Ensaio de Dimas Almeida (3): Critérios de tradução e anúncio do evangelho

| 31 Out 2020

O 7MARGENS publica a seguir a terceira parte do estudo do pastor presbiteriano Dimas de Almeida sobre a nova tradução da Bíblia – Os Quatro Evangelhos e os Salmos – promovida pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e publicada no ano passado.

A edição experimental desta nova versão da Bíblia em português propunha-se recolher sugestões, críticas e comentários. Dimas de Almeida aceitou para si mesmo o desafio e lançou-se à tarefa. O resultado é o que aqui fica, concretizado com o seu olhar de teólogo, exegeta e autor de várias traduções, como ficou dito na primeira parte deste texto, na qual o autor explicava o modo como leu esta nova tradução; na segunda parte, Dimas Almeida abordou o problema da pluralidade de leituras, a partir do facto de haver quatro evangelhos e não apenas um.

Nesta terceira parte, debate os critérios de tradução do grego – nomeadamente no uso das partículas – que, em alguns casos, põe em causa a própria forma do evangelho que se anuncia e a adptação qeu dele se faz na liturgia católica.

Este trabalho continuará a ser publicado semanalmente, cada sexta-feira, até 18 de Dezembro, poucos dias antes do Natal. 

 

“Os critérios de tradução da presente edição”

Auditório Paulo VI, Roma. Foto © António Marujo/7MARGENS.

 

No capítulo assim intitulado surge uma observação (p. 21) que estatui o seguinte:

“a expressão idiomática kakôs ékhein (cf. Mt 8,16), lit. ter de forma má, traduz-se por ter algum mal;”

Como assim? Surpreende-me uma tal observação. É que esta aqui chamada “expressão idiomática” inscreve-se numa exigência da sintaxe grega: o verbo ékhein (ter), quando acompanhado de um advérbio, como é aqui, passa a ter o significado de einai (ser, estar), e o advérbio é traduzido como um adjetivo. Trata-se de uma regra gramatical importante: os advérbios ou as locuções adverbiais com ékhein (ter) têm o mesmo sentido que teria eimi (ser ou estar) com o adjectivo correspondente ao advérbio.

O kakôs ékhein em causa supõe, pois, a tradução estar doente, ser doente, estar mal (cf. Mt 4:24; 8:16; 9:12; etc.). Em Actos 15:36, por exemplo, onde o pôs ékhousin implica a tradução “como estão”.

 

Lancemos agora um olhar à pág. 19

Na alínea b) escreve-se:

“No caso de repetições sistemáticas no texto grego, como o uso da conjunção kaí (e) em Mc ou do advérbio oûn (então) em Jo, apesar de serem específicos do estilo de cada evangelista, e tendo em conta o próprio processo de edição do texto antigo – a ausência de sinais de pontuação fazia de algumas destas partículas “pontuação escrita” –, optou-se por eliminar algumas destas repetições, ou por variar um pouco a sua tradução (ex.: oûn: então, ora, assim, etc.), para evitar, na proclamação e na leitura, tornar o texto demasiado marcado a este nível.”

Algumas notas minhas:

– é louvável que nesta tradução dos evangelhos se dê uma maior atenção às partículas do que se tem dado em outras traduções também católicas anteriores. Trata-se de uma questão importante, pois as partículas desempenham não poucas vezes um papel de relevo na concatenação das ideias. Contudo – exemplificá-lo-ei mais à frente quando me debruçar sobre alguns excertos dos evangelhos traduzidos – podia-se ter ido um pouco mais longe;

– tem sido em nome do princípio tão propalado por algumas gramáticas e por muitos professores de que algumas partículas gregas não tinham outra função exceto a de serem substitutos de sinais de pontuação inexistentes no grego antigo, tem sido em nome desse princípio (que aparece aqui repetido) que se criou o chavão “pontuação escrita” aplicado a essas partículas. E lá aparece ele citado a meio da p. 19: “a ausência de sinais de pontuação fazia de algumas destas partículas ‘pontuação escrita’”.

