
Uma cruz feita com Bíblias. Foto © Timóteo Cavaco
O 7MARGENS publica a seguir a segunda parte do estudo do pastor presbiteriano Dimas de Almeida sobre a nova tradução da Bíblia – Os Quatro Evangelhos e os Salmos, promovida pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e publicada no ano passado.
A edição experimental desta nova versão da Bíblia em português propunha-se recolher sugestões, críticas e comentários. Dimas de Almeida aceitou para si mesmo o desafio e lançou-se à tarefa. O resultado é o que aqui fica, concretizado com o seu olhar de teólogo, exegeta e autor de várias traduções, como ficou dito na primeira parte deste texto, publicada na semana passada, na qual o autor explicava o modo como leu esta nova tradução.
Nesta segunda parte, Dimas Almeida aborda, entre outras questões, o problema da pluralidade de leituras, a partir do facto de haver quatro evangelhos e não apenas um. Com o risco, que transparece de algumas expressões da introdução à edição em análise, de “fazer da uniformidade exigida à nova tradução uma espécie de altar onde se imola a pluralidade”.
Este trabalho continuará a ser publicado semanalmente, cada sexta-feira, até 18 de Dezembro, poucos dias antes do Natal.
Evangelho e evangelhos
Passo à minha leitura das pp. 13-17 (da edição de Bíblia – Os Quatro Evangelhos e os Salmos)
1. Pedagogicamente teria sido importante, assim julgo, que na introdução que é feita a esta problemática se tivesse esclarecido uma coisa importante mas de que o conhecimento é, no domínio público, limitado a muito poucos leitores do Novo Testamento: não é com os evangelhos que o Novo Testamento começa, mas sim com as epístolas paulinas, historicamente situadas entre o ano 50 e o ano 60, a grande década da produção epistolar paulina. Os evangelhos só começaram a aparecer a partir dos anos 70.
Pois não é verdade que a tendência natural das pessoas é tomar os evangelhos como os primeiros livros do Novo Testamento a terem sido escritos? Tocar nesse ponto permitiria abordar, em estilo introdutório, tanta coisa importante, como por exemplo esta: quando Paulo escreve as suas cartas ainda nenhum dos nossos evangelhos canónicos existia. Ele não os conheceu (perdoem-me esta lapalissada). Ou, por exemplo, esta: o processo da definição de um cânone do Novo Testamento (tão lento que vai prolongar-se por mais de duzentos anos) começa com o reconhecimento das cartas do Apóstolo como uma coletânea dotada de autoridade. Era, portanto, dar a conhecer à quase totalidade dos leitores algumas questões importantes relacionadas com a problemática inerente ao modo como o cânone dos 27 livros se foi constituindo, sem esquecer uma confissão, a confissão que consiste em reconhecer, a esse respeito, as zonas da nossa ignorância histórica.

2. Na pág. 13, no segundo parágrafo, emerge logo uma preocupação: a defesa de que os evangelhos são fiéis ao relatarem aquilo que relatam. E defende-se essa fidelidade afirmando-se sem sombra de hesitação: “A fidelidade a esta mensagem estava garantida pela memorização, característica essencial do sistema educativo judaico, ao ponto de S. Jerónimo se admirar com a capacidade dos judeus de reproduzir de memória não só as listas dos nomes do livro das Crónicas, como a Torá e os Profetas.”
Claro, pode-se problematizar esta maneira – que me parece inconsistente – de resolver o problema complexo da transmissão dos evangelhos, começando por formular singelas perguntas: como é que essa prodigiosa memória deixou passar
– duas versões diferentes do Pai-nosso
– duas ou três versões diferentes da assim chamada “instituição da eucaristia”
– duas versões diferentes do “sermão da montanha”
– duas datas diferentes para a última ceia durante a qual Jesus instituiu a eucaristia
Coisas outras, e muitas, podiam ser evocadas. Fiquemo-nos por aqui.
a) Com efeito, temos duas versões acentuadamente diferentes do Pai-nosso: a de Mt 6:9-13 e a de Lc 11:2-4. E, como facilmente se compreende, trata-se de um texto de fundamental importância para o cristianismo nascente.
Como explicar a existência desses dois textos diferentes?
Desde logo, tendo em conta o estado atual dos nossos conhecimentos históricos e dos avanços exegéticos registados nos últimos 30 ou 40 anos, há que rejeitar a tese, que tem cada vez menos defensores, de que o Pai-nosso em grego é uma tradução do aramaico falado por Jesus. Lembro-me bem, há uns quarenta ou cinquenta anos, da febre do aramaico que atingiu um certo número de exegetas (havia-os católicos e protestantes): os evangelhos tinham, subjacente ao texto grego, um substrato aramaico. Isto é, era um grego que não era verdadeiramente grego: era um grego resultante de uma tradução do aramaico. As duas versões do Pai-nosso resultavam, pois, do facto de o Pai-nosso aramaico ter sido maltratado por aqueles o traduziram para grego: os dois evangelistas Mateus e Lucas. Ora, hoje em dia uma tal perspetiva exegética não tem pés para andar. E é difícil, portanto, compreender aqueles que continuam a defender aquilo que, historicamente, é indefensável.
