Os Evangelhos são “textos fortes que têm resistido e continuam a resistir à usura do tempo”. Com esta afirmação, o pastor presbiteriano Dimas de Almeida dá forma à sua palavra final ao comentário sobre a nova tradução da Bíblia – Os Quatro Evangelhos e os Salmos – publicada no ano passado pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), cuja edição experimental pede sugestões, críticas e comentários.
Neste último capítulo do estudo que o 7MARGENS tem vindo a publicar desde há 10 semanas (e que aqui se conclui, sempre com títulos da nossa responsabilidade), Dimas Almeida fala da “carne das palavras dos dois últimos capítulos de João” e do facto de não haver “testemunhas da ressurreição de Jesus como acontecimento histórico”, mas “testemunhas do Crucificado-Ressuscitado”.
O autor apresenta-se como “um protestante crítico do protestantismo quando este desvaloriza a tradição, levado pelo desejo de uma autonomia enganadora porque filha de um subjetivismo autista” mas também como “um protestante crítico de uma eclesiologia, qual a católica, geradora de um eclesiocentrismo que, a meus olhos, nada de bom pode gerar.”
Ao longo deste trabalho, Dimas Almeida explicou o modo como leu esta nova tradução (cap. 1); abordou a pluralidade que revela o facto de haver quatro evangelhos e não apenas um (2); e debateu depois os critérios de tradução e o anúncio do evangelho (3).
Iniciando a abordagem da tradução do Evangelho segundo Mateus, propôs no cap. 4 algumas traduções alternativas – uma delas, a do Pai-Nosso; debateu a seguir a questão do chronos e do kairós, ou os messianismos judaicos (5); falou do efeito perturbador que o prólogo do Evangelho de Marcos pode ter (6); abordou o Evangelho Segundo Lucas (7), onde tratou episódios como a mulher pecadora em casa de Simão, a confissão messiânica de Pedro, o encontro com Zaqueu ou a refeição do Ressuscitado à beira do lago, entre outros (8).
No capítulo 9, primeira parte da reflexão sobre a tradução do Evangelho de João, centrou-se em algumas passagens que remetem para pormenores acerca da revelação de Jesus e do génio do autor deste Quarto Evangelho.
Para uma sintonização exegética

Caravaggio, A Ceia em Emaús (1601; hoje na National Gallery Londres), um dos epísódios do pós-ressurreição relatados nos quatro evangelhos: Há “uma pluralidade de narrativas com divergências de peso entre si.”
Antes de prosseguir com mais algumas notas sobre a minha tradução deste cap. 20 e também do cap. 21, gostaria de introduzir aqui algumas referências aos textos dos evangelhos canónicos relativos à ressurreição de Jesus. Com essas referências não faço mais do que tentar mostrar como me movo exegeticamente nessa questão. Como um apoio para a minha tradução. Deste cap. 20 e do cap. 21.
Aqui as deixo. Possam elas dar o tom do espaço exegético em que procuro mover-me. Espaço onde a sedução das palavras, na sua literalidade, não deixa de me fascinar. É que as palavras têm carne e estão impregnadas de sensualidade. Não penso que se possa traduzir oferecendo-as em holocausto no altar do assim chamado sentido do texto. Estou persuadido de que, quando um tal holocausto se consuma, dele resultam duas vítimas: uma delas as palavras, a outra o sentido.
Os dois últimos capítulos de João (20 e 21) inscrevem-se de um modo particularmente relevante no amplo contexto das narrativas evangélicas em torno da ressurreição de Jesus.
Uma pluralidade de narrativas com divergências de peso entre si. Uma sinopse dos quatro evangelhos (para os helenistas é indispensável que uma tal sinopse seja em grego e a melhor de todas é Synopsis quattuor evangeliorum, Kurt Aland, Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart), incontornável instrumento de trabalho, dá-nos a ver que os evangelhos não concordam entre si não apenas na geografia das aparições do Crucificado-Ressuscitado: há também divergências no concernente àqueles ou àquelas a quem aparece.
Se tivermos em conta Marcos (sem a assim chamada conclusão longa, 16:9-20, ausente numa pluralidade de manuscritos) constatamos que ele não menciona aparição alguma de Jesus, não obstante em 16:7 mencionar que Pedro e os discípulos o veriam na Galileia.
Mateus, esse, faz referência a uma aparição às mulheres em Jerusalém (28:9-10), que surpreende se tivermos em conta a instrução dada imediatamente antes (28:7) para irem para a Galileia, local onde Jesus será visto. Para Mateus, a aparição que lhe parece mais marcante é na Galileia, onde Jesus é visto pelos onze discípulos numa montanha (28:16-20).
Lucas, por seu lado, narra várias aparições que são apresentadas como tendo ocorrido circunscritas à área de Jerusalém: aos dois discípulos a caminho de Emaús (24:13-32); a Simão (24:34); aos onze e a outros congregados em Jerusalém (24:36-53).
A geografia das aparições para João é jerosolimitana: a Maria Madalena (20:14-18); aos discípulos sem Tomé (20:19-23); a Tomé uma semana mais tarde (20:26-29)
Uma referência ainda a Marcos: se tivermos em conta a sua conclusão longa (16:9-20), constatamos que são vários os evocados, segundo parece numa área também jerosolimitana: Maria Madalena (16:9); os dois discípulos a caminho do campo (16:12-13; os Onze à mesa (16:14-19. Este final dito longo emana das comunidades cristãs siríacas e data de meados do séc. II. É fácil constatar que consiste numa compilação das narrativas pascais acolhidas por Mateus, Lucas e João.
Que tradições tão diversas – e, coisa importante, cada uma delas dando ares de ignorar as outras – tenham existido e tenham sido acolhidas serenamente no cânone neotestamentário, não obstante a conflitualidade que as anima, é revelador da extraordinária riqueza interpretativa com que a tradição é acolhida.

Parece-me fundamental termos em conta o seguinte: não há testemunhas da ressurreição de Jesus como acontecimento histórico. O que há são testemunhas do Crucificado-Ressuscitado.
