
” ‘Uma Igreja em saída’ é antes de mais um desafio quotidiano de fazer a experiência radical do humano singular, concreto, com carne, nome, apelido e uma história de vida.” Imagem do filme Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini
Dos documentos saídos da etapa diocesana preparatória para o Sínodo [da Igreja Católica] de 2024 que consegui ir lendo, e das várias discussões e depoimentos que fui ouvindo, atordoou-me muito o vazio e ensurdeceu-me deveras o silêncio em relação ao que considero ser a provocação central do Evangelho, a saber, a hospitalidade incarnada, concreta, pessoalizada e actuante no mundo, qual sal da terra, qual luz do mundo, qual fermento da massa. Bem pelo contrário, numa ânsia infinita de disputar cargos, regulamentar comportamentos e burocratizar funções, muito se discutiu sobre quem deve estar no altar, quem tem os grandes e como se repartem os pequenos poderes, os leigos contra os clérigos, estes quase sempre desconfiados face àqueles, os leigos de primeira a disputarem a sua própria clericalização, os leigos anónimos dos bancos de trás, quais assistentes apáticos e desinteressados, pedindo só que os não distraiam muito nas suas orações quando vão à Igreja… E as causas da moda… E as célebres reuniões a todas as horas.
Na verdade, mesmo quando assomava num texto a palavra caridade, esta aparecia muitas vezes burocratizada, aprisionada no institucional, umbilicada ao estatizante e ao político. Lembro-me de um grupo que se propunha, com a melhor das intenções, correr à junta de freguesia ou à câmara à procura de uma lista de pobres. Outros achavam que seria maravilhoso articularem-se com os serviços sociais das autarquias. De facto, e ressalvando as pessoas que nessas estruturas dão quotidianamente o seu melhor e com quem há alguma possibilidade de colaborar, só quem vive na versão “Portugal – Alice do País das Maravilhas Socialistas” ou faz profissão de fé na Utopia do Estado Papá pode ingenuamente acreditar que, com a ajuda do diabo (Mt 4,9), se consegue tirar alguém do inferno, neste caso, do inferno da pobreza!
Realmente, estou cada vez mais convicto de que o Sínodo só valerá a pena e será fecundo em frutos, se nós, cristãos católicos, percebermos existencialmente, quase de forma epidérmica, o que significa “Uma Igreja em saída”. Não é de todo, na minha interpretação obviamente, um conceito metafísico e ontológico de teologia dogmática. Ou um postulado de teologia pastoral. Não é de forma nenhuma uma linda expressão romântica que fica bem num livro piedoso de espiritualidade, numa homilia lírica e sentimentalista ou em manifestos revolucionários bolivarianos, em que se fala muito dos pobres, mas que soa a um conjunto de letras completamente ocas de conteúdo real.
“Uma Igreja em saída” é antes de mais um desafio quotidiano de fazer a experiência radical do humano singular, concreto, com carne, nome, apelido e uma história de vida.
Efectivamente, se é a sinceridade o outro nome da fé cristã, julgo que só conseguiremos fazer caminho em conjunto – é isto que significa syn-odos – se deixarmos mais as liturgias inebriantes, e tantas vezes bolorentas e, interpelados pelo Espírito que continuamente se quer derramar nos nossos corações, tivermos a coragem de entrar verdadeiramente nas nossas casas, dar tempo e atenção hospitaleira aos que vivem ao nosso lado, aos familiares mais frágeis, sejam crianças, sejam idosos, não com conversa moralizante, mas com a dádiva efectiva do tempo, abdicando de alguma diversão ou ganho económico, ainda que muito legítimo, para cuidar dos que são os nossos próximos (Cf. Vaticano II, Gaudium et Spes 21).
Precisamos de uma multidão de voluntários, sobretudo cristãos que não tenham filhos a criar (e aqui entram os senhores padres e bispos!) ou pais velhinhos a cuidar, que saiam e invadam as instituições onde armazenamos tantos seres humanos – idosos, crianças, doentes mentais, reclusos – com o fim de as humanizar com o nosso tempo, a nossa disposição, partilhando gestos concretos de bem-querer e escutando atentamente a história que cada um é. Ou que saiamos a calcorrear as vielas sujas das nossas cidades à procura dos que fizeram da rua a sua casa, subir os prédios sem elevador onde estão presos de solidão tantos idosos, adentrar pelos bairros pobres e degradados das periferias urbanas onde viceja a miséria, ou ainda enveredar pelas estradas esburacadas do mundo rural em busca de outros tantos idosos desdentados, abandonados e entregues a um destino de tristeza, exílio e isolamento. E para isso só precisamos de abrir bem os olhos, disponibilizar tempo, predispor-nos à generosidade e à entrega e fruir de algum capital para investirmos nas deslocações. Sei que há muitos que já fazem tal, hoje em dia, mas julgo que precisamos de tornar isto uma causa primeira na nossa vida de fé enquanto comunidades cristãs.
Há cerca de 238 hospitais no país e quase 1.500 residências de idosos: se cada um de nós, cristãos comprometidos, individualmente ou em grupo, sair ao encontro das pessoas que habitam estas instituições, ao menos um dia por semana, durante um par de horas, o Evangelho cumprir-se-á aí, porque alguém deixou de estar tão só, alguém teve quem lhe apertasse a mão e lhe oferecesse os ouvidos e o coração, para escutar a sua história de vida. Histórias únicas pelas quais se diz quem eu sou de forma verdadeira, na medida em que só consigo dizer-me ao outro, narrando-me, recontando-me! Quantos idosos, e mesmo adultos, jovens e crianças, estão a precisar de sinceros escutadores de histórias! Se os encontrarmos, ganharemos o sínodo, pois estaremos certamente a caminhar juntos.
Santos Tereso é licenciado em Filologia Clássica, Filosofia e Teologia e está a finalizar o Mestrado em Teologia na Universidade Católica Portuguesa. Neste momento, vive em Itália.