Deixem-me alinhavar aqui alguns pontos sobre isto.

– Não temos nenhum manuscrito em aramaico. Os mais de cinco mil manuscritos que temos do Novo Testamento são todos em grego. Quando se defende a existência de um Mateus aramaico, o que é que o historiador pode dizer? Duas coisas. Primeiro: se alguma vez um tal Mateus existiu, perdeu-se. Nunca lhe pusemos a vista em cima. Segundo: o Mateus que temos – reconhecem-no cada vez mais exegetas – está escrito num grego que não é grego de tradução. É um grego que cheira a grego, não a aramaico. E o Pai-nosso faz parte desse grego. O consenso, entre exegetas, aumenta a esse respeito. Por exemplo, tenho aqui na minha frente um mastodôntico trabalho de investigação histórica e exegética (a probidade intelectual do investigador, autor da obra, emerge em cada uma das setecentas páginas que escreve) do Sermão do Monte e do Pai-nosso, onde se pode ler, como uma das conclusões: “In regard to its composition, the Lord’s Prayer in Greek is a literary masterpiece.” (Hans Dieter Betz, The Sermon on the Mount, Fortress Press, 1995, p. 375).
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– Na Biblioteca John Rylands, em Manchester, encontra-se um fragmento de manuscrito de uma preciosidade rara. É um fragmento de papiro escrito em grego, datado do ano 125, onde se podem ler algumas palavras do cap. 18 do Evangelho de João (Jo 18:31-33, 37-38). Trata-se do mais antigo manuscrito conhecido do Novo Testamento. Ora, na investigação exegética que se tem feito do Evangelho de João, tem-se como data final de redação do mesmo os anos 90 a 95 (ele supõe a exclusão dos cristãos da sinagoga, uma medida tomada nos anos 80).
O que é que isto significa? Significa, entre outras coisas, isto: apenas uns trinta anos separam a redação do Evangelho de João da sua cópia, que se encontra neste fragmento de manuscrito que se encontra em Manchester e que tem como nome de código: P52. Tão poucos anos de intervalo entre uma obra e a sua cópia não tem paralelo em toda a literatura da Antiguidade Clássica. Quantos séculos não vão entre Homero e os primeiros manuscritos que dele possuímos! Ou entre Platão e os manuscritos mais antigos dos seus diálogos! Ou entre a Poética de Aristóteles e as suas cópias! Séculos e séculos!
Pois bem: o P52 datado do ano 125, a primeira cópia que se conhece do Evangelho de João, apenas a uns trinta anos da obra, não é um papiro em aramaico. É grego. Eu ainda me lembro muito bem de os defensores de um original aramaico dos evangelhos incluírem o Evangelho de João nesse número: o grego do Evangelho de João é uma tradução do aramaico, afirmava-se! Pois bem: como é que se explica que apenas a 30 anos de distância da obra original, esta não tenha sido transcrita em aramaico mas em grego? Obviamente: porque o original é grego!
Mas entre os manuscritos do Novo Testamento não é apenas importante o P52. Outros há, uns dezasseis, dispersos por bibliotecas ou museus (Paris, Filadélfia, Londres, Glasgow, Dublin, Barcelona), que se revestem também de uma particular importância. São dezasseis papiros dos anos duzentos que nos dão a ver fragmentos de evangelhos. Um deles, o mais antigo, contém um evangelho inteiro (João), e foi datado do ano 200: é o famoso Bodmer (Biblioteca Bodmer, perto de Genève). Foi-lhe atribuído o código P66.

Ora, todos esses dezasseis manuscritos estão em grego. A partir do séc. IV ocorre uma acentuada multiplicação do número de manuscritos. E até hoje ainda não apareceu nenhum aramaico.
– Mais à frente (quando o Pai-nosso se impuser à nossa atenção, em Mateus) a problemática do aramaico será por mim retomada. Por agora, o já dito pode levar-nos, parece-me, à consideração seguinte: se o original aramaico era de uma importância vital para a igreja nascente, por que motivo os cristãos, protagonistas dessa igreja, não tiveram a preocupação de salvaguardar nenhum desses manuscritos?
Logo desde os inícios da igreja nascente, o que é preservado é tudo grego. De nenhum manuscrito aramaico, até hoje, temos conhecimento. Dá a impressão de que, para essa igreja, o aramaico não era tido como língua da revelação. E isso reveste-se de uma particular importância: liberta-nos daquilo a que se poderia chamar um positivismo da revelação. E quão grande não é uma tal libertação!