Da sua morte como acontecimento histórico há testemunhas. Aliás, a morte de Jesus está, historicamente, bem atestada, com uma notável amplitude. É ver o modo como os quatro evangelhos no-la dão a ver e dela falam: a morte ignominiosa de Jesus – uma morte reservada aos escravos e sediciosos – nada tinha em si de um acontecimento glorioso. Não era, em si, uma marca de glória recomendável para uma religião. O apóstolo Paulo fala dela como um escândalo. Como é que uma morte numa cruz podia ser a morte de alguém em quem Deus estava presente de um modo muito particular? Não se vê como o escândalo da cruz pudesse ter sido inventado para caracterizar o que há de próprio no homem radicalmente novo, Jesus de Nazaré, pelo qual muitos estavam prontos a morrer.
A sua ressurreição é de outra natureza e ninguém a viu. Dela não há testemunhas. Os primeiros discípulos não a testemunharam: o que eles testemunham é o Cristo ressuscitado. Por outras palavras: não são testemunhas de um acontecimento, são testemunhas de uma pessoa: o Crucificado-Ressuscitado. Sobre a ressurreição em si não se pode falar. Quando em alguns textos de alguns evangelhos apócrifos se pretende dela falar, descrevendo-a, o resultado é clamorosamente medíocre, como medíocre é a arte que ousa figurá-la.
O Evangelho de Pedro (um texto apócrifo de meados do séc. II) é um exemplo dessa imprudência figurativa. É o primeiro a descrever o fenómeno da ressurreição, encenando-o sob os olhos dos soldados estupefactos (36:39-42).
Como são sóbrias, dignamente sóbrias, as narrativas dos evangelhos canónicos!
Os quatro evangelhos, escritos algumas dezenas de anos depois do Jesus histórico, releem a vida desse Jesus impregnando-a da experiência pascal: a sua morte não foi o fiasco pessoal próprio de um aventureiro, mas sim o abrir de um futuro com futuro.
O que há de radicalmente novo nas origens do cristianismo – e desde logo em Jesus – é o Crucificado-Ressuscitado.
Historicamente seria muito difícil vê-lo a ele como um pobre mito resultante de almas alucinadas prontas logo de seguida a morrer por ele.
Essas mulheres e esses homens são testemunhas de uma Pessoa, não de um acontecimento. O acontecimento não é do domínio nem da história, nem (quando se trata da teologia) do discurso catafático. Do acontecimento não há factos. Da Pessoa há-os.
Poderíamos provavelmente dizer que esse acontecimento (o acontecimento-ressurreição) é uma não-história tão poderosa, tão poderosa, que se torna fundante de uma história: a do Ressuscitado.
Aí está o que há de radicalmente novo no cristianismo. Tudo o mais é mais ou menos encontrável em muitos outros registos religiosos.
Porquê estas minhas reflexões exegéticas? O desejo de esboçar um contexto exegético onde pudesse enquadrar estas duas minhas traduções (capítulos 20 e 21 de João).

Já deve ter feito uns trinta anos, orientei um seminário sobre os textos dos evangelhos canónicos que nos falam do Cristo ressuscitado. Ficaram-me muitas emoções e pensamentos desse trabalho então feito.
Há que reconhecê-lo: quando se trata da ressurreição de Jesus há coisas que escapam ao campo da análise do historiador.
Por definição, todo o saber humano – e não apenas o do historiador – claudica quando se trata da morte como limite último.
Poderia ser de outro modo quando se trata de um acontecimento que se inscreve num espaço que se furta por definição ao conhecimento humano como é um saber do post-mortem?
O terreno que se pisa aqui nesse depois releva da crença, unicamente da crença.
O ter visto o Crucificado-Ressuscitado – ou antes, o Crucificado-Ressuscitado ter-se dado a ver como se deu – não cria professores de uma ciência mas sim testemunhas prontas para o compromisso arriscado de uma vida. De uma vida inteira. Os textos dos evangelhos que nos falam do Crucificado-Ressuscitado que se deu a ver são tecidos e entretecidos por testemunhas desse quilate.
Talvez se pudesse aqui ultrapassar o dilema: a ressurreição de Jesus pertence à história ou deve antes ser considerada como um acontecimento meta-histórico (ou supra-histórico)? Ela está na história ou fora da história? Estará o historiador – qualquer que ele seja – condenado a não fazer mais nada que não seja aceitar o conformismo da sua impotência? Será que quando se trata do Crucificado-Ressuscitado tudo está fora da história?
Julgo que, modestamente, podemos reconhecer uma coisa: nem tudo está fora da história.
Há, com efeito, dois factos que o historiador pode inscrever no seu campo de análise:
a) a dispersão e a fuga dos discípulos. E o medo, sim, o medo. Aqueles homens e aquelas mulheres, com Aquela Morte, ficaram de rastos. Afinal de contas tudo não tinha passado de um equívoco. Um lamentável equívoco. A deserção impunha-se. A paralisia do medo toma conta de todos: deles e delas;
b) a recomposição rápida em Jerusalém – é em Jerusalém, o lugar do risco e da morte, que ocorre a recomposição dos Onze discípulos.
Os que estavam de rastos, e já dispostos a voltar às suas coisas, inesperadamente aparecem à luz do dia possuídos por uma extraordinária ousadia da palavra.
No livro dos Atos a palavra παρρησια, parresia, é uma das utilizadas para falar do comportamento público dos discípulos (cf. p. ex.: Atos 2:29; 4:13,29,31). Palavra significativa que enfatiza a ideia de coragem, confiança, ousadia pública do discurso (cf. Walter Bauer!).
Os que tinham estado de rastos levantaram-se possuídos por uma estranha e inesperada ousadia, prontos a ocupar o lugar do risco. Isto é, a serem testemunhas. A igreja de Jerusalém toma forma sem tardar. Na Galileia outras vão surgir.
