questiona por ser algo tão cultural que nem se põe em causa, também apareceu o tema.
Essa realidade está aí e há que afrontá-la, simplesmente. O facto de se terem equacionado estas questões a nível mundial abre uma possibilidade de que tal realidade exista e não se possa ocultar nem negar. Já é muito importante reconhecer e falar sobre isso.
7M – Em várias sínteses, referia-se a gestão económica, dizendo que os leigos têm mais vocação para a fazer. A partir do documento da fase continental ou de outras sínteses que conhece, como olhar para o lugar dos leigos: ele não existe, apesar da doutrina do Concílio Vaticano II?
O facto de os leigos não encontrarem o seu lugar é porque não os deixam encontrar o seu lugar. É uma evidência que o clero não se prepara para a realidade da gestão económica, para viver tudo o que implica a responsabilidade de gerir os bens da paróquia, porque nem tudo é viver dos sacramentos e com os sacramentos; se não se conta com os leigos e se em muitas paróquias, por exemplo, não há um conselho económico, isso é uma das formas mais primárias e evidentes de abuso de poder. Onde acontece não haver controlo, pode suceder tudo.
Mas deve considerar-se, além disso, que o laicado tem um sacerdócio baptismal com o qual há que contar. E disso não se fala. Estamos pensando que soluções podemos procurar porque há falta de vocações e, [quando] chega a semana do seminário ou coisas do género, parece que os leigos só servimos para dar dinheiro. Em vez de fazer novenas para pedir vocações, vamos fazer novenas para ver o que nos diz o Espírito com a falta de vocações.
7M – E que diz?…
Temos sempre a mentalidade de vir o Espírito resolver-nos o problema. Não: o Espírito está a dar-nos muitas pistas sobre o que se passa. Vamos ver o que podemos fazer com a falta de vocações, que nos está a dizer, porventura, que repensemos a estrutura eclesial – digo eclesial, não eclesiástica, é preciso dar a volta completa – no sentido do sacerdócio baptismal, que pode ser vivido pelo conjunto do laicado, homens e mulheres. Mas há que lhes dar o seu espaço, uma formação adequada – que não tem de ser uma formação igual à do clero, porque então geraríamos muitíssimos mais problemas – e, sobretudo, fazer entender que o compromisso de fé de um leigo não está ligado à agenda do pároco, nem tem de passar pela paróquia. Tem de passar pelo compromisso de fé no mundo.
Neste momento, há muitíssimos cristãos com um compromisso sólido com a questão social e com a questão política, que estão fazendo um grande trabalho fora da estrutura eclesial. Sempre pensámos que colaborar com a Igreja era ser catequista, dedicar tempo à paróquia. Não, é colaborar com o Evangelho, primeiro.

7M – Mas tão pouco se debate, no interior da comunidade cristã, esse compromisso na política, nos sindicatos, nas associações…
Sim. Tenho alguns amigos – uns mais próximos, outros menos – num amplo espectro da política, não só na grande política de partidos, mas também em associações de vizinhos (que não deixam de ser política). É curioso que todos os que são crentes coincidem no mesmo: a Igreja anima muito a que nos comprometamos, que estejamos presentes. Mas quanto se dá esse passo e se entra na política, a comunidade desaparece. Porque não quer comprometer-se em apoiar, no caso de se passar algo. Que vínculo existe se não há apoio da comunidade?
7M – No Novo Testamento, São Paulo cita várias mulheres que deixara como líderes de comunidades. Devemos começar por ir às fontes, e à Bíblia em concreto, para buscar uma inspiração, para encontrar um lugar para as mulheres na Igreja?
As cartas de Paulo colocam-nos perante os problemas experimentados pelas comunidades, todos eles diferentes. Em Paulo há um paradoxo importante: ele refere claramente algumas mulheres que acolhiam nas suas casas, e que portanto eram líderes das comunidades que acolhiam. Mas ele apaga de cena uma personagem vital no Evangelho, à qual Jesus Cristo, real e directamente a ela, lhe concede o sacerdócio supremo, que é o anúncio da ressurreição: Maria Madalena.