Subsiste, portanto, a questão: como explicar a existência de dois textos diferentes do Pai nosso? Mais à frente, ao abordar o texto do Pai-nosso em Mateus, tentarei apresentar uma possível resposta, historicamente verosímil, para uma tal questão.
b) Com efeito, temos também versões diferentes de um outro texto de fundamental importância para a igreja nascente, um texto fundador de um novo culto: o da assim chamada instituição da eucaristia. Temos de facto dele, por um lado, a versão de Marcos e a de Mateus, muito próximas entre si (Mc 14:22-24; Mt 26:26-28), e, por outro lado, a de Lucas (Lc 22:17-20), claramente discrepante da de Marcos e Mateus. E Paulo, esse, apresenta-nos uma versão diferente (vd 1 Cor 11:23-25), provavelmente mais antiga que as outras: o apóstolo escreve as suas cartas uns 25 ou 30 anos antes dos nossos quatro evangelhos.
c) E temos também dois textos diferentes do assim chamado “sermão da montanha”: o texto de Mateus (Mt capítulos 5 a 7), apresentado como um sermão proclamado num monte, e o texto de Lucas (Lc 6:17-49), apresentado como um sermão proclamado numa planície. E quantas diferenças não são facilmente detetáveis entre um texto e outro!
d) E duas datas diferentes para a última ceia de Jesus: temos por um lado os três sinópticos que falam dela como uma ceia pascal (Mc 14-12-16; Mt 26:17-19; Lc 22:7-13) e, por outro lado, o evangelho de João, claramente discrepante, que a evoca como ocorrida um dia antes.
Com efeito, para os sinópticos a ceia ocorreu no dia 14 Nisan e, como tal, foi uma ceia pascal, e a crucifixão no dia seguinte, em pleno dia da Páscoa. Para João o dia da crucifixão não podia ser esse: era por demais inverosímil que, historicamente, julgamento e crucifixão pudessem ter ocorrido durante a festa. Situa, pois, essa ceia na véspera da Páscoa (Jo 13:1), portanto na noite precedente, uma quinta-feira à noite (tenha-se presente que, na tradição judaica, o dia desponta ao pôr do sol). Segundo esta datação joanina, Jesus foi imolado no “dia da Preparação”, isto é, o dia anterior ao dia da Festa, o dia em que os cordeiros eram imolados no Templo para serem comidos à noite, na ceia pascal (João 19:31).

Teríamos assim a ceia narrada pelos sinópticos como uma ceia não pascal. Porquê, então, os três sinópticos põem na boca de Jesus estas palavras: “Onde é a minha sala onde eu coma a Páscoa com os meus discípulos?” (vd Mc 14:14; Mt 26:18; Lc 22:11)? Eis-nos no domínio no qual, historicamente, temos de falar a partir da plausibilidade: é muito plausível que Jesus assim tenha falado. Com efeito, ao subir a Jerusalém Jesus fê-lo com uma funda intenção: festejar a Páscoa com a sua “família” eletiva, (“comer a Páscoa” supunha comê-la com a família), os Doze.
Só que – e há nisto verosimilhança histórica – os acontecimentos ter-se-ão precipitado de tal maneira, com a ameaça de uma morte iminente e indesejada (a morte de Jesus), que ele ficou sem tempo para “comer a Páscoa” no dia da Festa. Meu Deus: como não terá sido aquela última “semana” de Jesus em Jerusalém!
Outras divergências entre os evangelhos poderiam ser evocadas. Limitei-me a uma simples amostragem. Ora, algumas pessoas poderão pôr-se a pensar: sendo assim, onde está a veracidade dos evangelhos? Pois bem: tenhamos presente que, pelo contrário, elas são indícios de fiabilidade. Que o mesmo episódio possa dar lugar a versões não coincidentes sugere que aqueles que dele falam não o inventaram. Uma unanimidade resultante de uma uniformidade é que pode dar lugar à suspeição. Quem conhece as regras da literatura oral e da hagiografia sabe perfeitamente isto: os usos diversos e variados que se pode fazer de um evento ou episódio isolado. O psitacismo, esse sim, é que, além de estéril, seria aqui suspeitoso.
É sabido que a palavra psitacismo, proveniente do grego ψιττακος, papagaio, supõe a ideia de algo que se repete mecanicamente aprendido de cor: palavras, frases, como se imitássemos um papagaio. Ora, defender que os autores dos evangelhos são fiéis no que narram porque aprenderam a lição de cor e limitam-se a repeti-la mecanicamente, defendermos isso parece-me defendermos algo próximo do psitacismo. E, além disso, é fazer dos geniais criadores dos evangelhos (os evangelistas) uns meros escrivães repetidores de uma memória congelada. Meu Deus: a congelação da memória!… Não me parece que seja por aí que se deva ir na defesa da verdade do Evangelho.
Além disso, subjacente à afirmação de que (p. 13) “A fidelidade a esta mensagem estava garantida pela memorização” está uma questão de fundo: em que língua é que os evangelistas decoraram a mensagem que transmitem? Em aramaico? Como assim? Então não é em grego que os evangelhos foram escritos? Com efeito, o consenso a este respeito entre os exegetas tem-se acentuado: os evangelhos falam grego, todos eles, incluindo Mateus.