Aqueles homens e aquelas mulheres, depois de terem vivido o encontro com o Crucificado-Ressuscitado, sabiam que, dali para a frente, não estavam a sacrificar no altar do equívoco uma vida inteira: a deles.
Isto é da história.

É altura de voltarmos às minhas notas relativas à perícope em que ficámos (20:1-10).
Como fiquei então na nota 5, passo agora à nota
6) – Como habitualmente faço ao traduzir o grego antigo – e de um modo particular quando se trata de qualquer um dos 27 livros que compõem o Novo Testamento – o presente histórico grego é por mim traduzido pelo presente português e não pelo pretérito perfeito. Fi-lo aqui. Mas a esta questão voltarei no próximo capítulo (o 21).
7) – Os versículos 4 a 8 estão impregnados, admiravelmente, de um grande tema: o que é relativo à problemática do ver e saber.
Com efeito, João utiliza três verbos diferentes para exprimir a ideia de ver alguma coisa. Três verbos diferentes que são, habitualmente, traduzidos (tal como aqui nesta nova tradução católica) pelo verbo “ver”. E que eu tento traduzir de modos diferentes.
– No v. 5 a forma verbal βλεπει é por mim traduzida “vê”: “E inclinando-se vê, jacentes, as ligaduras de linho. Não obstante não entrou.”
– No v. 6 a forma verbal θεωρει é por mim traduzida “observa”: “Chega, pois, também Simão Pedro, vindo no seu encalço, e entrou no sepulcro. E observa as ligaduras de linho jacentes…”
– No v. 8 temos o verbo οραω na forma do aoristo ειδεν. A esse traduzi-o “discerniu”: “Foi então que entrou também o outro discípulo (o primeiro chegado ao sepulcro) e discerniu e creu.”
Trata-se de três verbos diferentes (em que as tonalidades do “ver” são diferentes) mas que são traduzidos sempre, ou quase sempre, pelo mesmo verbo “ver”.
Tentei seguir um caminho diferente. Que nunca vi explicitado do modo em que o vou tentar fazer.
Leva-me a isso o que julgo ser uma necessidade: por que motivo traduzi eu, no v. 8, a forma verbal ειδεν, discerniu. Nunca vi essa forma verbal assim traduzida.
8) – A língua grega, na sua genialidade, forjou um grande verbo: οιδα, eu sei.
Trata-se de um verbo cuja forma é a forma do tempo perfeito, mas presente no que diz respeito ao significado. Etimologicamente relacionam-na com o latim uideo “eu vejo”. O tempo perfeito em grego desse modo veio a significar “eu sei (que)…” a partir de “eu tenho visto que…”
Ora bem: o aoristo dessa raiz tornou-se o aoristo para o verbo οραω (eu vejo): ειδον.
No v. 8 é essa forma do aoristo que encontramos: daí a minha tradução “discerniu”. É que o ειδον é usado como o segundo aoristo de οραω, e assume assim um importante significado: exprime a ideia de uma perceção atingida pelo “ver”: perceber, conceber mediante os sentidos, distinguir, entender.
Que maravilha!
9) – Parece-me, pois, importante sublinhar isto: o texto joanino, admiravelmente construído, está prenhe de um “ver” que, pela sua complexidade, necessita de se exprimir através de três verbos diferentes a insinuarem três tipos diferentes de visão. Visões diferentes que procurei ter em conta na minha tradução.
João 20:17

Texto grego
17 λέγει αὐτῇ Ἰησοῦς· μή μου ἅπτου, οὔπω γὰρ ἀναβέβηκα πρὸς τὸν πατέρα· πορεύου δὲ πρὸς τοὺς ἀδελφούς μου καὶ εἰπὲ αὐτοῖς· ἀναβαίνω πρὸς τὸν πατέρα μου καὶ πατέρα ὑμῶν καὶ θεόν μου καὶ θεὸν ὑμῶν.
Nova tradução católica
17 Disse-lhe Jesus: “Não me toques, pois ainda não subi para o Pai! Mas vai aos meus irmãos e diz-lhes: “Subo para o meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”“.
Eu traduziria
17 Diz-lhe Jesus:
“Pára de me abraçar porque ainda não subi para o Pai! Mas dirige-te aos meus irmãos e dize-lhes: “Subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus.”
Algumas notas
1) – Parece ser fatal na generalidade das traduções: e cá o temos, nesta nova tradução católica, esse “não me toques”! São raríssimos os tradutores que não se deixam por ele seduzir, como se ele tivesse sido decretado, sabe-se lá por que figura mítica, desde tempos imemoriais.
2 – A construção sintática em causa é μη μου απτου. A forma verbal απτου é um imperativo presente do verbo απτω na voz média, απτομαι. Na voz média exprime a ideia de agarrar, tomar posse de, reter. No tempo presente supõe uma ação contínua. O μη é uma negativa muito forte: não. O μου é o pronome pessoal εγω, eu, no genitivo, que ligado à forma verbal απτου, com a negativa não (como é o caso) implica a ideia de “não continuar a agarrar”.
A tradução “não me toques” não tem em conta estas coisas e, além disso, ainda cai no descuido de traduzir um imperativo presente (que implica a ideia de uma ação contínua, neste caso já em curso) como se fosse um imperativo aoristo (que implica a ideia de uma ação pontual, sem continuidade).
E na sequência destas considerações (destinadas apenas aos não helenistas) socorramo-nos do indispensável Bauer, já por mim evocado várias vezes. E lá temos, no verbo απτω, na coluna destinada à voz média, a construção sintática que está em causa μη μου απτου traduzida assim: stop clinging to me!
Nem imaginam o trabalho que este Bauer me tem dado desde há uns cinquenta anos para cá!
Mas o velho Bauer não deixa de mãos vazias aqueles que lhe pedem socorro.
3) – Em todo o seu evangelho João utiliza este verbo (απτω) uma única vez: só aqui com Maria Madalena. Mateus, esse, utiliza-o 9 vezes; Marcos 10 vezes; Lucas 13 vezes. Haverá algum significado no facto de João o ter utilizado unicamente com Maria Madalena?
