Enfrentar a superficialidade digital com ocasiológios

| 21 Nov 2023

“No tempo em que não havia Zoom, quando não tínhamos a possibilidade de nos encontrarmos, vivia-se como a espera aumenta o desejo e o momento do encontro era aguardado com entusiasmo.”

 

Um dia cruzei-me com alguém que disse não conseguir ir à missa de terça-feira onde cantávamos porque tinha uma oração on-line. Fiquei a pensar nessa situação por ter-me sido partilhado um estudo que demonstrava como a comunicação por Zoom afeta o nosso cérebro activando menos os seus sistemas sociais, face a uma conversa presencial, além de não oferecer a mesma profundidade de ligação neuronal como nos encontros de olhos nos olhos. A fé depositada no valor das comunicações por Zoom funcionou durante a pandemia, mas hoje tornou-se numa pandemia que diminui o valor do encontro ou diante da impossibilidade de nos encontrarmos fisicamente.

Conhecemos várias pessoas que têm a sua agenda preenchida com inúmeros encontros e reuniões por Zoom pela facilidade que oferece de falarmos sobre as coisas, prescindindo do tempo de deslocação. No caso de reuniões de trabalho, onde o conteúdo dos diálogos é técnico, creio que esta ferramenta se demonstra útil e eficaz. Mas quando entramos numa dimensão mais espiritual, gradualmente, a minha experiência foi que o Zoom tornou-se numa barreira que transformava as experiências insalubres. Para os outros poderia parecer uma questão de desinteresse e falta de vontade, mas para mim e outros que partilhavam deste sentimento era algo mais que estava ligado fisicamente à parte mental, além do coração.

Para compreender os efeitos da comunicação digital sobre as experiências relacionais presenciais, uma equipa de investigadores liderada por Joy Hirsch da University College London analisou a actividade cerebral de 28 pessoas adultas e observou que a região dorsal-parietal durante os diálogos face-a-face estava mais activa do que durante diálogos entre faces num ecrã. A região dorsal-parietal está ligada à capacidade para a atenção e integração de toda a informação que nos chega pelos sentidos. Outros detalhes foram a presença de oscilações teta quando falamos com o outro a viva voz e não pelo Zoom. As oscilações teta estão ligadas à memória, aprendizagem, atenção, consciência, sincronismo cerebral entre outras coisas. Mesmo o contacto visual em presença revelou-se mais prolongado, indicando um maior nível de envolvimento entre as pessoas que dialogavam, comparativamente às que o faziam por videochamada. Face-a-face, a actividade dos nossos neurónios está mais sincronizada, o que sugere uma maior profundidade dos relacionamentos estabelecidos relativamente aos que usam a comunicação online. Estes investigadores concluem que o Zoom oferece uma comunicação entre as pessoas mais pobre, superficial, favorecendo antes o encontro pessoal e presencial como um modo imprescindível de construir e aprofundar relacionamentos.

No tempo em que não havia Zoom, quando não tínhamos a possibilidade de nos encontrarmos, vivia-se como a espera aumenta o desejo e o momento do encontro era aguardado com entusiasmo. Hoje, se não temos possibilidade de nos encontrarmos, e se não nos quisermos sujeitar à superficialidade demonstrada da comunicação digital, abre-se uma oportunidade de estimularmos a nossa presença através da criatividade humana que está intrinsecamente ligada ao nosso crescimento pessoal. Que outros modos temos de nos fazermos presentes diante do outro? Muitos optam ainda pela versão digital da mensagem escrita, outros vão um pouco mais longe com a mensagem de voz, mas creio que um futuro orientado para uma vida plena e profunda poderá passar mais pelos ocasiológios.

No meu livro dedicado ao “Tempo 3.0” (a publicar em breve pela Cordel D’Prata), reflito como antes do relógio que nos leva a uma vida fragmentada pelo tempo, as pessoas viviam para a oportunidade que se lhes apresentava no momento presente. Viviam o Kairos, o tempo certo. Mas com o relógio, temos gradualmente assistido ao domínio do tempo sequencial (Chronos, cronológico) sobre o tempo oportuno (kairológico). Por isso, se existe algo que marca o tempo cronológico, poderia haver algo que marcasse o tempo kairológico? Foi nessa procura que surgiu a ideia do ocasiológio.

Ocasiológios são coisas físicas que expressam na experiência de tempo o registo dos momentos oportunos que geraram em nós alguma mudança, materializando a vivência do Kairos. Pode ser uma pintura, uma foto revelada, um diário, um certificado, um troféu, um livro, uma memória escrita. Quando não podemos estar fisicamente presentes com amigos ou familiares, podemo-nos fazer presentes oferecendo ocasiológios. Pois, a nossa amizade com alguém constrói-se sobre a partilha das experiências transformativas que fazemos.

Poderíamos pensar que a pessoa que prefere uma oração online adere ao modo de construir uma comunidade virtual que, dentro das limitações da tecnologia, possui a capacidade de alimentar a sua vida interior através do encontro de faces no mosaico Zoom. Mas os estudos mostram que a biologia não é a mesma e se Deus fez-se corpo em Jesus, significa que as dimensões física, mental e espiritual são indissociáveis em cada ser humano e desejam presença.

Parece-me que os ocasiológios são uma via criativa para enfrentar a superficialidade digital que coloca em risco os relacionamentos profundos entre as pessoas com uma presença física e material, mas o Tempo 3.0 o dirá. O que é o Tempo 3.0? Espero ter despertado a curiosidade do leitor.

 

Miguel Panão é professor na Universidade de Coimbra, autor do livro palavras (publicação de Autor); pode acompanhar o que escreve pela sua newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao

 

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