
Der Gaukler (c. 1502), de Hieronymus Bosch, reproduzido a partir do site de Nick Cave.
A mensagem é curta e grossa: “For fuck’s sake, enough of the God and Jesus bullshit!” – a tradução pode ser suavizada, ou carregada nas tintas. Dada a ira do leitor de Nick Cave, o tom será mais o calão forte que a interjeição zangada. “Caramba! Chega desta treta de Deus e Jesus!”
O cantor, músico e compositor australiano, há muito radicado na Grã-Bretanha, não responde logo a Jason, de Londres. À pergunta irada, Nick Cave junta outras questões, de Lorraine, de Berlim, na Alemanha: “Quais são os seus pensamentos sobre a liberdade de expressão? Acha que é um direito?” – e é por aí que ele vai na sua resposta, a dissertar sobre a liberdade de expressão…
Já aqui falámos sobre este site de conversa que Nick Cave criou e alimenta: em The Red Hand Files, o australiano responde a questões dos seus fãs e leitores, e estas vão das mais prosaicas sobre a música e os discos, até às que aprofundam questões complexas e filosóficas.
A 9 de junho, Sue, de Paris, França, perguntou-lhe: “Na tua opinião, o que é Deus?” – tema recorrente, já se sabe, na discografia e na correspondência de Nick Cave. A resposta do australiano é assertiva: “Deus é amor”, e explica que é por isso que sente “dificuldade” em relacionar-se “com a posição ateísta”. A explicação é demorada: “Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia por amor, quer percebamos ou não. E esse anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo — que devemos amarmo-nos uns aos outros. Devemos amarmo-nos uns aos outros. E principalmente acho que o fazemos — ou vivemos muito próximos da ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase nenhuma distância de todo. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração parte-se e o mundo explode diante de nós como uma revelação.”
Talvez valha a pena recordar, neste ponto, que muito recentemente, em maio, Nick Cave perdeu mais um filho, Jethro, de 31 anos, depois de em 2015 ter morrido, com 15 anos, Arthur — e esta primeira morte marcou de forma indelével os trabalhos do músico nos últimos anos.
Com esta reflexão sobre Deus, Cave disserta sobre o bem e o mal, e no fundo está a revelar as inquietações de um pai que perdeu dois filhos. “Não há um problema do mal. Há apenas um problema do bem. Por que é que um mundo tantas vezes cruel insiste em ser belo, em ser bom? Por que é que é preciso uma devastação para o mundo revelar a sua verdadeira natureza espiritual? Não sei a resposta para isto, mas sei que existe um tipo de potencialidade para além do trauma. Suspeito que o trauma seja o fogo purificador através do qual realmente encontramos o bem do mundo.”
Na resposta aos seus fãs, Nick Cave confessa-se — com uma oração, descobrimos nós. “Todos os dias eu rezo para o silêncio. Eu rezo a todos eles. Todos eles que não estão aqui. Nesse vazio, eu despejo todo o meu desejo, desejo e necessidade, e com o tempo essa ausência torna-se potente, viva e ativada com uma promessa. Essa promessa que fica dentro do silêncio é beleza o suficiente. Esta promessa, neste momento, já é espanto suficiente. Esta promessa, agora mesmo, é Deus suficiente. Esta promessa, agora, é o máximo que podemos suportar.”
A liberdade de criar

Esta carta a Sue terá levado o londrino Jason a dizer que estava farto das “tretas” sobre Deus e Jesus. (Num jornal português, também por causa disto, um crítico de música desdenhou de um dos discos mais recentes de Nick.) E a resposta serve-se com diplomacia: Cave começa por falar da liberdade de expressão — e sendo ele autor, pode dizer-se que ele nos fala sobre a liberdade de criação.
Assumindo que os seres humanos são “criaturas subtis e caóticas, cheias de ambiguidades e contradições”, “total e necessariamente diferentes uns dos outros”, apesar de reduzidos a categorias “arbitrárias de identidade”, como são a raça, a religião ou o género, Nick Cave defende ainda a “amálgama” de que é feito cada indivíduo. “Cada um de nós é um amálgama de tudo o que amamos, perdemos e aprendemos, os nossos sucessos e fracassos pessoais, os nossos arrependimentos particulares e as nossas alegrias singulares – e parte dessa singularidade é o que pensamos de maneiras diferentes.”
Nick Cave defende que a liberdade de expressão “é uma conquista social ou cultural, algo que nós, como comunidade, podemos usar para animar, encorajar e liberar a alma do nosso mundo, desde que tenhamos a sorte de viver numa sociedade que permita tal coisa”. Trata-se de uma questão que ajuda a aferir da qualidade de uma democracia – das sociedades. “Poder falar livremente não é apenas um benefício para si mesmo, fazendo com que nos sintamos menos sozinhos, é também um barómetro da saúde da nossa sociedade, assim como a intolerância a ideias opostas indica uma fraqueza ou falta de confiança em seus próprios pensamentos e as ideias da nossa sociedade”, argumenta.
Percebe-se porque é que Cave começa por falar sobre a liberdade de expressão, contra “a intolerância a ideias opostas”. Para melhor dizer que falar de Deus e de Jesus, para ele, só é possível numa comunidade na qual se pode falar livremente. E o músico situa Jesus como alguém que viveu num tempo em que falar era arriscado: “Jesus percorria a terra expressando o que eram, na época, ideias consideradas perigosas e heréticas.” Por isso, argumenta, Jesus “foi seguido por um círculo nervoso de escribas e saduceus a resmungarem, cujo objetivo era apanhá-lo – expor não apenas as Suas ideias perigosas, mas desnudar e perseguir a sua singularidade”.
Sabemo-lo, “eles tiveram sucesso, e Cristo foi cancelado na Cruz”, descreve Nick, usando uma curiosa formulação adequada a estes tempos ditos de “cancelamentos”. As ideias de Jesus eram “impossíveis e perigosas – amar o inimigo, amar os pobres, perdoar os outros – [e] eram aterrorizantes, inconcebíveis e proibidas na Sua época, mas tornaram-se, com o tempo, as melhores ideias que sustentam a sociedade em que muitos de nós temos a sorte suficiente para viver hoje. Vale a pena lembrar isto.”
Este discurso, também político, é aquilo que permite a Cave voltar à questão da tolerância necessária para viver em comunidade. “Acho que devemos ter cuidado com as nossas suposições sobre quais as ideias que achamos certas e quais as ideias que achamos erradas, e o que fazemos com essas ideias, porque é a ideia aterrorizante – a ideia chocante, ofensiva e única – que exatamente pode salvar o mundo.”