
Prostituição de rua: “É tão difícil… É horrível aquilo por que temos de passar nesta vida. Às vezes sinto-me desfalecer e sem forças…” Foto © Wilfredor/Wikimedia Commons
No segundo capítulo da encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco centra-se na parábola do Bom Samaritano para nos encorajar a estar atentos aos “estranhos do caminho”, dando-lhes tempo e espaço no nosso coração e na nossa vida: “um deles parou” e “encheu-se de compaixão”.
Este “parar” é um deter-se diante do outro, da outra, para poder ver, vencendo a tentação da “indiferença, deixar-se afetar e implicar-se na sua situação de vida. A pergunta de Deus a Abel – “Onde está o teu irmão? (E a tua irmã?)” – tem hoje uma atualidade urgente e exige de nós um exercício de atenção, abertura e cuidado com aqueles e aquelas por quem ninguém pergunta. Talvez porque “vivemos melhor” sem o saber; talvez porque não tenhamos respostas, ou talvez – diz o Papa – porque estamos “muito concentrados nas nossas necessidades e ver alguém que está mal incomoda-nos, perturba-nos, porque não queremos perder tempo por culpa dos problemas alheios”. Como refere a encíclica, a parábola do Bom Samaritano não nos deixa indiferentes e exige que nos posicionemos e nos definamos: quem sou eu nesta narrativa? Se me escuto mais profundamente, que missão sinto que Deus me confia? Quem estou chamado/a a ser?
As Irmãs Adoradoras recebem o dom carismático de se fazerem próximas das jovens e mulheres em situação de vulnerabilidade e exclusão. Na missão que tenho junto de mulheres em situação de prostituição, desloco-me frequentemente a estes contextos para estar com elas em estradas, ruas, bares e apartamentos, com o intuito de “oferecer proximidade”. Fazê-lo implica sempre um exercício de despojamento e de abertura para reconhecer e acolher cada mulher e a sua situação.
Naquela noite de Natal, decidimos em comunidade que estaríamos num espaço estratégico na zona da baixinha de Coimbra, aberto a partilhar a ceia com quem estivesse mais só. Dias antes, começámos por falar disto a algumas das mulheres que conhecíamos e acompanhávamos e sabíamos da sua situação de solidão devido à falta de vínculos ou porque a família se encontrava longe, nos países de origem. Durante a ceia, saíamos várias vezes a pé pelas ruas e becos da zona e convidávamos quem encontrássemos mais desorientado e só.
Era uma experiência nova e com alguma dose de risco. Implicámos várias pessoas amigas e voluntárias nos preparativos prévios, uma vez que, à hora da ceia, tocava estar com a família.
Aproximava-se a hora de sair de casa e habitava-nos um misto de entusiasmo e apreensão pelo que pudesse acontecer. Fomos à capela de casa encomendar a nossa atividade e, de repente, apercebemo-nos que não O podíamos deixar! Logo Ele, Jesus, que tinha nascido fora da cidade, “à margem”, junto dos malvistos, porque “não encontrou lugar” na cidade. Seguramente, Ele desejava estar presente nessa noite, junto daqueles e daquelas que sempre têm lugar para mais um; talvez porque os seus nomes não constam dos “registos de propriedade”. Levámo-lo connosco e fizemos-lhe um cantinho reservado e cuidado, pusemos uma mesa e forrámos o chão com alcatifa e almofadas. A nossa alegria era imensa: sabê-l’O ali connosco, era revisitar aquele simples e tão extraordinário acontecimento de há mais de dois mil anos, naquela noite, numa manjedoura daquele curral de animais com os excluídos daquele tempo, os pastores.
Quando se proporcionava e nos parecia oportuno, levávamos “ao cantinho” algumas das pessoas que vinham e apresentávamos Aquele que era a razão e o sentido de tudo aquilo. Chegou uma das “nossas” mulheres; oferecemos-lhe canja quente, seguida de bacalhau com natas e, antes da sobremesa, convidei-a a visitar “o cantinho”. Esta mulher, igual a muitas outras, tinha tido um percurso de vida difícil: oriunda de uma família do Norte com posses, foi educada em colégios, com formação humana e religiosa. Uma doença psíquica manifestada na juventude, fê-la desorientar-se, sair de casa e acabar na prostituição; vivia de pensão em pensão, na zona da baixinha da cidade.
Ao entrar no espaço e perceber do que se tratava, nem queria acreditar… Convidei-a a aproximar-se e ela, hesitante, confidenciou-me que não podia, acrescentando: “Estou impura.” Recordei-lhe as circunstâncias do nascimento de Jesus e a Sua imensa alegria em nascer ali, naquela noite, naquele contexto e tão perto. E da Sua grande vontade de nascer na vida dela! Com a cara entre as mãos e, enquanto se desfazia em lágrimas, ajoelhou-se e confidenciou-me: “É tão difícil, Martinha! Venho de atender um cliente… É horrível aquilo por que temos de passar nesta vida. Às vezes sinto-me desfalecer e sem forças para continuar.” Abracei-a e deixei que chorasse. Quando se recompôs, demos as mãos e rezámos o Pai-Nosso. Continuando, disse em tom de súplica: “Martinha, deixa-me recebê-l’O!”. E acrescentou: “Eu sei que Ele está sempre comigo, mas preciso de O sentir! De outra forma, não sei se poderei aguentar…”
As Irmãs Adoradoras têm a missão de promover a dignidade de cada uma destas mulheres. O Papa alerta-nos, como seres humanos: “fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor. Viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído ‘nas margens da vida’. Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade.”
Maria Martinha Silva é religiosa das Irmãs Adoradoras, a trabalhar na comunidade de Coimbra