No romance gótico A Volta no Parafuso*, de Henry James, uma preceptora acaba a lançar duas crianças (um menino e uma menina) nos braços da morte, ao querer protegê-las da influência nociva de duas aparições, os fantasmas de um casal de adultos (a anterior preceptora e um criado) que teriam pervertido as crianças, no passado, iniciando-as precocemente na crueldade e na luxúria.
As boas intenções da preceptora, em vez de as libertar do “mal” como pretendia (ou, nas palavras da própria, de as “salvar”), resultam no adormecimento das suas inteligências e no bloqueio das suas potencialidades, enfim, matam aquilo que ao corpo único dos seus pupilos estaria prometido. É possível reconhecer aqui uma denúncia velada de Henry James ao crime que é toda a educação que, repleta de suposições, não concede escutar quem tem pela frente e levar essas potencialidades singulares ao estado de realização autónoma.
Não sejamos tão implacáveis para com a preceptora de A Volta no Parafuso. Afinal, ela prenuncia, a um século de distância, uma impotência só agora plenamente manifesta: a impossibilidade de educar em tempo de fantasmas. Porque este, sem que habitualmente nos apercebamos, é de facto um tempo de fantasmas. Na verdade, a preceptora representa uma espécie em extinção: a dos mestres. Por mais professores que ainda existam, de ano para ano, a sua função parece tornar-se obsoleta.
É impossível ser mestre, quando a figura correspondente, a do jovem aprendiz (aquele que acreditaria no valor do conhecimento e que existem seres dotados da capacidade de o auxiliarem na descoberta do mundo), já não existe.
A extensão de tal crise é ampla e profunda. Vai até às raízes do que é educar. Se este acto implica um vínculo, uma continuidade e um desvio fecundo, podemos dizer que também a educação parental estará dentro em breve morta, uma vez que a figura do filho, tradicionalmente entendida, morre também. A ruptura niilista consumada no mundo virtual em que vivem parece não ser reatável.
A morte de Deus anunciada por Nietzsche, não era mais que a constatação da morte da autoria: o autor-mor está morto simplesmente porque não é reconhecido pelas criaturas; começavam a morrer com ele o vínculo com o passado, os autores da tradição, os Pais; morrem, agora, os que socialmente os vieram substituir, os “autores” e transmissores do saber, os Mestres, vulgo, professores.
Nesta galeria de espaços vazios, quem dará agora a conhecer o mundo às nossas crianças e aos nossos jovens? Verdadeiramente ninguém. Ou, se quisermos ser subtis, na realidade são fantasmas que educam hoje as crianças e os jovens. Não já as figuras tutelares e impotentes dos pais ou dos professores, mas o próprio mundo tornado espectro, um mundo feito de imagens fascinantes que chegam incessante e inapelavelmente. A criança chora no comboio ou na sala de espera do médico? Dá-se-lhe o telemóvel ou tablet, e ei-la a jogar. O jovem está aborrecido num jantar de família? Nem precisa de pedir. É tácito que tem o direito de se refugiar no Instagram ou no seu grupo de Whatsapp.

“O jovem está aborrecido num jantar de família? É tácito que tem o direito de se refugiar no Instagram ou no seu grupo de Whatsapp...” Foto: Today Testing / Wikimedia Commons
Mas que mundo fantasmagórico é este que se dá a conhecer aos nossos filhos e aos nossos jovens sem qualquer mediação? Sim, porque por mais que alguns pais ou professores lhes tentem fornecer um filtro crítico, um princípio de realidade, este mundo é tão poderosamente fascinante, hipnótico e narcotizante que aqueles nada podem…
Aliás, se as crianças e os jovens são hoje educados por fantasmas, os adultos estão longe de ser imunes ao seu fascínio. É como se a envolvência de tal mundo, que afecta ambos, não permitisse um pensamento a frio sobre ele. Ainda que o, por assim dizer, crime de pensar, seja precisamente a única forma possível de nos colocarmos ainda diante desse mundo. À distância que nos permite o pensamento crítico verificamos que estes fantasmas falam. São veículos de ideologia. Até porque os fantasmas não vêm do nada, por detrás de qualquer mundo criado há sempre uma ideia geradora…
Curiosamente, tal como a maior parte das histórias góticas, as sementes da “construção mental” desse mundo foram em grande parte anglo-saxónicas, sementes que, transplantadas para o continente americano, deram origem a um embondeiro que cobriu a Terra. Não falo apenas da Sociedade do Espectáculo, que Hollywood, a televisão e depois os novos meios tecnológicos difundiram e impuseram exaustivamente; não falo sequer particularmente contra a imagem ou o cinema – pois também a imagem enquanto filha da imaginação criativa e o cinema enquanto filho do pensamento crítico podem colaborar na criação de seres humanos autónomos; falo antes dessa espécie de nova ideologia que, composta por implícitos epistemológicos, psicológicos e filosóficos (a maioria nascidos na dobra entre o séc. XIX e o séc. XX), está na base do mundo tal como se nos apresenta hoje através dos ecrãs.
Pensando, por exemplo, nos videojogos ou nas redes sociais – falo do behaviorismo, segundo o qual o comportamento humano se reduz à resposta imediata a um estímulo; falo do ódio ao pensamento que ele gera, já que a interposição do pensamento se apresenta como empecilho à “acção”. Falo da usurpação do antigo lugar do livre-arbítrio (ou da possibilidade do seu uso) que o behaviorismo representa, na medida em que, sem a colocação de várias hipóteses pelo pensamento, sem a avaliação das mesmas por este, sem a recusa de alguns estímulos e a decisão final por um deles, não há verdadeira acção (isto é, acção livre).