3) Exemplar é, a este respeito, Lucas.
Como começa ele o seu evangelho? Com um prólogo (1:1-4) onde nos dá a ver aspetos muito importantes no concernente à composição dos evangelhos a que, significativamente, ele chama “narrativas”. Escreve ele:
Texto grego
1Ἐπειδήπερ πολλοὶ ἐπεχείρησαν ἀνατάξασθαι διήγησιν περὶ τῶν πεπληροφορημένων ἐν ἡμῖν πραγμάτων,
2καθὼς παρέδοσαν ἡμῖν οἱ ἀπ’ ἀρχῆς αὐτόπται καὶ ὑπηρέται γενόμενοι τοῦ λόγου,
3ἔδοξεν κἀμοὶ παρηκολουθηκότι ἄνωθεν πᾶσιν ἀκριβῶς καθεξῆς σοι γράψαι, κράτιστε Θεόφιλε,
4ἵνα ἐπιγνῷς περὶ ὧν κατηχήθης λόγων τὴν ἀσφάλειαν.
Nova tradução católica
1Dado que muitos procuraram compor uma narração acerca dos factos que entre nós se completaram, 2como no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e servidores da palavra, 3entendi por bem, também eu, que desde o início averiguei atentamente todas as coisas, escrever-tos, de modo ordenado, caríssimo Teófilo, 4para que reconheças a solidez das palavras com que foste instruído[
Eu traduziria
1 “Já que muitos meteram mãos à obra ao compor uma narrativa acerca dos eventos consumados entre nós,
2 segundo no-los transmitiram aqueles que desde o princípio foram testemunhas oculares e servidores da palavra,
3 também a mim, investigador meticuloso de tudo desde as origens, me pareceu uma boa coisa narrá-los ordenadamente para ti, mui excelente Teófilo,
4 a fim de que reconheças a solidez das coisas acerca das quais foste instruído.” (minha tradução)

Este prólogo, admiravelmente bem construído, num grego de excelente qualidade, enuncia as diferentes etapas da redação dos evangelhos:
- a) houve eventos que se consumaram
- b) diante de testemunhas oculares
- c) que os transmitiram (tradição oral)
- d) a muitas pessoas que quiseram compor una narrativa acerca desses eventos.
- e) Lucas, 50 anos depois, informa-se com rigor (estuda os documentos de que dispõe)
- f) elabora um plano narrativo sequencial (classifica os documentos)
- g) põe-se a escrever (redação)
- h) tendo em vista um destinatário concreto, Teófilo (qual público visado)
- i) para que este tome consciência de que são seguros os ensinamentos recebidos
(em função da mensagem que Lucas pretende transmitir).
Parece-me relevante não passarmos por cima (ignorando-a) da preposição περι, (acerca de) logo no versículo 1: com efeito, Lucas não escreve “uma narrativa dos eventos”, mas sim “uma narrativa acerca dos eventos”. Felicito esta nova tradução católica por ter tido isto em conta ao traduzir “uma narração acerca dos factos”. Muito bem “acerca dos factos”. Raríssimos são os tradutores que têm em conta a importância deste περι!
Sabe-se, claro, que a preposição περι, na literatura grega, aparece em alguns títulos de obras. Considere-se como um exemplo a obra de Orígenes περι αρχων, traduzida habitualmente Dos Princípios. Frequentemente, nos títulos, não é traduzida. Ainda que, na minha perspetiva, o pudesse ser: o que daria, em bom português, Em torno dos princípios. O caso de Lucas é diferente: no seu evangelho o περι não aparece como título, mas sim integrado numa construção sintática que me parece exigir traduzi-lo com o significado que ele tem ao reger um genitivo como aqui: acerca de, sobre, em torno de.
Pois bem: sendo assim, Lucas está a dizer-nos que os πολλοι (muitos, numerosos) que o precederam não escreveram uma narrativa “em direto” dos eventos, mas sim uma narrativa acerca desses eventos ocorridos algumas dezenas de anos antes.
O caminho da interpretação está assim aberto. Isto é, aquele Jesus que nada nos deixou escrito, abre esse caminho para que aqueles que por ele se apaixonam cinco décadas depois – é o caso de Lucas – o interpretem. E quão importante é, assim julgo, que Jesus nada tenha escrito! Dele uma única vez se nos diz que escreveu: na areia (vd João 8:6). O Jesus dos evangelhos sinópticos não fala abertamente da sua identidade. Em vez disso confronta-nos com a pergunta essencial: “Vós dizeis que eu sou quem?” (Mc 8:29; Mt 16:15; Lc 9:20).
O que Lucas se propõe fazer passa, claramente, por uma interpretação dos eventos. Porque será que este περι (acerca de, em torno de) é habitualmente ostracizado pela generalidade dos tradutores? E isso tanto no campo católico como no campo protestante.