Pois bem: esse chavão pode ser muito cómodo para um tradutor que não esteja disposto a dar voltas e reviravoltas lexicais e sintáticas para acolher na sua tradução uma determinada partícula. É muito mais cómodo substituí-la por um sinal de pontuação. Pode haver, de facto, casos desesperados em que a solução seja essa. Mas isso só em desespero de causa… o que implica muita luta prévia… Só nessa circunstância uma preposição incómoda, mas importante na ilação das ideias do que se está a dizer, nos perdoará a nós a sua substituição por uma cómoda vírgula ou por um arbitrário ponto final.

É que essas pequenas palavras – para aí uma dúzia e meia – a que se dá o nome de partículas desempenham um papel primordial na concatenação das ideias, na ligação das frases, nas ilações de um raciocínio. Fazer-lhes vista grossa como se elas não estivessem lá pode comprometer o rigor do que se está a dizer.

Ascensão. Bernadette Lopez

“Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Por conseguinte, ide, fazei discípulos todos os povos, batizando-os…” Ilustração © Bernadette Lopez/Évangile et Peinture

 

Mais à frente voltarei a esta questão. Mas não resisto a dar já um exemplo.

Colhido do texto grego de Mt 28:18-19. Lá se diz (cito só uma parte das palavras de Jesus):

“Εδοθη μοι πασα εξουσια εν ουρανωι και επι της γης. Πορευθεντες ουν μαθητευσατε”

traduzido assim na nova tradução católica:

“Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Ide, fazei discípulos”

No concernente às partículas, o que é que está aqui em causa? Está em causa a tradução de uma partícula (importante!), a partícula ουν, que estabelece uma ligação entre o que Jesus diz da autoridade que lhe foi dada e o que Jesus diz como ordem de envio. Eu traduziria:

“Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Por conseguinte, ide, fazei discípulos todos os povos, batizando-os […]”

Ora, a tradução católica faz vista grossa ao ουν, (partícula importante que pede uma tradução como seja ou “por conseguinte”, ou “portanto”, ou “por isso”“), e ao fazer vista grossa rompe a relação de consequência entre o que Jesus diz de si mesmo e o envio que faz: é porque toda a autoridade lhe foi dada que ele envia. Há aqui uma ilação a manter quando se traduz. Mas isto é só um exemplo das muitas vezes em que não só esta partícula mas também outras são ignoradas.

A partícula ουν que aparece algumas centenas de vezes nos quatro evangelhos não me parece ser muito bem tratada nesta nova tradução católica: acontece por vezes ser silenciada, como aqui, e quando é traduzida é-o geralmente como um “então”. Um “então” que, frequentemente, pode não ter a força suficiente para exprimir o que pode estar em causa. E são inúmeros esses casos. Particularmente no Evangelho de João o ουν abunda, e por vezes com uma subtileza tal que exigiria ser tomada a sério…  É que o grego joanino parece-se com o autor do Quarto Evangelho: é subtil… Em João há dezenas de ουν (não são todos, obviamente) que mereciam entrar na tradução. De quanta subtileza não se revestem muitos deles!

A partícula και (e, mesmo, também) é predominantemente traduzida por e, mesmo quando às vezes implica a ideia de um também, ou exigiria ser traduzida por um mesmo.

Nunca é demais sublinhar a importância que tem essa dúzia e meia de pequenas palavras gregas a que se dá o nome de partículas. Algumas delas exigem, não poucas vezes, um laborioso processo de interpretação do texto que estamos a traduzir. Apraz-me repetir o que já disse acima: é dado um passo em frente, a esse respeito, nesta nova tradução católica dos Evangelhos – entenda-se: um passo em frente quando a comparação é feita com traduções católicas anteriores. Mas, assim me parece, podia-se ter ido um pouco mais longe. Voltarei a este tema um pouco mais à frente.

