
Alguns projetos não passaram no crivo do Tribunal Constitucional. Foto: Direitos reservados.
“Se o Estado é forte, esmaga-nos. Se é fraco, perecemos.” Terá sido assim que noutro tempo Paul Valéry (1871-1945) se referiu àquele que é um dos mais fraturantes assuntos da praça pública portuguesa ao longo da última década: a corrupção.
Segundo o relatório de 2021 da Transparency International, Portugal apresenta falhas estruturantes no combate aos crimes de corrompimento. O índice relativo à perceção de corrupção, medido de zero a 100 através da combinação de fontes de análise elaboradas por entidades independentes, fixou-se nos 62 pontos, estando não só abaixo da média europeia de 66 pontos, como tendo também caído três lugares em relação a 2020, passando da 30.ª para a 33.ª posição. E se a integridade e a transparência no espaço público se tornaram escassas, com conflitos de interesses e lobbies a marcarem as agendas mediáticas de muitas semanas, a verdade é que também a vontade política nem sempre alinhou nos propósitos de uma estratégia contra a corrupção.
Apesar de a Estratégia Nacional contra a Corrupção, apresentada em maio de 2021, consubstanciar claros progressos na proteção dos denunciantes, nos canais de denúncia e na quebra de pactos de silêncio, não há como negar o longo caminho que Portugal ainda tem por trilhar no cumprimento do acordado internacionalmente para a luta contra a corrupção.
Tendo entrado em vigor em Portugal em outubro de 2007, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção contempla a necessidade de criar enquadramento legal, no respeito pela constituição de cada país, para punir o enriquecimento ilícito de titulares de funções públicas que apresentem um “aumento significativo do património” e “para o qual (…) não consegue apresentar uma justificação razoável face ao seu rendimento legítimo”. Passados quase 14 anos, os factos não mentem: dos 22 projetos de lei que já passaram pela discussão em Assembleia da República, nenhum chegou a ver a luz do dia, fosse por recusa do Tribunal Constitucional ou por falta de consenso partidário.
Em 2020, o Conselho de Prevenção da Corrupção informou que, das queixas recebidas, metade foram arquivadas e apenas dez, correspondentes a 1,3% do total, resultaram em condenação. Para além disso, o progressivo aumento da carga de trabalho, acompanhado de uma falta estrutural de pessoal, é motivo de queixa pela Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.
Os contornos da luta anticorrupção têm de ser estruturais. As autoridades competentes devem ser dotadas não só de meios humanos que lhes permitam ser mais produtivas e responder adequadamente aos prazos jurídicos, como também de tecnologias de nível equivalente às usadas pelos acusados. Se a este investimento público na justiça se associar ainda a divisão dos megaprocessos, estou certo de que, para além da melhoria na compreensão destes no espaço público, se evidenciarão também taxas de resposta mais atempadas, da parte do Ministério Público.
Desenganem-se, contudo, aqueles que olham para os crimes de corrompimento unicamente como um efeito da ineficácia estatal. Há um ano, na conferência de imprensa em que apresentou a Estratégia Nacional contra a Corrupção, a então ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, caracterizou a corrupção como “um crime sem vítimas”. Sendo umas das maiores falhas morais da nossa sociedade, permitindo a utilização indevida por privados de fundos destinados ao investimento público, aproveitando-se da ineficiência de estruturas suportadas pelos contribuintes, restam ainda dúvidas de que somos todos nós as maiores vítimas deste perecimento estatal, para usar a expressão de Valéry?
Os crimes financeiros são uma brecha na nossa democracia. São terrenos férteis para os populismos que se aproveitam das fragilidades do sistema para se insurgirem contra ele, pintando-o como insuficiente a todos os níveis. São incentivos para que a população se afaste das suas responsabilidades cívicas, das instituições legais e democráticas, duvidando da sua capacidade para assegurar melhores perspetivas para o futuro. São mote para uma descredibilização transversal da classe política, constantemente considerada como o maior entrave à transparência.
Foi munido de um espírito transformador desta realidade que André Corrêa d’ Almeida, professor na Columbia University em Nova Iorque, lançou em outubro de 2020 o movimento “#LibertemOMeuPaísDaCorrupção”. Das ruas de Nova Iorque – onde protestou meses a fio com um simples cartaz – para uma ação cívica formal foi um passo de bebé e, em setembro de 2021, nasceu a Associação All4Integrity, da qual ele é fundador e presidente. Com o claro propósito de lutar contra a corrupção em Portugal, o lema da associação é simples: “Há uma distância entre aquilo que é conveniente para uns e aquilo que está certo para todos. A essa distância chamamos o caminho da Integridade.”
E se o caminho da integridade é ignorado por alguns, há quem ainda preze pela transparência na sua vida pública e no cumprimento da sua missão para com a sociedade civil – e cujo trabalho contra a corrupção a All4Integrity fez questão de identificar, reconhecer e celebrar com o “Prémio Tágides 2021”.
Porém, o trabalho da associação não fica por reconhecer o que já foi feito: também quer lançar sementes de uma cultura de integridade. A gíria popular costuma dizer que “é de pequenino que se torce o pepino” – e a equipa da associação não podia estar mais convicta da verdade deste provérbio. No início deste ano letivo, surgiu a RedEscolas Anti-Corrupção, um projeto que levou as escolas de todo o país a debater os temas da corrupção, da transparência e da integridade junto das suas comunidades educativas.
Ao longo de nove meses, de outubro a junho de 2022, quase duas dezenas de estabelecimentos de ensino de Norte a Sul do País pensaram o tema da corrupção e abordaram-no junto do poder local e central. Desde celebrações do Dia Mundial contra a Corrupção, a 9 de dezembro, até entrevistas com autarcas e palestras com deputados da Assembleia da República, as escolas participantes da iniciativa submeteram evidências dos trabalhos feitos a um júri eclético, que reúne nomes da educação ao jornalismo. O ponto final desta edição está marcado para o próximo 6 de junho, numa cerimónia que, entre o Padrão dos Descobrimentos e o Museu da Cidade – Palácio Pimenta reunirá representantes das escolas participantes do projeto e oradores convidados, como a jornalista Sandra Felgueiras e a antiga procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal.
A corrupção é das maiores forças antidemocráticas da contemporaneidade. Mina, uma a uma, as estruturas do Estado de Direito, impedindo a construção de sociedades mais justas, mais eficazes e mais sustentáveis. Torna-se, tal como afirmou António Guterres no 75.º aniversário da Organização das Nações Unidas (2020), “a derradeira traição da confiança pública”. Haverá pior para um povo que a falta de esperança no futuro? É retórica, a pergunta, claro.
Alexandre Abrantes Neves é estudante de Comunicação Social e Jornalismo na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Contacto: alexandre.m.a.neves@gmail.com