Não sabemos como trabalharam os outros três evangelistas para chegarem à composição dos seus evangelhos. Provavelmente ter-se-ão encontrado também perante dossiês – fragmentos de evangelhos? – que tinham já circulado sob a forma de tradição oral. Muito plausível é que fossem dossiês: uns compostos por “palavras de Jesus”; outros narrativas de “milagres”; outros de “parábolas”; outros ainda “narrativas da paixão”, et cetera.
E verosímil é também, no concernente tanto a Marcos como a Mateus, que cada um deles tivesse composto o seu evangelho em função não só do público que visava atingir, mas também do objetivo perseguido. E teria sido com esses dois alvos em vista que, perante o material recolhido, terão procedido à seleção dos documentos que lhes pareceram mais adequados. Tê-los-ão classificado em conformidade com o seu desígnio. E, finalmente, redigiu cada um deles a sua narrativa.
Chamo a atenção para o facto de eu utilizar aqui a palavra “narrativa” e não a palavra “evangelho”. Fui levado a isso pela mão do próprio Lucas: a palavra διηγησις que ele emprega é muito expressiva ao evocar a ideia de narração, com todo o peso existencial de que o ato de narrar se reveste.
Enquanto houver mulheres e homens que aceitem o desafio para fazer parte dessa narrativa e, no mais profundo da sua existência, fiquem cativos da pergunta libertadora “Vós dizeis que eu sou quem?” – enquanto isso acontecer há cristianismo!
Como é sabido, tal como Sócrates 400 anos antes, Jesus também não nos deixou nada escrito. E os evangelhos não são narrativas em direto: escritos em grego à distância de uns 40, 50 ou 60 anos (depende de que evangelho se trata), são já interpretações do Jesus histórico.
Esta introdução católica à problemática do modo como os evangelhos se constituíram parece não ter isso em conta. E acaba por cair numa perspetiva fundamentalista claramente denunciada num importante texto do Vaticano sobre a interpretação da Bíblia na Igreja: em que consiste uma tal perspetiva fundamentalista? Consiste em “confundir ingenuamente o estágio final da tradição (o que os evangelistas escreveram) com o estágio inicial (as ações e as palavras do Jesus da história”. E eu acrescentaria: trata-se de uma confusão que é comum tanto ao fundamentalismo protestante como ao fundamentalismo católico.

A denúncia da confusão que citei acima encontra-se, de facto, num importante texto do Vaticano: A Interpretação da Bíblia na Igreja. Trata-se de um documento de mais de 100 páginas emanado da Comissão Bíblica Pontifícia, apresentado ao Papa João Paulo II pelo cardeal Joseph Ratzinger no decurso da audiência de sexta-feira 23 de abril de 1993, por ocasião da comemoração do centenário da Encíclica de Leão XIII Providentissimus Deus e do cinquentenário da Encíclica de Pio XII Divino Afflante Spiritu.
Veja-se como é lá sublinhada a importância do método histórico-crítico quando se trata da exegese bíblica:
“O método histórico-crítico é o método indispensável para o estudo científico do sentido dos textos antigos. Visto que a Escritura Santa, na medida em que é ‘Palavra de Deus em linguagem de homem’, foi composta por autores humanos em todas as suas partes e todas as suas fontes, a sua justa compreensão não somente admite como legitima e exige mesmo a utilização desse método”.
E ao chegar ao fim sublinham-se duas conclusões:
“A partir do que foi dito no decurso deste longo relatório (possivelmente breve demais num certo número de pontos) a primeira conclusão que emerge é que a exegese bíblica cumpre, na igreja e no mundo, uma indispensável tarefa. Tentar suprimi-la quando se trata de compreender a Bíblia seria criar uma ilusão e manifestar uma falta de respeito pela Escritura inspirada.
“Uma segunda conclusão é que a verdadeira natureza dos textos bíblicos implica que interpretá-los exigirá um uso contínuo do método histórico-crítico pelo menos nos seus principais métodos de investigação. A Bíblia, com efeito, não se apresenta a si mesma como uma revelação direta de verdades intemporais mas como o testemunho escrito prestado a uma série de intervenções nas quais Deus se revela a si mesmo em história humana.”
O texto do Vaticano chama também a atenção para a importância que pode ter para a exegese outras metodologias que se inscrevem no registo da sincronia (como sejam a retórica, a narrativa, a semiótica e outras). O registo diacrónico, esse, como se sabe, é próprio do método histórico-crítico.
Ao sublinhar a importância do método histórico-crítico fustiga… o fundamentalismo protestante. E porquê? Porque, “No que diz respeito aos Evangelhos, o fundamentalismo não tem em conta o desenvolvimento da tradição Evangelho, mas ingenuamente confunde o estádio final desta tradição (isto é, o que os evangelistas escreveram) com o estádio inicial (as palavras e ações do Jesus histórico). Ao mesmo tempo o fundamentalismo negligencia um facto importante: o modo pelo qual as primeiras comunidades cristãs, elas próprias, interpretaram o impacto produzido por Jesus de Nazaré e a sua mensagem”.