 

Lancemos agora um olhar à pág. 22
Sala Nervi, Auditório Paulo VI, Roma.

Cristo Ressuscitado, escultura de Pericle Fazzini no Auditório Paulo VI: “O ressuscitado está lá na celebração eucarística! Ontem e hoje.” Foto © António Marujo / 7MARGENS.

 

Na sétima linha esclarece-se que “Quanto aos muitos “presentes históricos” optou-se por traduzi-los pelo nosso perfeito. Exemplo: então os discípulos, aproximando-se, disseram-lhe (Mt 15:12) e não dizem-lhe (apesar do presente légousin).”

Trata-se de uma prática generalizada: raros, muito raros, são os tradutores que traduzem o presente histórico por um presente. Mas isso não me impede de dizer que em determinados textos – sejam eles de Xenofonte (um qualquer outro podia ser evocado) ou do Novo Testamento – há passos narrativos em que o presente histórico grego, ao ser traduzido em português, ganharia em força e em expressividade se o fosse pelo tempo presente português e não pelo perfeito.

Quanta força não há nos presentes históricos de Marcos! Quanta subtileza kairológica (o καιρος joanino, prodigioso proclamador de “a hora vem e é agora” Jo 4:23) não há nos presentes históricos de João e eles são multidão! Vd p. ex. João 21:1-23: em 23 versículos o presente histórico irrompe 25 vezes. É que lá, nas margens do mar de Tiberíades, o Cristo Ressuscitado está presente! O Crucificado é o Ressuscitado e o Ressuscitado é o Crucificado. Como é que, historicamente, podem falar dele cinquenta ou sessenta anos depois (é só por volta dos anos oitenta ou noventa que o Evangelho de João toma a sua forma final) sem recorrer ao presente histórico? O Cristo ressuscitado está lá na celebração eucarística! Ontem e hoje.

Há já não poucos anos que aos domingos, na minha casa, me integro na missa transmitida pela televisão. Raro é o domingo em que isso não acontece. É uma das minhas maneiras de, ecumenicamente, viver a catolicidade/universalidade da Igreja. E gosto. Sinto-me a participar na liturgia, em toda ela. Há, contudo, um momento em que julgo haver um certo desacerto: raro é o domingo em que a leitura do Evangelho não seja precedida pelas palavras: “Naquele tempo Jesus disse …”

Como assim? “Naquele tempo Jesus disse…”? Mas então a proclamação do Evangelho não supõe um Jesus nosso contemporâneo? Não é essa contemporaneidade que é proclamada de uma maneira única na celebração eucarística? Então não é nessa perspetiva que a contemporaneidade de Jesus é entendida? Parece que esquecemos isto: a proclamação do Evangelho supõe uma contemporaneidade de Jesus vivida como uma coisa única que se apresenta a nós – por mais distante que seja a sua origem – como uma presença plena na sua representação!

Não é “Naquele tempo Jesus disse…”. É hoje.

Ora, quando se trata do trabalho de traduzir os evangelhos – onde abunda o presente histórico, particularmente em Marcos e em João, não obstante os evangelistas viverem cronologicamente quarenta, cinquenta, ou sessenta anos depois daquilo que narram – por que motivo nos incomoda o presente histórico da contemporaneidade e fazemos-lhe vista grossa? Não compreendo.

 

Um breve segundo excurso autobiográfico
Escola de Atenas. Rafael

A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio, com Aristóteles e Platão ao centro: “Ainda conservo, já com as marcas do tempo, esse Phédon”, de Platão.

 

A problemática das partículas – e não só – leva-me ao que vou dizer a seguir. O teor autobiográfico que o caracteriza resulta da necessidade de explicitação das minhas palavras.

