
Peter Brueghel, o Velho, Os Inválidos (Os Mendigos), 1568
Tendo sido publicada, nos finais de 2021, a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, e nomeada recentemente a sua coordenadora, julgo que pode ter alguma utilidade perceber a durabilidade de algumas imagens e soluções ineficazes que, ao longo do tempo, foram sendo pensadas em Portugal em relação à pobreza e às formas de assistência.
O problema é tão persistente, que se torna difícil compreender como é que não há um sobressalto cívico, constante e generalizado em favor daqueles que são frequentemente transformados em números e estatísticas. Apesar das reduções na taxa de pobreza e exclusão social em Portugal, em 2021, c. de dois milhões de pessoas ainda integram essa categoria. Não deveríamos reflectir mais sobre a nossa responsabilidade individual e comunitária em relação a esta tragédia, que também é mundial (em 2022, 3,1 mil milhões de pessoas, quase metade da população mundial), e que levou o Papa Francisco a insurgir-se de forma veemente através das encíclicas Laudato Si’ e Fratelli Tutti?
Nos parágrafos que se seguem, proponho uma curta viagem por três modelos que enquadraram, nos séculos XVI e XVII, os imaginários sobre a pobreza e a assistência em Portugal: os primeiros dois modelos viam a pobreza como um problema da ordem política e social, pugnando por um conjunto de medidas que visavam a sua erradicação; um terceiro modelo, transversal a toda a sociedade cristã, considerava a pobreza como parte da economia da salvação. Assente sobre a convicção de que a ordem social era naturalmente desigual, não procurava erradicar a pobreza, mas apenas mitigá-la através da caridade. Nos textos que se seguem procuro acompanhar a evolução destes modelos e o modo como eles se entrecruzaram na reflexão sobre a pobreza e a assistência desde o século XVIII até ao século XX.
Face à pobreza crescente que assolava a Europa, o humanista espanhol Juan Luis Vives publica, em 1526, o tratado De Subventione Pauperum. Inspirado pela ideia de que o homem podia ser aquilo que quisesse ser, Vives considerava que os poderes políticos (sobretudo municipais) deviam aferir a responsabilidade do pobre pela sua situação de pobreza. Em relação aos que eram involuntariamente pobres, cabia a estes poderes encontrar soluções para que fossem alimentados, ajudados e as suas crianças instruídas. Quando considerados merecedores de assistência, estes pobres estabeleciam um “contrato” com a sociedade que lhes providenciava ajuda, deles se esperando que se comportassem exemplarmente. Caso contrário, tornar-se-iam maus pobres, perdendo o direito à ajuda. Já nos casos de pobreza voluntária, não se devia dar esmola ao pobre, pois essa condição resultava das suas próprias acções. Os maus pobres, na verdade, estavam sujeitos à punição, exclusão ou até mesmo enclausuramento.
“O rico necessita mais do pobre”

As propostas do humanista Vives – e de outros que preconizaram soluções semelhantes – foram mal recebidas entre vários teólogos católicos, suscitando um interessante debate sobre as causas da pobreza. Na Deliberación en la causa de los pobres (1545), o teólogo e canonista dominicano Domingos de Soto alertou para alguns dos perigos inerentes à concepção humanista da dignidade humana. Para Soto, a bondade intrínseca desta concepção podia ter consequências nefastas, tais como a desqualificação, desdém, desprezo e até mesmo ódio por aqueles que não encaixavam nos padrões idealizados pelos humanistas. Entre estes estavam os pobres, que eram pessoas incómodas à concretização de uma ordem social bem organizada, tal como esta era imaginada por Vives. Lembrava Soto que, na maior parte dos casos, os pobres já nasciam pobres, pelo que a sua pobreza não resultava de uma escolha individual, mas de um problema social, que implicava a comunidade como um todo. À semelhança do que Tomás Moro defendera na Utopia (1516), Domingos de Soto considerava que os pobres eram pouco protegidos pela sociedade devido à sua debilidade social, incapacidade reivindicativa e ausência de poder; passando-se o inverso com os ricos.
A tensão entre responsabilidade individual e responsabilidade comunitária/social como causas que explicavam a pobreza e determinavam as formas de assistência – tópicos que continuam a ser evocados nos dias de hoje – alimentou a controvérsia que opôs Soto, Vives e tantos outros. Mas estas visões conviviam com uma outra, que colocava o pobre como um dos protagonistas do plano da salvação.
Num sermão de 1647, o padre António Vieira pregaria que os pobres eram mais bem-aventurados que os ricos. Segundo Vieira, os ricos que partilhavam a sua riqueza eram “bem-aventurados porque hão-de ver Deus”, enquanto os pobres eram “bem-aventurados porque neles está Deus”. Cristo já habitava o pobre, razão pela qual ele devia ser ajudado pelo cristão. Acrescentava Vieira que “todo aquele que come a Cristo sacramentado no pão é obrigado a sustentar e matar a fome ao mesmo Cristo sacramentado no pobre”. Apesar de Vieira querer dignificar a pessoa do pobre e fazer uma apologia da caridade, o fim da pobreza não estava no seu horizonte. Anos mais tarde, o igualmente jesuíta padre Manuel Fernandes sintetizaria esta percepção do pobre no tratado Alma instruida na doutrina e vida christã (1699) ao escrever: “Mais necessita o rico do pobre”, porque “os ricos necessitam dos pobres quanto à salvação”.
Como os (bons) pobres tinham o céu garantido, estes eram mais bem-aventurados do que os ricos. Da doutrina e da vida cristã esperava-se, todavia, que a sua pobreza material fosse mitigada através da caridade. Na verdade, entre muitos dos que situavam o pobre na economia da salvação, os pobres raramente eram ajudados por si mesmos, mas sobretudo porque neles estava representado o rosto de Cristo. Além do mais, se não houvesse pobres, como é que os ricos alcançariam a salvação?
Próximo texto (a publicar amanhã, dia 6): A Igreja no debate sobre como escapar ao ciclo da pobreza.
Ângela Barreto Xavier é historiadora, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, co-coordenadora do vol. IV dos Portugaliae Monumenta Misericordiarum (2004) e do livro O Governo dos Outros. Poder e Diferença no Império Português (2016). Foi distinguida com o Prémio Infosys 2021 em Humanidades, da fundação indiana Infosys Science Foundation.