E ainda sobre o fundamentalismo pode ler-se nesse documento do Vaticano:
“O fundamentalismo recusa admitir que a palavra inspirada de Deus foi expressa em linguagem humana, e que esta palavra foi expressa, sob inspiração divina, por autores humanos dotados de capacidades limitadas e de recursos limitados. Por esse motivo o fundamentalismo é levado a tratar o texto bíblico como se este tivesse sido ditado palavra a palavra pelo Espírito. É incapaz de reconhecer que a palavra de Deus foi formulada numa linguagem e num fraseado ambos condicionados pelos vários períodos no tempo […] e com as marcas das diversas situações históricas.”
O assim fustigado é – e muito bem! – o fundamentalismo protestante. Mas eu pergunto: quando no capítulo introdutório “Evangelho e Evangelhos” (p. 13) desta nova tradução católica se defende que ao lermos hoje os evangelhos podemos estar seguros da sua fidelidade porque se trata de textos reproduzidos mecanicamente, decorados a partir das palavras e ações do Jesus histórico – quando se defende isto não se está a confundir o estádio final da composição dos evangelhos, resultado de um longo processo de interpretação, com o estádio inicial, o das palavras e ações do Jesus histórico? E não estamos aí perigosamente perto da caracterização do fundamentalismo como defensor de que a fidelidade dos evangelhos depende de uma reprodução de palavras sejam elas provindas de uma tradição decorada “palavra a palavra”, sejam elas provindas (o que dá no mesmo) de um ditado palavra a palavra do Espírito?
Uma coisa eu posso garantir: as comunidades protestantes fundamentalistas embandeiram em arco ao ler “A fidelidade a esta mensagem estava garantida pela memorização, característica essencial do sistema educativo judaico, ao ponto de S. Jerónimo se admirar com a capacidade dos judeus de reproduzir de memória não só as listas de nomes do livro das Crónicas, como a Torá e os Profetas” (p. 13).
Ao defender-se assim a fidelidade dos evangelhos, parece-me correr-se o risco não só de se cair num deplorável positivismo da revelação, como também de não se compreender que se está a prestar um mau serviço aos evangelhos.
Digamo-lo claramente: a grandeza da Bíblia está nos antípodas do psitacismo! O psitacismo está ferido de uma mediocridade esterilizante. A grandeza da Bíblia – e, consequentemente, a grandeza dos evangelhos – é feita de muitas coisas. Ora, entre essas muitas coisas está esta: ela é – e com ela os quatro evangelhos – um repositório único de muitas maneiras de interpretar os mesmos eventos e de refletir sobre os mesmos problemas.
E por isso esse repositório único que é a Bíblia lança-nos um candente desafio: sermos capazes de fugir de uma ingénua simplificação das coisas. Ora, como cristãos todos nós aí estamos numa fraternidade que é simultaneamente para ser vivida na vulnerabilidade que é a nossa e na força que é a do Evangelho.
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Eles, os evangelhos, são, com efeito, quatro obras redigidas por quatro autores diferentes ao longo de um notável processo de composição. Como não estavam lá na altura dos eventos que narram (não eram apóstolos) servem-se de testemunhos e de materiais que os precedem. E é incontestável que entre eles há, por vezes, disparidades: ora isso só milita a favor da autenticidade do acontecimento fundador de que falam. Um acontecimento que não é ficção: se o fosse esses quatro autores ter-se-iam empenhado num discurso unificante, e teríamos assim uma construção artificial de uniformidade. É importante, muito importante, que essa uniformidade esteja ausente: é que se trata de uma ausência indiciadora da autenticidade das narrativas que constroem.
A igreja nascente canonizou os quatro evangelhos consciente dessa falta de uniformidade. E agiu para isso de um modo significativo: não era pelo facto de um texto ser inspirado que ele “fazia autoridade”, mas sim o contrário: é porque se lhe reconhecia autoridade que ele era tido como inspirado.
Foi por isso que resistiu a Taciano com o seu projeto de fazer dos quatro evangelhos um só. Quão importante não foi esse combate travado pela igreja nascente na defesa da pluralidade!
Por esse motivo a perplexidade invade-me ao ler na Introdução Geral desta nova tradução católica (p. 6) o que lá se encontra claramente expresso como um desejo fundo: cumprir a exigência de uma tradução “uniforme” dos Evangelhos.
E que contornos são esses os da uniformidade que se pretende atingir? Eles emergem, assim me parece, na p. 18 (último parágrafo).
Parágrafo curioso esse. Na 7ª linha antes do fim, alude-se à necessidade de a tradução ser tratada de modo a
“formar um todo coerente especialmente tendo em conta a sua proclamação. Nesse sentido, todos os textos sinópticos foram revistos numa tabela sinóptica, procurando convergir e harmonizar tudo aquilo que é comum aos três […]”.