4) – “Não me toques!”, além de ser uma tradução ferida de inexatidão, evoca a ideia de uma distância que não se pode quebrar. Tu aí e eu aqui, e nada de toques! Fica-se, assim, encerrado no espaço de uma brutal rejeição.
Provavelmente no “não me toques” secular (repito, secular) pode haver alguma coisa mais do que o resultado de uma tradução inexata. Pode muito bem ter também resultado de um excesso de pudicícia: Maria Madalena a abraçar Jesus era demais. O “não me toques” mantém a distância e com ela salvaguarda-se a santidade e a pureza.
Receio, contudo, estar a ser injusto.
João 21:1-23

Texto grego
1 Μετὰ ταῦτα ἐφανέρωσεν ἑαυτὸν πάλιν ὁ Ἰησοῦς τοῖς μαθηταῖς ἐπὶ τῆς θαλάσσης τῆς Τιβεριάδος· ἐφανέρωσεν δὲ οὕτως.
2 Ἦσαν ὁμοῦ Σίμων Πέτρος καὶ Θωμᾶς ὁ λεγόμενος Δίδυμος καὶ Ναθαναὴλ ὁ ἀπὸ Κανὰ τῆς Γαλιλαίας καὶ οἱ τοῦ Ζεβεδαίου καὶ ἄλλοι ἐκ τῶν μαθητῶν αὐτοῦ δύο.
3 λέγει αὐτοῖς Σίμων Πέτρος· ὑπάγω ἁλιεύειν. λέγουσιν αὐτῷ· ἐρχόμεθα καὶ ἡμεῖς σὺν σοί. ἐξῆλθον καὶ ἐνέβησαν εἰς τὸ πλοῖον, καὶ ἐν ἐκείνῃ τῇ νυκτὶ ἐπίασαν οὐδέν.
4 Πρωΐας δὲ ἤδη γενομένης ἔστη Ἰησοῦς εἰς τὸν αἰγιαλόν, οὐ μέντοι ᾔδεισαν οἱ μαθηταὶ ὅτι Ἰησοῦς ἐστιν.
5 λέγει οὖν αὐτοῖς [ὁ] Ἰησοῦς· παιδία, μή τι προσφάγιον ἔχετε; ἀπεκρίθησαν αὐτῷ· οὔ.
6 ὁ δὲ εἶπεν αὐτοῖς· βάλετε εἰς τὰ δεξιὰ μέρη τοῦ πλοίου τὸ δίκτυον, καὶ εὑρήσετε. ἔβαλον οὖν, καὶ οὐκέτι αὐτὸ ἑλκύσαι ἴσχυον ἀπὸ τοῦ πλήθους τῶν ἰχθύων.
7 λέγει οὖν ὁ μαθητὴς ἐκεῖνος ὃν ἠγάπα ὁ Ἰησοῦς τῷ Πέτρῳ· ὁ κύριός ἐστιν. Σίμων οὖν Πέτρος ἀκούσας ὅτι ὁ κύριός ἐστιν τὸν ἐπενδύτην διεζώσατο, ἦν γὰρ γυμνός, καὶ ἔβαλεν ἑαυτὸν εἰς τὴν θάλασσαν,
8 οἱ δὲ ἄλλοι μαθηταὶ τῷ πλοιαρίῳ ἦλθον, οὐ γὰρ ἦσαν μακρὰν ἀπὸ τῆς γῆς ἀλλ’ ὡς ἀπὸ πηχῶν διακοσίων, σύροντες τὸ δίκτυον τῶν ἰχθύων.
9 Ὡς οὖν ἀπέβησαν εἰς τὴν γῆν βλέπουσιν ἀνθρακιὰν κειμένην καὶ ὀψάριον ἐπικείμενον καὶ ἄρτον.
10 λέγει αὐτοῖς ὁ Ἰησοῦς· ἐνέγκατε ἀπὸ τῶν ὀψαρίων ὧν ἐπιάσατε νῦν.
11 ἀνέβη οὖν Σίμων Πέτρος καὶ εἵλκυσεν τὸ δίκτυον εἰς τὴν γῆν μεστὸν ἰχθύων μεγάλων ἑκατὸν πεντήκοντα τριῶν· καὶ τοσούτων ὄντων οὐκ ἐσχίσθη τὸ δίκτυον.
12 Λέγει αὐτοῖς ὁ Ἰησοῦς· δεῦτε ἀριστήσατε. οὐδεὶς δὲ ἐτόλμα τῶν μαθητῶν ἐξετάσαι αὐτόν· σὺ τίς εἶ; εἰδότες ὅτι ὁ κύριός ἐστιν.
13 ἔρχεται Ἰησοῦς καὶ λαμβάνει τὸν ἄρτον καὶ δίδωσιν αὐτοῖς, καὶ τὸ ὀψάριον ὁμοίως.
14 τοῦτο ἤδη τρίτον ἐφανερώθη Ἰησοῦς τοῖς μαθηταῖς ἐγερθεὶς ἐκ νεκρῶν.
15 Ὅτε οὖν ἠρίστησαν λέγει τῷ Σίμωνι Πέτρῳ ὁ Ἰησοῦς· Σίμων Ἰωάννου, ἀγαπᾷς με πλέον τούτων; λέγει αὐτῷ· ναὶ κύριε, σὺ οἶδας ὅτι φιλῶ σε. λέγει αὐτῷ· βόσκε τὰ ἀρνία μου.
16 λέγει αὐτῷ πάλιν δεύτερον· Σίμων Ἰωάννου, ἀγαπᾷς με; λέγει αὐτῷ· ναὶ κύριε, σὺ οἶδας ὅτι φιλῶ σε. λέγει αὐτῷ· ποίμαινε τὰ πρόβατά μου.