Desde há já não poucas dezenas de anos que luto com o grego antigo. Estudante ainda, passava horas no que era antigamente a Livraria Sá da Costa: o meu fascínio eram aquelas estantes que, há uns sessenta anos, ficavam localizadas numa espécie de um curto corredor entre a grande sala de entrada e a outra sala lá no interior. Era aí que estavam expostos alguns volumes das famosas Les Belles Lettres.

Meu Deus! O fascínio daquilo! Aquelas edições bilingues! Aquele grego impenetrável ainda para mim! Até que um dia me empenhei financeiramente e comprei o volume bilingue (tradução do famoso Léon Robin) do Phédon de Platon (inscrevi lá a data da compra: Agosto de 1964). Ainda conservo, já com as marcas do tempo, esse Phédon. Nesse dia, assim que cheguei a casa vindo da Sá da Costa, a primeira coisa que fiz depois de desembrulhar o Phédon foi cheirá-lo. Sim, literalmente: cheirá-lo!

Eram os tempos heroicos das Les Belles Lettres. Aquelas traduções! O prestígio de que gozavam nas universidades! Durante dezenas de anos as Les Belles Lettres com a sua mais de centena de obras publicadas foram uma referência essencial para os estudantes de filosofia e de história, e de muitas outras coisas.

Ora desde há algum tempo novas traduções têm aparecido em alguns países. Vou evocar especialmente a França por ter sido ela, há um século, a pátria das Belles Lettres.

Desde há pelo menos uns trinta anos têm aparecido em francês traduções inéditas que, incontestavelmente, nos proporcionam avanços em relação às Belles Lettres. Quer Platão quer Aristóteles têm encontrado numa plêiade de tradutores e tradutoras de língua francesa bons artífices na tarefa de traduzir. Tenho comprado não poucas dessas novas traduções (já não na velha Sá da Costa…) e tenho constatado nelas um maior rigor em relação ao texto grego. O que é de louvar.

Ora, do que é feito esse maior rigor? A partir da minha leitura penso poder dizer-se que os avanços registados são feitos de coisas como:

– o respeito, na medida do possível, da ordem das palavras em grego, mesmo quando isso belisca a elegância;

– o desejo de se ser claro, preciso e simples;

– um esforço para pôr em evidência a importância relativa que tem tal ou tal membro de frase no original;

– uma tendência clara: opta-se pela precisão mesmo quando esta convive mal com a elegância;

– um ter em grande conta as partículas que quase sempre são traduzidas, o que permite preservar o melhor possível a articulação da narrativa e da argumentação. A questão da importância das partículas é sempre evocada por cada tradutor.

Uma das tradutoras, que é também filósofa, di-lo nestes termos: “[…] En traduisant systématiquement les particules qui jouent un rôle décisif dans la cohérence et l’enchainement d’un argumente ou d’un échange.” (Monique Canto-Sperber, Platon, Gorgias, GF Flammarion, Paris, 1993).

Um dos tradutores, o reconhecido helenista Luc Brisson, sublinha: “Enfin, j’ai tenu le plus grand compte des particules, que j’ai voulu traduire dans la plupart des cas; ainsi se trouve préservée au mieux l’articulation du récit et de l’argumentation.” (Luc Brisson, Platon, Le Banquet, GF Flammarion, Paris, 2004)

Sim, as assim chamadas, na gramática grega, partículas – uma dúzia e meia de pequenas palavras – desempenham na sintaxe grega uma função muito importante.

Há-as a conectar uma expressão à expressão precedente, uma frase a outra frase, um período ao período anterior; há-as a qualificar uma palavra, uma frase, uma oração; há-as a “colorir” uma palavra, frase ou oração.

Desempenham assim papéis importantes. Não se justifica, portanto, entendê-las meramente (a não ser, é a minha experiência, lá uma vez ou outra) como um substituto da pontuação (inexistente no grego antigo) como por vezes se acena (hoje muito menos que no passado).

Não se pode, pois, no trabalho de traduzir, olhar olimpicamente para elas e ostracizá-las, como se elas não fossem importantes.

 

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