Três notas:
a) O que é isso de um “todo coerente”? Quem é que tem autoridade para decidir o que é coerente ou não coerente na riquíssima pluralidade dos Evangelhos?
b) A sintaxe do último período (que começa com as palavras “Nesse sentido”) dá ares de coxear um pouco ao chegar às palavras “procurando convergir e harmonizar”. Sente-se que falta aí um verbo. E é óbvio: é o verbo fazer. O que dará: … procurando-se fazer convergir. Trata-se provavelmente de um lapso, mas o desígnio é claro: fazer convergir.
Subjacente, pois, a um tal desígnio, há a constatação de que no texto dos evangelhos há algumas coisas que não convergem e que é preciso “fazer convergir”.
Sobe, pois, dentro de mim a pergunta: essa uniformidade que se pretende atingir na tradução é decretada por quem?
c) Fazer “convergir e harmonizar tudo aquilo que é comum aos três”.
Meu Deus! De fato há muitas coisas comuns entre eles. Mas que são narradas de maneiras diferentes e por vezes divergentes. Seria fastidiosa uma lista de dezenas de coisas desse tipo. A mesma parábola (e há variadas nesta circunstância) narrada de modos diferentes e ricamente prenhe, de um significado diferente segundo o evangelho que a narra; as mesmas palavras de Jesus transmitidas de um modo diverso e com um alcance diferente; o mesmo Pai-nosso transmitido por Mateus com um texto diferente do de Lucas; as mesmas palavras da instituição da eucaristia transmitidas de modos diferentes; o mesmo texto sobre o divórcio transmitido com alguma disparidade.
Quem é que decreta que o que é comum tem de ser uniforme?
Quem é que decreta a morte da essencial pluralidade dos Evangelhos?

Historicamente, constata-se isto: o cristianismo nascente é feito de muitos ingredientes. A nossa surpresa é, pois, grande ao constatarmos o modo como as suas origens são vividas de um modo plural, polissémico, polifonicamente conflitual. Resistamos à tentação de projetarmos nessas origens um possível monolitismo – católico ou protestante – de hoje.
Sim, a redação dos evangelhos supõe um extraordinário processo criativo. Supõe um salutar conflito de interpretações, sem o qual não se avança na liberdade das interrogações constantemente formuladas por Jesus. Sempre que lhe fazem uma pergunta ele responde com outra pergunta. Que atinge o dialogante no mais profundo do seu ser. E que assim o liberta do positivismo de uma resposta pré-fabricada. Os Evangelhos, na pluralidade que é a deles, são textos não totalitários onde se ouvem vozes diferentes. Não há uma única voz. Decretar a “uniformidade” de textos libertadores na sua pluralidade é submetê-los a uma anestesia paralisante. Da qual nada de bom pode resultar.
O nosso Ocidente construiu-se a partir de coisas variadas, já o disse. Ora, entre essas coisas está a herança judeo-cristã antitotalitária de que os Evangelhos são uma parte essencial. O código genético do cristianismo nascente está grávido dessa fecunda pluralidade.
Quando a Igreja, a partir do século II, começou a reconhecer os evangelhos dotados de autoridade, estava consciente dessa não uniformidade entre eles. Consciente das suas divergências. E não procurou unificá-los. Isto é: canonizou uma pluralidade. Resistiu assim à maior ameaça proferida contra os quatro evangelhos: a do piedoso Taciano que, possuído pela febre da unificação e uniformização, procurou fazer dos quatro evangelhos um só.
Pois então – pensava ele – não é verdade que os quatro dizem o mesmo e a única diferença é que uns dizem algumas coisas que os outros não dizem? Vamos, portanto, tapar os buracos do que alguns silenciam com o material disponível nos outros e, a partir daí, chegaremos a um único texto através de uma inter-sobreposição dos quatro. Como se sabe, resultou daí o seu Diatessarão: os quatro reduzidos a um só.
O Diatessarão, na Síria, foi o Evangelho litúrgico até ao século V. O que é bem curioso: a preocupação litúrgica traduzida no desejo de que os evangelhos, nas suas diferenças, sejam exorcizados dessas diferenças a fim de chegarem monocordicamente aos ouvidos dos fiéis. Fantástico!
Mas a Igreja, na sua catolicidade, soube resistir a Taciano e os quatro evangelhos, na sua independência, foram de novo valorizados e utilizados para a leitura pública.
Eu sei que são coisas completamente diferentes aquilo que Taciano fez e aquilo que se pretende atingir com a nova tradução católica.
Sim, claro, obviamente, são coisas completamente diferentes! Mas parece-me haver algo do espírito de Taciano nesta sede de “fazer convergir”, de “harmonizar”, de “unificar”. Subjacente, parece-me haver num caso e noutro algo em comum: um certo desconforto com as divergências que emergem dos evangelhos entre si, e um desejo de produzir um texto que ao ser proclamado liturgicamente em público soe aos ouvidos dos fiéis como uma composição monocórdica, sem nenhuma nota dissonante.