17 λέγει αὐτῷ τὸ τρίτον· Σίμων Ἰωάννου, φιλεῖς με; ἐλυπήθη ὁ Πέτρος ὅτι εἶπεν αὐτῷ τὸ τρίτον· φιλεῖς με; καὶ λέγει αὐτῷ· κύριε, πάντα σὺ οἶδας, σὺ γινώσκεις ὅτι φιλῶ σε. λέγει αὐτῷ [ὁ Ἰησοῦς]· βόσκε τὰ πρόβατά μου.
18 Ἀμὴν ἀμὴν λέγω σοι, ὅτε ἦς νεώτερος, ἐζώννυες σεαυτὸν καὶ περιεπάτεις ὅπου ἤθελες· ὅταν δὲ γηράσῃς, ἐκτενεῖς τὰς χεῖράς σου, καὶ ἄλλος σε ζώσει καὶ οἴσει ὅπου οὐ θέλεις.
19 τοῦτο δὲ εἶπεν σημαίνων ποίῳ θανάτῳ δοξάσει τὸν θεόν. καὶ τοῦτο εἰπὼν λέγει αὐτῷ· ἀκολούθει μοι.
20 Ἐπιστραφεὶς ὁ Πέτρος βλέπει τὸν μαθητὴν ὃν ἠγάπα ὁ Ἰησοῦς ἀκολουθοῦντα, ὃς καὶ ἀνέπεσεν ἐν τῷ δείπνῳ ἐπὶ τὸ στῆθος αὐτοῦ καὶ εἶπεν· κύριε, τίς ἐστιν ὁ παραδιδούς σε;
21 τοῦτον οὖν ἰδὼν ὁ Πέτρος λέγει τῷ Ἰησοῦ· κύριε, οὗτος δὲ τί;
22 λέγει αὐτῷ ὁ Ἰησοῦς· ἐὰν αὐτὸν θέλω μένειν ἕως ἔρχομαι, τί πρὸς σέ; σύ μοι ἀκολούθει.
23 ἐξῆλθεν οὖν οὗτος ὁ λόγος εἰς τοὺς ἀδελφοὺς ὅτι ὁ μαθητὴς ἐκεῖνος οὐκ ἀποθνῄσκει· οὐκ εἶπεν δὲ αὐτῷ ὁ Ἰησοῦς ὅτι οὐκ ἀποθνῄσκει ἀλλ’· ἐὰν αὐτὸν θέλω μένειν ἕως ἔρχομαι τί πρὸς σέ];
Nova tradução católica
1 Depois disto, Jesus manifestou-se de novo aos discípulos, junto ao mar de Tiberíades. Manifestou-se assim: 2estavam juntos Simão Pedro, Tomé, o chamado Dídimo[1], Natanael, de Caná da Galileia, os dois filhos de Zebedeu e outros dois dos seus discípulos[2]. 3Disse-lhes Simão Pedro: “Vou pescar”. Disseram-lhe: “Também nós vamos contigo”. Saíram e subiram para o barco, mas naquela noite não apanharam nada[3].
4Já ao surgir da manhã, Jesus estava de pé na margem, mas os discípulos não sabiam que era Jesus. 5Disse-lhes, então, Jesus: “Rapazes[4], tendes alguma coisa para comer?”. Responderam-lhe: “Não”. 6Mas Ele disse-lhes: “Lançai a rede para a parte direita do barco e encontrareis”. Lançaram então; e já nem a conseguiam puxar[5], por causa da quantidade dos peixes.
7Então o discípulo, aquele que Jesus amava, disse a Pedro: “É o Senhor!”. Quando Simão Pedro ouviu: “É o Senhor!”, cingiu as vestes, pois estava nu, e lançou-se ao mar. 8Os outros discípulos foram no barco, arrastando a rede dos peixes, pois não estavam longe da terra, mas a cerca de duzentos cúbitos[6].
(O Ressuscitado alimenta os discípulos –) 9Quando desceram para terra, viram um braseiro, com peixe colocado em cima, e pão. 10Disse-lhes Jesus: “Trazei dos peixes que apanhastes agora”. 11Então Simão Pedro subiu ao barco[7] e puxou a rede para terra, cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes. E, apesar de serem tantos, a rede não se rompeu.
12Disse-lhes Jesus: “Vinde comer”[8]. Mas nenhum dos discípulos ousava perguntar-lhe: “Tu quem és?”, sabendo que era o Senhor. 13Jesus veio[9], tomou o pão e deu-lho, e fez o mesmo com o peixe. 14Esta era já a terceira vez que Jesus se manifestava aos discípulos, depois de ressuscitar dos mortos.
(Missão de Pedro e do Discípulo Amado –) 15Depois de terem comido[10], disse Jesus a Simão Pedro: “Simão, filho de João, amas-me mais do que estes?”. Disse-lhe: “Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo”. Disse-lhe Ele: “Apascenta os meus cordeiros”. 16Disse-lhe de novo, pela segunda vez: “Simão, filho de João, amas-me?”. Disse-lhe: “Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo”. Disse-lhe Jesus: “Pastoreia as minhas ovelhas”. 17Disse-lhe pela terceira vez: “Simão, filho de João, és meu amigo?”. Pedro entristeceu-se por Jesus lhe ter dito pela terceira vez[11]: “És meu amigo?” e disse-lhe: “Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que sou teu amigo!”. Disse-lhe Jesus: “Apascenta as minhas ovelhas. 18Amen, amen te digo: quando eras mais novo, a ti mesmo te vestias e andavas por onde querias; mas, quando envelheceres, estenderás as tuas mãos e outro te vestirá e levará para onde não queres”. 19Disse isto assinalando com que género de morte Pedro glorificaria Deus. E, tendo dito isto, disse-lhe: “Segue-me”[12].