Que ele nunca tinha ouvido falar de Maria Madalena é muito difícil de acreditar, porque deve ter sido um acontecimento tão importante que seria recordado durante muito tempo.
7M – Mas as fontes são importantes?…
As fontes bíblicas são apenas isso, uma fonte. O que tememos é, desde a fonte, situar hoje o cristianismo.
Estamos no século XXI, não somos os primeiros. Muitas realidades mudaram, mas nós temos medo. Agarramo-nos à religião, à norma, não à crença.
Deveríamos ser mais criativos porque a criatividade pastoral é um grande aliado. Porque é que temos duas versões do credo? Quando o cristianismo e a Igreja quiseram expandir-se, tiveram de passar pela Grécia e Roma e não negaram o que veio antes, mas adaptaram uma versão para que gregos e romanos a pudessem compreender. E o credo “longo” apareceu. Tratava-se de uma questão de adaptação à realidade.
O lugar da mulher na Igreja, que é dado pelo baptismo, permite-nos ser tão criativos como eles foram na adaptação do credo. E isso não irá destruir os fundamentos do cristianismo. Pelo contrário, permitirá que esteja mais presente no mundo real.
7M – Que síntese podemos então fazer, entre a inspiração bíblica e a actualidade sinodal?
A Igreja nasce laical e sinodal. A dimensão sinodal durou mais tempo, mas a laical perdeu-se muito cedo. E porque falo de “lugar”? Se falamos de “papel”, ele é outorgado sempre por alguém que crê poder ter poder sobre outrem, que se atribui esse poder. Neste caso, é o clero.
O lugar é dado pelo baptismo. Negar o lugar a uma pessoa baptizada é manipular a realidade da comunidade e privar a comunidade do amor, do contributo, da reflexão, ajuda, conselho dessa pessoa.
Através dos séculos e neste momento, as mulheres – apesar das diferenças que permanecem – já temos um estatuto bastante igual, mas na Igreja continuamos na Idade Média. E oxalá vivêssemos, as mulheres, na Idade Média, em que as mulheres eram muito mais livres na Igreja que neste momento, para poder trabalhar e colaborar nas tarefas de evangelização.

7M – Mas quando se fala deste tema, muitos dizem que essa é a tradição e que Jesus não teve mulheres como apóstolas. Como levar as pessoas a perceber, com o exemplo de Maria Madalena e das mulheres referidas por Paulo, que esse lugar vem desde o início e desde Jesus?
Há uma personagem, que é curioso como é “esquecida”: é a samaritana que se encontra com Jesus. Muitas vezes ficamos pelos maridos que ela tinha tido, isso é o que convém. Na segunda parte do encontro, Jesus diz-lhe para ir e contar [o que ouviu] à sua aldeia. Ela podia ter chegado ao seu povo e ter contado, fazendo-se ela o centro. Mas não, ela conta às pessoas o que Jesus lhe disse, retira-se do centro, dizendo aos outros: ide e vede, ide e falai com ele. Não é preciso que ela acompanhe permanentemente a Jesus, porque ele confia-lhe um ministério, que é o de ir contar [o que ouviu]. Ela afasta-se, não é o centro.
A Igreja, como se converteu em meta e perdeu a sua condição de caminho – que é o que sempre devia ser e que devia recuperar – manipula a história.
Deus criou-nos homem e mulher. No Evangelho de João está claríssimo que o Verbo se fez carne e que na carne de Jesus está assumida toda a carne humana, de todas as condições – homem, mulher, LGBTI, raças, tudo… Se não assumimos isso, não assumiremos nada e haverá sempre diferenças. Se cremos que Jesus, porque era homem, só escolhia homens – que ainda por cima não ordenou nenhum – e que os doze são a base do que vão a ser os seus continuadores e que só podem ser homens, aquela afirmação não é verdadeira.
7M – Estudou as beguinas medievais. Esse exemplo pode ser uma inspiração?
