Voltou a haver pobreza em Portugal como não havia, diz-se, desde há 100 anos. Não sei se será bem assim, mas que há mais pobreza, há. Vê-se muito mais gente nas ruas a pedir ajuda, envergonhada, aviltada, desconfortável com a sua nova situação. Gente que, talvez até há menos de um ano, não esperava chegar ao ponto de se ver obrigada a ir para a rua pedir para comer. Frequentemente, gente de meia-idade ou bem mais velha.
Vivemos numa sociedade que é cada vez menos uma comunidade. Uma sociedade cada vez mais esfiapada, que não forma verdadeiramente um tecido social de relações e afetos. Evidentemente, isto é muito mais notório nas grandes cidades, onde se vai para vencer na vida, ter sucesso na vida, não para cooperar ou pertencer de facto a um corpo cívico com um propósito básico comum. Isto, naturalmente, empobrece e tem de facto empobrecido a cidadania e a solidariedade. Habituamo-nos a pensar que o Estado tem todas as obrigações, inclusive a de acabar com a pobreza. Mas esta imputação ao Estado de todas as responsabilidades é ao mesmo tempo desresponsabilização individual, contribuindo cada vez mais para transformar em fiapos o tecido social, comunitário (ou o que resta dele…).
E isto passa também pela persistente e bem enraizada crença de que a minha felicidade individual não passa nem tem de passar por um compromisso cívico, social, político, humano, com a felicidade, ou pelo menos o bem-estar, do outro. E de que a minha realização individual, o que quer que isso seja (às vezes é só o divertimento individual) dispensa qualquer tipo de rede de relações e afetos mais ampla, que inclua o compromisso de contribuir, no melhor das minhas capacidades, para que o outro se realize, como eu, ou comigo, num mesmo plano de dignidade humana.
Por isso, afirmo que todos e cada um de nós é responsável por fazer aquilo que cabe dentro das suas possibilidades para, se não elevar o outro, pelo menos impedir que ele caia numa situação de indigência desprovida de dignidade. Nalguns casos, basta tão-só um exercício de reconhecimento humano, i.e., um olhar mais demorado, uma troca de palavras, uma demonstração mínima de interesse pela situação e pela história do outro. É que ambos beneficiamos, e muito, com este exercício de contacto humano! Noutras circunstâncias, em particular quando se “tem muito”, trata-se mesmo de mandar às favas as aparências, de engolir a avareza, de renunciar à ganância, e de apostar forte na melhoria da condição do outro com sacrifício próprio (que às vezes não é assim tão grande, nem constitui, bem entendido, um verdadeiro sacrifício…).
Há que ter a humildade de compreender que todos somos falhados em tantas coisas, mesmo quando somos bem-sucedidos noutras, e que isso só por si nos desqualifica de julgar a indigência do outro a partir de uma falsa posição de superioridade moral; e que, no fim de contas, todos precisamos uns dos outros.
Há alguém que não seja indigente de alguma coisa ou de alguém, como outrem escreveu?
Sanar o tecido cívico, social, comunitário da nossa sociedade passa também por esse reconhecimento. E não se trata só da saúde do nosso corpo social, político, mas também de saúde psicológica e espiritual. Um grande número de patologias mentais e espirituais modernas (depressão, angústia existencial, ansiedade, niilismo, etc.) tem origem na falta de redes alargadas de relações e afetos, na ausência de reciprocidade e contacto humano fluido e autêntico, no culto feroz do individualismo. Em suma, na dissolução de um ideal de comunidade cívica autêntica em favor da sociedade-somatório-de-indivíduos.
Ruben Azevedo é professor e membro do Ginásio de Educação Da Vinci – Campo de Ourique (Lisboa).