20Ao voltar-se, Pedro viu que o discípulo que Jesus amava o seguia[13], aquele que na ceia se reclinara sobre o seu peito e dissera: “Senhor, quem é o que te vai entregar?”. 21Então Pedro, ao vê-lo, disse a Jesus: “Senhor, e que será dele?”. 22Disse-lhe Jesus: “Se Eu quiser que ele permaneça até que Eu venha, que te importa? Tu segue-me!”. 23Difundiu-se, então, entre os irmãos este dito: que aquele discípulo não morreria. Ora, Jesus não lhe disse que ele não morreria, mas sim: “Se Eu quiser que ele permaneça até que Eu venha[14], que te importa?”.
Eu traduziria
1 Depois destas coisas, Jesus deu-se a conhecer de novo aos discípulos junto ao mar de Tiberíades. Deu-se a conhecer como segue.
2 Estavam juntos Simão Pedro e Tomé (o chamado Dídimo) e Natanael (o de Caná da Galileia) e os filhos de Zebedeu e outros dois dos seus discípulos.
3 Diz-lhes Simão Pedro: “Vou pescar.”
Dizem-lhe: “Também nós vamos contigo.”
Saíram e subiram para o barco. E naquela noite apanharam nada.
4 Ora, mal despontado o dia, Jesus pôs-se de pé na margem. Não obstante, os discípulos não sabiam que é Jesus.
5 Diz-lhes, pois, Jesus:
“Rapazes, não tendes nada para comer, pois não?” Responderam-lhe: “Não.”
6 Mas ele disse-lhes:
“Lançai a rede para a banda direita do barco, e achareis!”
Lançaram-na, pois, e já não tinham forças para a puxar, tanta era a multidão dos peixes!
7 O discípulo – aquele que Jesus amava – diz, pois, a Pedro: “É o Senhor!”
Então Simão Pedro, tendo ouvido “É o Senhor!”, cingiu a túnica – porque estava nu – e lançou-se ao mar.
8 Mas os outros discípulos vieram no barco (com efeito, não estavam longe da terra, a não mais de uns duzentos cúbitos) arrastando a rede dos peixes.
9 Assim que saíram do barco para terra veem um fogo de brasas ali posto, e um peixe por cima, e um pão.
10 Diz-lhes Jesus: “Trazei dos peixes que apanhastes agora.”
11 Simão Pedro subiu, pois, ao barco e puxou a rede para terra, cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes. E sendo tantos, não se cindiu a rede!
12 Diz-lhes Jesus: “Vinde, almoçai!” E nenhum dos discípulos ousava questioná-lo: “Tu quem és?” pois eles sabem que é o Senhor.
13 Jesus está presente e toma o pão e dá-lho e o peixe igualmente.
14 Esta era já a terceira vez que Jesus se dava a conhecer aos discípulos depois de ter sido despertado dos mortos.
15 Então, quando já tinham almoçado, Jesus diz a Simão Pedro:
“Simão, filho de João, amas-me mais do que estes?”
Ele diz-lhe:
“Sim, Senhor, tu sabes que te amo.”
Jesus diz-lhe:
“Apascenta os meus cordeiros.”
16 Diz-lhe de novo (é a segunda vez):
“Simão, filho de João, amas-me?”
Ele diz-lhe:
“Sim, Senhor, tu sabes que te amo.”
Jesus diz-lhe:
“Pastoreia as minhas ovelhas.”
17 Diz-lhe (é a terceira vez):
“Simão, filho de João, amas-me?”
Pedro sentiu-se ferido por Jesus lhe ter dito a terceira vez “Amas-me”,
e diz-lhe:
“Senhor, tu sabes todas as coisas! Tu sabes bem que eu te amo!”
Diz-lhe Jesus:
“Apascenta as minhas ovelhas!
18 Amen, amen te digo isto:
quando tu eras um jovem, eras tu que a ti mesmo cingias o cinto
e andavas por onde querias; mas quando fores velho, estirarás as tuas mãos
e um outro te cingirá com um cinto, e te levará para onde não queres.”
19 Ora, ele disse isto vaticinando o tipo de morte com que Pedro glorificaria a Deus.
E tendo dito isto, diz-lhe: “Segue-me.”
20 Virando-se, Pedro vê seguindo-os o discípulo que Jesus amava, aquele que
especialmente se reclinou no seu peito durante a ceia e dissera: “Senhor, quem é o que te está entregando?”
21Pedro, pois, tendo-o visto, diz a Jesus: “Senhor, e este aqui, o que será dele?”
22 Diz-lhe Jesus:
“Se eu desejar que ele fique até que eu venha, no que é que isso te afeta?
Tu segue-me!”
23 Correu, pois, entre os irmãos este rumor: “Aquele discípulo não morre.”
Jesus, porém, não disse em relação a ele “ele não morre”,
mas sim “se eu desejar que ele fique até que eu venha, no que é que isso te afeta?”

Algumas notas
1) – O cap. 21 de João (um apêndice tardio) deve ter sido composto aproximadamente uns 60 anos depois dos eventos que narra.
Pois bem: que o presente histórico apareça nele com uma tão grande profusão (25 vezes em apenas 23 versículos) é indício do modo como a contemporaneidade de Jesus estava a ser vivida na comunidade. O Crucificado Ressuscitado come com eles, como seu grande contemporâneo. Cada evento narrado, na sua unicidade original, torna-se contemporâneo dos homens e das mulheres da comunidade joanina: ele, o Senhor ressuscitado, está lá com eles no partir do pão da ceia eucarística.
O presente histórico proclama essa contemporaneidade: aquilo que foi único, por mais distante cronologicamente que tenha sido a sua ocorrência, adquire uma presença plena na sua representação. Sim, trata-se de uma representação no pleno sentido da palavra.
Já tenho alguma dificuldade em compreender a fuga generalizada ao presente histórico característica da generalidade dos tradutores quando se trata da literatura grega antiga. Pois bem: essa minha dificuldade aumenta ao constatar que essa mesma fuga ocorre quando se trata de traduzir os evangelhos. Mas então esses evangelhos, traduzidos na comunidade eclesial (seja ela católica ou protestante), não estão prenhes de uma escatologia que implica a contemporaneidade de Jesus? E qual é o motivo por que a proclamação do Evangelho, na celebração eucarística, é quase sempre precedida pelas canónicas palavras “Naquele tempo Jesus disse…”
Não é “Naquele tempo…” É hoje! O hoje da escatologia…
Mas então não é verdade que o cristianismo (seja de que igreja for) ou é escatológico ou não é cristianismo?