Falo, a este propósito, das formas contemporâneas do behaviorismo: do presentismo radical que, ignorando as raízes antropológicas e históricas do presente, cria perigosos desmemoriados, terreno fértil de populismos e novos fascismos; do presentismo da velocidade que, exaltando a fruição sem demora e sem a avaliação das consequências, compromete a capacidade humana fundamental de projectar a vida; do presentismo hedonista e narcísico disfarçado de “nova espiritualidade”; do presentismo multissensorial que, violando os limites temporais do cérebro humano para o processamento de informação, põe em risco a saúde mental.
Falo, neste caso ainda, dos placebos encontrados para o mal-estar decorrente da negação da negatividade inerente a qualquer vida humana, placebos que superficialmente iludem as doenças do excesso, mas nada resolvem na raiz: o opinismo amador ou supersticioso dos youtubers, as fórmulas new-age, as “psicologias positivas”, o coaching, os livros de auto-ajuda, as novas igrejas milagreiras, as velhas, de rituais vazios, que, ainda assim, tal como os outros placebos, se insinuam no novíssimo espaço virtual…

“Todas estas formas de ideologia afectam hoje indelevelmente as relações humanas, os gestos e as criações humanas”. Foto: Sara Nieto, Acções do marketing digital / Wikimedia Commons.
Desse tão próximo de nós séc. XIX vêm também o pragmatismo, a publicidade, o cientismo, o darwinismo e todas as formas actuais derivadas dos mesmos… O pragmatismo, segundo o qual só o útil é verdadeiro e válido; sendo tudo, consequentemente, comprável e/ou descartável, valendo o conhecimento e a arte, por exemplo, apenas na medida em que forem convertíveis em moeda… A publicidade persuasiva que, criando tendências artificialmente e oleando a obsolescência programada dos produtos, alimenta o velho sistema capitalista, para o qual se é tanto mais quanto se produz e consome… O positivismo científico, essa fé cega no facto e nas ciências exactas, hoje sociologicamente convertido em cientismo estatístico e burocrático, segundo o qual se crê ser possível ler numericamente a complexa realidade humana, violentando-a através de simplificações desumanas que, para cúmulo, se impõem, no mundo escolar e do trabalho, como metas a atingir… O darwinismo social, que, refundado no mito da igualdade de capacidades em todos os humanos, as destina a uma única necessidade: a luta individual e interesseira pela sobrevivência.
Florescem hoje, graças a este, os dogmas sinistros do empreendedorismo e da meritocracia, segundo os quais a vida social, sendo biologicamente determinada pela sobrevivência, resulta na divisão da humanidade em: os justamente bem-sucedidos empreendedores (poucos) e a multidão imensa dos “falhados preguiçosos”. Tais dogmas são, de resto, os critérios cegos de eugenia social pelos quais se avaliam, e sobretudo se seleccionam, jovens e adultos, nas escolas e nas empresas…
Todas estas formas de ideologia afectam hoje indelevelmente as relações humanas, os gestos e as criações humanas. Estão presentes no marketing existencial vigente nas redes sociais, segundo o qual cada ser humano tem a dimensão exacta do que de si exibe; ou na miséria estética dos objectos “artísticos” criados propositadamente para a diversão narcotizante das massas; ou no algoritmo que exclui o que é novo e diferente da partilha estética da maioria, reduzindo a sensibilidade ao belo à mediania morna do agradável, expressa em likes e emojis.
Portanto, a impotência da preceptora de A Volta no Parafuso é a nossa, de pais e de professores. Os fantasmas actuais, contudo, são, como se acaba de ver, muito mais requintados e perversos do que aqueles que o ressentimento e o medo dos mortos geravam. Os novos fantasmas são máquinas altamente sofisticadas e os fios que os movem, apesar de identificáveis e de modo nenhum metafísicos, são invisíveis para quem vive fascinados diante de tais fantasmas.
E esse é o drama presente da educação escolar e parental: aqueles que ainda vêem os fios habitam em mundos tão diversos dos das crianças e jovens que acompanham, que o diálogo se torna aparentemente impossível. Pois, como mostrar, sem causar repúdio a quem vive por assim dizer no capricho do fascínio, que tais fantasmas estrangulam dimensões imprescindíveis ao florescimento da humanidade no humano? Dimensões como a gratuidade dos gestos, a ética da co-responsabilidade, a partilha estética exigente, a sensibilidade ao outro, a empatia, a compaixão, a emulação para a excelência, a complementaridade dos talentos, a mútua alegria de corpos e rostos frente a frente, enfim, a amizade e o amor…
Numa das leituras possíveis da obra-prima de Henry James, os fantasmas são meras alucinações da preceptora. A esperança do autor destas notas desencantadas é a de que, se bem que contribuindo para alertar para um problema real, estas venham a revelar-se também visões parciais e enganadoras de uma realidade afinal rica em recursos insuspeitos, na qual as futuras gerações encontrarão um equilíbrio entre a humanidade, a tecnologia e a natureza. Nesse sentido, o desafio que se impõe inevitavelmente ao pensamento, agora, é responder à pergunta: Como educar em tempo de fantasmas?
* Do livro de Henry James há pelo menos duas edições em português, uma publicada pela Relógio d’Água, a outra na Sistema Solar, que optou pela tradução O Aperto do Parafuso para o título.
Paulo Pereira de Carvalho é professor de Filosofia no ensino secundário