Estamos a viver um momento muito parecido não apenas com o das beguinas, mas de todos os movimentos depois chamados de pré-reformadores, que vão desde finais do século XII ao início do século XVI. Eles vão fazendo tentativa e erro: a Igreja persegue-os mas os que nascem a seguir tomam o que fizeram os anteriores e acrescentam novas questões básicas, como a aceitação das mulheres, a participação do laicado na celebração e na evangelização, com homens e mulheres em plano igual e, sobretudo, recuperar a centralidade da Palavra. Isto, que era próprio de todos os movimentos medievais, será recuperado por Lutero, que “inventa” poucas coisas na Reforma, se quisermos ser um pouco desapaixonados.
7M – E para hoje?…
Estes movimentos – e as beguinas em concreto – são muito válidos hoje, inclusive para a vida religiosa, que está buscando novas formas e novas maneiras de estar na sociedade. Sobretudo algumas mulheres que mostraram, naquela época, que não precisavam de depender de um homem – e não estamos a falar de um qualquer feminismo, estamos a falar de mulheres que se podiam manter, que demonstraram que evangelizavam sem mover-se no mundo eclesiástico, que tinham uma sólida preparação (e mesmo as que não a tinham, não eram rejeitadas, todas tinham o seu lugar dentro do movimento).
Essas mulheres têm de nos ensinar a profundidade da relação com Deus e – para lá de serem as mães de várias línguas europeias nascentes naquela época, assim consideradas pela ONU – são as predecessoras do que hoje conhecemos como pastoral da saúde, pastoral penitenciária, pastoral de educação. Geravam, à sua volta, espaços de acolhimento, de acompanhamento, de cuidado, de cura e eram muito aceites nas cidades. [Elas protagonizavam] movimentos urbanos, não eram como os monges e as monjas que se afastavam, estavam no centro das cidades, faziam um grande serviço à sociedade…

7M – E aos mais frágeis…
E aos mais frágeis, sempre. E tudo isso era valorizado. Essas mulheres podem ajudar-nos muito e se saíssem das típicas notas de rodapé dos manuais de história da Igreja onde normalmente se fala de um movimento ético feminino medieval, ajudaria a recuperar também um pouco de objectividade na história.
7M – Como leu a declaração recente do Papa sobre as mulheres, tendo em conta que, antes, ele dissera que era preciso encontrar um lugar para as mulheres, incluindo nos lugares de responsabilidade na Igreja?
Ele também já tinha dito que a questão da ordenação de mulheres está encerrada e isso não é verdade: por muito que seja magistério de João Paulo II, há muitíssimos exemplos na história em que um Papa disse coisas que depois outros desdisseram. Quando a questão se abrir – porque assim acontecerá –abrir-se-á tarde, mal e por necessidade, porque não somos capazes de ir valorizando e ir formando opinião.
Por outro lado, sublinhe-se o facto de [o Papa] ter criado uma segunda comissão para o estudo do diaconato feminino. O cristianismo de hoje não tem nada a ver com a Igreja e o cristianismo do primeiro século. Não temos de [fazer igual às] mulheres que viviam o diaconato no princípio do cristianismo, temos de ver como o vamos viver hoje. Vejamos o exemplo das mulheres da Amazónia e de muitas outras zonas, onde as mulheres realmente são diáconos “sem papéis”: exercem como tal, mas canonicamente não o são, porque não têm a nomeação canónica.
7M – O Papa pode mudar alguma coisa nesta matéria?
Eu quero muito ao Papa Francisco, gosto muito dos movimentos que ele faz para colocar o Evangelho no centro e para fazer certas mudanças. Mas também é certo que em algumas questões gosta muito de criar uma certa expectativa que depois não se cumpre. Por exemplo: nomeou mulheres para certas áreas importantes no Vaticano, como os Museus Vaticanos, que são dos mais importantes do mundo. No circuito dos grandes museus, causou assombro que tenha sido nomeada uma mulher, quando nunca houve nenhuma directora do Prado ou outros museus.
Isto é assim, mas também é verdade que lugares como esse são administrativos, não têm a força de um lugar deliberativo. Na hora da verdade, continua-se a não contar com a participação das mulheres. Eu gosto muito do Papa, mas se tivesse oportunidade dir-lhe-ia: uma coisa são os lugares de responsabilidade, mas o governo da Igreja continua nas mãos dos cardeais…