Por onde é que andará essa ím(pia) alma que há não sei quanto tempo (décadas? séculos?) se lembrou de canonizar liturgicamente, como introito à proclamação do Evangelho, esse incongruente “Naquele tempo Jesus disse”?…
É pena que esta nova tradução católica também tenha esconjurado o presente histórico ao longo de cada um dos quatro evangelhos: onde ele aparece a norma seguida (rarissimamente o não é) é traduzi-lo pelo pretérito perfeito português.
A nota de pé de página relativa ao v. 13 (p. 332) é reveladora desse não ter tomado a sério o presente histórico na tradução não só deste v. 13 mas também de todos os outros versículos deste capítulo. Com efeito, traduziu-se: “Jesus veio …” A nota de pé de página, essa, reza: “O verbo vir causa estranheza, visto que Jesus já estava presente” Ora, o que causa estranheza é ter-se traduzido o presente histórico ερχεται pelo pretérito perfeito português “veio”. A forma verbal ερχεται é um indicativo presente que suscita a ideia de um “vir”, um “estar vindo” que é já presença. Daí a minha tradução “Jesus está presente …”
É óbvio: eu não estou a dizer que todos os presentes históricos que aparecem na literatura grega antiga (bíblica ou não bíblica) tenham de ser traduzidos sempre pelo presente do indicativo português. Pode haver casos em que não tenham de o ser. Temos de tomar o pulso ao texto numa tentativa de sentirmos como é que ele vibra.
2) – No v. 20 há um και (o primeiro) que me levou a traduzi-lo “especialmente”: “… aquele que especialmente se reclinou no seu peito… “ Sim, esse “especialmente” é uma tradução possível (e para mim desejável neste passo) do και. Que se consultem os bons léxicos.
3) – Nesse mesmo v. 20 há um particípio presente, παραδιδους, que deliberadamente traduzo como particípio presente e não como particípio futuro: “Senhor, quem é o que te está entregando?” É que a entrega é um processo subterrâneo em curso.
Julgo não estar escrito em nenhum sítio no céu (como por vezes se insinua) que o particípio presente grego tenha sempre de ser traduzido como futuro.
4) – O verbo αγαπαω, em todo o evangelho de João, aparece 27 vezes; o verbo φιλεω 11 vezes.
Entre os tradutores alguns há – é o caso desta nova tradução católica – que julgam ser necessário traduzir cada um deles de modo diferente: se αγαπαω implica a tradução “amo”, já φιλεω exige ser traduzido por “sou amigo”. Estaria assim αγαπαω no campo semântico do amor, enquanto φιλεω no da amizade.
Em outros textos que não o joanino (textos bíblicos ou não bíblicos) uma tal norma poderá justificar-se em determinados contextos. Mas no evangelho de João as coisas fiam mais fino.
Logo aqui, neste mesmo cap. 21, os vv. 15-17 dão-nos a ver que a oscilação lexical entre αγαπαω e φιλεω não se reveste de relevância alguma:
Jesus Pedro
15 αγαπας με … φιλω σε
16 αγαπας με … φιλω σε
17 φιλεις με … φιλω σε
Além dessa irrelevância (o motivo do agastamento de Pedro não se deve a uma questão lexical mas sim ao facto de Jesus lhe ter perguntado três vezes seguidas “Simão, filho de João, tu amas-me?) – além dessa irrelevância, uma outra coisa deve ser tida em conta: os advogados da distinção entre os dois verbos não concordam uns com os outros no que diz respeito aos matizes de sentido.

O que é que Jesus está a pedir a Pedro? Estará a pedir-lhe o que seria a forma mais nobre do amor (αγαπαω, agapao), para depois, num ajuste de contas, aceitar o que seria uma forma de menor nobreza (φιλεω, phileo), a da amizade, pois isso seria tudo o que Pedro poderia dar?
Ou estará a pedir-lhe o que seria a forma do amor reverencial (αγαπαω, agapao), para daí conceder a Pedro a possibilidade de um afeto pessoal apaixonado (φιλεω, phileo)? Ou até mesmo vice-versa?
Vd. sobre esta problemática Raymond Brown, exegeta católico a quem já me tenho referido, The Gospel According to John, pp. 1102 e sgs. De um modo convincente, parece-me, defende que os dois verbos, no evangelho joanino, são inteiramente sinónimos, e que a tradução que se impõe não está no campo lexical da amizade mas no do amor.
5) – Vejamos outros passos joaninos que corroboram o que acabo de sublinhar, isto é, que αγαπαω agapao e φιλεω phileo são sinónimos que se utilizam indiferentemente.
Cotejemos dois passos paralelos:
– 3:35: ο πατηρ αγαπαι τον υιον: “O Pai ama o Filho” (nova trad. cat.: “O Pai ama o Filho”)
– 5:20: ο πατηρ φιλει τον υιον “O Pai ama o Filho” (nova trad. cat “O Pai é amigo do Filho”).
Como se vê, os defensores da distinção, como é o caso da nova tradução católica, veem-se em palpos-de-aranha, e daí resulta esta incongruência: num passo o Pai ama o Filho; no outro o Pai é amigo do Filho.
Cotejemos mais dois passos paralelos:
– 14:23: “Se alguém me ama […] também o meu Pai o amará” (nova trad. cat.: “Se alguém me amar […] o meu Pai o amará”
– 16:27: “[…] o Pai ama-vos porque vós me amastes” (nova trad. cat.: “[…] o Pai é vosso amigo porque vós sois meus amigos).
Como se pode constatar, o nobre φιλεω vinga-se nos tradutores que, ao traduzi-lo, o atiram para um patamar hierárquico abaixo do αγαπαω: é que, no texto joanino, a sua nobreza equivale à nobreza do αγαπαω. Estão ambos no campo lexical do amor.
