Editora francesa oferece “panfletos” sobre a crise

| 3 Abr 20

Erri de Luca, escritor italiano

Erri de Luca, escritor italiano, um dos autores da colecção: “O Sábado não é um dia de festa, mas de paragem”. Foto © ActuaLitté/Wikimedia Commons

 

Sendo certo que as doações essenciais neste período de pandemia dizem respeito a tudo o que nos pode tratar da saúde física, não há razão para negligenciar outras dádivas. É o caso de uma das mais famosas editoras francesas, a Gallimard, que diariamente oferece a quem quiser, em formato EPUB ou PDF, textos que pretendem ser uma terceira via entre a solenidade da escrita de um livro e o anódino da informação de um ecrã. Estes escritos pedem aos autores uma reflexão e um tom e aos leitores “trinta minutos de atenção, em vez de dois ou três”.

“A nossa liberdade de pensar, como de facto todas as nossas liberdades, não se podem exercer fora da nossa vontade de compreender”, afirma o editor, Antoine Gallimard. É à vontade de compreender que estes “panfletos de crise” (título da colecção), com mais ou menos eficácia, se oferecem. Os autores provêm de várias áreas como, por exemplo, a Filosofia, a Física, a História, o Jornalismo, a Literatura, a Neurocirurgia, havendo ainda um ex-jogador profissional de hóquei no gelo.

“Globalmente, estes primeiros dias de confinamento não traçam a vitória da imaturidade, mas sobretudo o desejo de ser resiliente, de aprender, de inovar, de tirar proveito desta oportunidade de respeitar os outros e os valores da responsabilidade comum”, escreve Cynthia Fleury. A filósofa e psicanalista acrescenta que a questão, agora, “é a da durabilidade da tomada de consciência e da vontade de fazer de outro modo”.
A filósofa Adèle van Reeth partilha um receio: “Tenho medo que as mulheres e as crianças que vivem com um predador sofram ainda mais do que o habitual, tenho medo que a solidão, que até hoje é o remédio mais eficaz contra o vírus, não dê cabo dos meus avós e todas as pessoas doentes ou frágeis a quem as visitas são agora proibidas. Estou, como toda a gente, confinada em casa, tenho medo pelos outros e não estou preparada para os ajudar.”

Aproveitar a oportunidade para empurrar o assunto para outra modalidade de confinamento é o que faz Pierre Jourde. “O nosso mundo aberto também criou uma paixão pelo confinamento mental”, julga o escritor, apresentando como exemplos os estudantes que se recusam a que sejam tratados assuntos que chocam as suas convicções; o expurgar as obras de tudo o que pode ferir a sensibilidade de todos os tipos de categorias sociais, físicas, sexuais ou étnicas; o recusar-se que os brancos tratem da cultura negra ou ameríndia porque isso seria uma “apropriação cultural”. O último caso citado é o de uma artista americana que recusa que os seus espectáculos sejam comentados por críticos brancos. Ou seja, “cada um fecha-se na sua identidade, qualquer que seja o conteúdo dado a essa identidade. Cada um em sua casa”.

A reflexão de Patrick Kéchichian conduz a um conjunto de dúvidas. “O ser espiritual e interior em que, secretamente, sem o confessar, fazia o meu projecto, o meu motivo, a minha razão de ser, a minha identidade e quase a minha glória, deve enfrentar uma outra verdade: a do real”. A verificação do jornalista e escritor impõe algumas interrogações: “E com que direito, disso, me poderei queixar? Esta relativização, devo-a, clamando a minha própria inocência, condená-la? No império microscópico do meu interior triunfante, não é hora de submeter o teste decisivo, virtualmente mortal, do exterior?”

Explicando que “quem lê muito reconhece, ou julga reconhecer, os símbolos e os paradigmas nos acontecimentos”, o escritor italiano Erri de Luca fala do Sábado, dia de descanso. “O monoteísmo instituiu o Sábado, que literalmente não é um dia de festa, mas de paragem. A divindade prescreveu a interrupção de todo o tipo de trabalho, incluindo a escrita. E impôs limites às distâncias que poderiam ser percorridas a pé nesse dia. O Sábado, está escrito, não pertence a Adão: o Sábado pertence à terra. Esta injunção a deixá-la respirar impondo uma paragem foi ignorada”.

A terra não recuperará dos Sábados de que foi privada, considera Erri de Luca, que assinala o quão históricos estão a ser estes dias: “Pela primeira vez na vida, estou a testemunhar esta reversão: a economia, a obsessão pelo seu crescimento, saltou de seu pedestal, não é mais a medida dos relacionamentos nem a autoridade suprema. De repente, a saúde pública, a segurança dos cidadãos, um direito igual para todos, é a única e imperativa palavra de ordem.”

A propósito: como muitos têm vindo agora a reconhecer, aqueles que cuidam de nós, executando os trabalhos mais necessários – nos hospitais; nos lares da terceira idade; nas farmácias; nas mercearias, nos supermercados e nos hipermercados; nas padarias, nas frutarias, nas peixarias, nos talhos ou nos quiosques; nos transportes públicos; na limpeza urbana; ou nos correios, por exemplo –, encontram-se entre os mais mal pagos, enquanto que muitas profissões com remunerações elevadíssimas se revelam sem um módico de préstimo social.

Outro aspecto singular do que estamos a viver é assinalado por Alain Borer. Afirma ele que, “pela primeira vez na história, toda a humanidade reage ao mesmo tempo como um único ser humano à beira da morte”. Neste aumento da intensidade colectiva, acrescenta o escritor, podemos reconhecer “todos os comportamentos do homem diante da morte que espreita, coragem e covardia, culpabilidade, elevação da alma, blagues proliferativas para conjurar a angústia e este sentimento do último momento que é, sem dúvida, o mais frequente à medida que ele se aproxima: a incredulidade”.

É também para lidar com ela que se oferecem os “panfletos de crise”, cuja lista completa pode ser consultada na respectiva página.

 

Uma Reli em Portugal

Não se trata de ofertas do género, pelo menos para já, mas em Portugal 35 estabelecimentos do ramo constituíram-se como Rede de Livrarias Independentes (Reli), lançando ao mesmo tempo as campanhas “Livraria às cegas” e “Fique em casa, mas não fique sem livros”, oferecendo algumas vantagens para encomendas feitas durante este período.

A rede, que está aberta a adesões de outras livrarias, acredita que todos os livreiros independentes do país poderão agregar esforços, “delinear estratégias e acções comuns e enfrentar” a situação inédita provocada pela pandemia do novo coronavírus – num momento em que, dizem, o encerramento de livrarias independentes por causa da especulação imobiliária “dava sinais de algum abrandamento”.

As livrarias integrantes querem enfrentar juntas a crise, intervindo também junto da sociedade e dos poderes públicos. Nesse sentido, escreveram uma carta aberta em que propõem algumas medidas de apoio do Estado ao sector.

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