Parece-me que o espírito que animou Taciano com o seu Diatessarão (desejo de uma harmonia que apague uma qualquer dissonância) continua a habitar o desiderato deste projeto episcopal: reduzir a riqueza da pluralidade dos textos dos evangelhos à pobreza da unidimensionalidade de um texto artificialmente configurado para estar ao serviço da liturgia na sua vertente de proclamação pública do Evangelho. Enfim, em vez de ser a liturgia ao serviço do Evangelho é este que tem de satisfazer as exigências daquela, de tal modo que não haja nem uma nota dissonante.
Parece-me correr-se assim um risco enorme: fazer da uniformidade exigida à nova tradução uma espécie de altar onde se imola a pluralidade.
Todos nós, católicos e protestantes, precisamos de viver uma liturgia concebida como um espaço em que a pluralidade dos Evangelhos se faça ouvir: é que sem pluralidade não há vida!
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Invade-me a mente o assim chamado, na mitologia grega, mito de Procustes, que era filho de Poseidon, e habitava à beira de uma estrada. Possuía duas camas, uma pequena, a outra grande. Oferecia guarida aos transeuntes que por ali passavam e obrigava-os a deitar-se numa das camas: aos transeuntes grandes obrigava-os a deitar-se no leito pequeno (cortando-lhes os pés para que coubessem); aos pequenos no leito grande (esticando-os com toda a força para que ocupassem todo o espaço). O bandido foi morto por Teseu.

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Há uma expressão que o apóstolo Paulo utiliza aproximadamente uma dezena de vezes nas suas cartas quando faz certas perguntas – Paulo é um mestre na retórica grega – às quais de nenhum modo se pode responder afirmativamente (sejam disso exemplos os passos de Rom 3:4; 3:6; 3:31; 7:7; 7:13; Gal 3:21). Trata-se da expressão μη γενοιτο! Que se pode traduzir por “de maneira nenhuma!”, “de modo algum!”, “nem pensar nisso!”
Que me seja permitido formular também eu uma pergunta: é, efetivamente, desiderato desta nova tradução católica dos Evangelhos obter um texto “uniforme” (p. 6) à custa do sacrifício da pluralidade dos Evangelhos? Μη γενοιτο! Que assim não seja de modo nenhum!
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Lancemos agora um olhar à p. 18.
Na 5ª linha lê-se: “procurar uma tradução que resulte de uma exegese cuidada dos textos originais.”
“Textos originais” – o que é isso? Onde é que eles estão?
As muitas centenas e centenas de manuscritos do Novo Testamento que chegaram até nós são manuscritos que apresentam aquilo que, na terminologia técnica da crítica textual, se chama “variantes”. O que é uma variante? É o mesmo versículo se apresentar com diferenças de manuscrito para manuscrito. Às vezes por erro do copista, outras vezes por outros motivos. Acontece até, por vezes, a falta de um versículo inteiro, que aparece num determinado número de manuscritos mas não aparece noutros.
O trabalho da crítica textual tem sido extremamente importante na medida em que é uma ciência que, a partir de variantes as mais diversas, procura aproximar-se o mais possível do que teria sido o hipotético texto original. É que este problema reveste-se de uma tal complexidade (não só em relação aos textos bíblicos mas também aos outros textos da Antiguidade, sejam gregos sejam latinos) que muitas vezes se pergunta se terá existido aquilo que nós queremos dizer com a palavra “original”.
Sim, acontece o mesmo com toda a literatura da Antiguidade, seja Homero, seja Platão, seja Virgílio, seja o que for. Mas a esse respeito a Bíblia conta com um número de manuscritos muito maior do que as outras literaturas. O que é uma riqueza para o trabalho da crítica textual. E não só: muitos desses manuscritos têm uma proximidade maior do que teria sido o chamado texto original. Por exemplo: do Novo Testamento temos numerosos manuscritos distantes de pouco mais de um século do que teria sido o original. De Platão, por exemplo, os manuscritos não abundam tanto e distam muitos séculos (às vezes uns 900 anos do original).
Os exegetas do Novo Testamento estão habituados a trabalhar, pois, com um texto grego que resulta de todo um trabalho científico no campo da crítica textual realizado particularmente desde o século 19 e que se prolongou por todo o século 20. Um trabalho inteiramente de algumas gerações de especialistas protestantes, até se chegar ao texto estabelecido por Nestle/Aland na sua 28ª edição.
Foi só a partir de finais do século 20 que o Magistério católico começou a reconhecer a superioridade desse texto em relação quer ao texto estabelecido pelo católico Merk quer ao texto estabelecido pelo católico Bover.
Ainda guardo algumas lembranças desses tempos de há uns sessenta anos: o texto utilizado então pela generalidade dos exegetas católicos era sobretudo o de Merk (jesuíta). Até tenho um Merk comprado nessa altura (bilingue: grego e latim) e um Bover comprado alguns anos depois (trilingue: grego, latino, espanhol)…

(Na próxima semana: Os critérios de tradução da presente edição e um breve segundo excurso autobiográfico)
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