Uma palavra final
É um facto: as nossas Igrejas cristãs vivem um tempo de fadiga. Particularmente aquelas que têm uma fundura histórica dão ares de cansaço. Daí, por vezes, a impressão de que andamos à deriva, num mundo também ele à deriva onde pontos fortes de referência têm passado e continuam a passar por um estilhaçamento de que não vemos como daí possa advir uma recomposição do que era.
Nós não sabemos que tempo é o nosso.
Num mundo à procura de si-mesmo, Igrejas à procura de si-mesmas, mundo e Igrejas, no labirinto de um desnorte que, no fundo, vive em registo trágico (miticamente) a sua sede de sentido. E, contudo, paradoxalmente, precisamos de ser quem somos, porque esse paradoxo (na força com que ele fala grego) é um desafio de sempre. Como se pode ser o mesmo mudando?
Precisamos da vida que nos advém das nossas raízes. Ora, coisa surpreendente, no meio de um cristianismo fatigado, a sua figura fundadora, Jesus de Nazaré, continua a ser uma figura fascinante. Há, cada vez mais, homens e mulheres que dizem não às Igrejas e sim a Jesus. Ele continua a suscitar a atenção dos historiadores, dos escritores, dos cineastas. Hoje em dia – à exceção de uma ou outra voz desgarrada e sem consistência própria – já não se põe em causa a sua existência histórica. A história tem avançado muito nesse sentido, e historiadores há, mesmo não cristãos, que afirmam que é mais difícil fundamentar a sua não-existência do que a sua existência.
A pergunta já não é se ele existiu, mas sim: quem é que ele foi?
E estamos aí no cerne da pergunta fundamental por ele feita aos discípulos: “Quem dizeis vós que eu sou?” Enquanto houver homens e mulheres que se apaixonem por essa pergunta há cristianismo. Precisamos ser igrejas (comunidades) de Jesus.

Daí a importância dos evangelhos. Daí a importância da sua tradução. Os quatro evangelhos, escritos num grego de singeleza aristocrática, são textos fortes que têm resistido e continuam a resistir à usura do tempo, e que continuam a surpreender-nos. Meu Deus! Como são fortes aqueles textos! Na sua pluralidade, nas interpretações diferentes que fazem de Jesus, atestam o quanto o cristianismo nascente foi plural. E, como tal, anti-totalitário. O Jesus de Nazaré que deles emerge é sempre surpreendente: gosta mais de fazer perguntas do que dar respostas e tem um comportamento não poucas vezes desconcertante. Nele não podemos pôr um rótulo porque ele é inclassificável.
Quer isto dizer que a Igreja (una e plural) é Igreja porque os quatro evangelhos, ao longo dos séculos, a têm portado e suportado. Sim, portado e suportado. É que ele, o Evangelho uno e plural, é infinitamente maior do que as nossas Igrejas, e é ele o Evangelho que as tem portado e suportado na desobediência que tem sido a delas. Elas precisam dele para viver.
Por tudo isso desejo vivamente à Conferência Episcopal Portuguesa que a força do Espírito (esse Espírito que ao soprar começa a fazer novas todas as coisas, nos nossos corações e no mundo) lhe dê o ânimo necessário e o discernimento que se impõe neste seu projeto de uma nova tradução da Bíblia.
Sou, por um lado, um protestante crítico do protestantismo quando este desvaloriza a tradição, levado pelo desejo de uma autonomia enganadora porque filha de um subjetivismo autista. Por outro lado sou um protestante crítico de uma eclesiologia, qual a católica, geradora de um eclesiocentrismo que, a meus olhos, nada de bom pode gerar. Quem sabe até se a profunda crise do romano-catolicismo nos nossos dias não será, em parte, uma das sequelas desse eclesiocentrismo.
Entendo, como cristão protestante, que se impõe hoje ao protestantismo que historicamente emerge da Reforma do séc. XVI – ele também a viver a sua crise – afirmar, na liberdade da investigação histórica, e animado da criatividade que ela nos proporciona, o valor da tradição: sem ela não há transmissão da vida e, como tal, devemos rememorá-la para nela encontrar promessas ainda não cumpridas. É que a tradição está prenhe de muitos sonhos ainda não cumpridos que poderiam dilatar os horizontes, enriquecendo-os, da Igreja una e plural.
Com efeito, todos nós somos herdeiros de sonhos não cumpridos. Não seria desejável uma anamnese que os reabrisse – neste tempo trágico que é o nosso – na medida em que são sonhos nascidos do Evangelho? Somos chamados hoje, de um modo muito particular, a transpor os nossos confinamentos religiosos – confinamentos por nós fabricados – e a procurar um horizonte de esperança num mundo sem esperança.
Em torno do conceito de magistério na Igreja, posso concebê-lo inscrevendo-o no contexto de uma dupla referência, pois são duas vias que com ele têm que ver.
Em primeiro lugar o meu reconhecimento de que não há interpretação que se esgote naquilo a que podemos chamar o subjetivo, o pessoal: as palavras por mim postas em epígrafe na página do título deste meu trabalho (“Será que podemos ler com outros olhos que não os nossos?”, Karl Barth) não perdem de vista isso mesmo. Animou-me o desejo de levar a cabo uma leitura feita em comunidade, a comunidade eclesial.
Em segundo lugar o reconhecimento de que vivermos uma tal condição comunitária implica, como já disse antes, uma tradição: efetivamente, é no quadro de uma tradição (revisitando-a e repensando-a) que ocorre o discernimento daquilo que importa. Esforcei-me por isso.
E é louvável que a Conferência Episcopal Portuguesa tenha mostrado o seu desejo de ouvir outras vozes neste projeto de uma nova tradução da Bíblia. Procurei ser uma dessas vozes.
Falece-me o tempo para mais. Literalmente, falece-me o tempo.
Dimas de Almeida
Carcavelos, de janeiro a agosto de 2020