O 7MARGENS publica hoje o sétimo capítulo do estudo do pastor presbiteriano Dimas de Almeida sobre a nova tradução da Bíblia – Os Quatro Evangelhos e os Salmos –publicada no ano passado pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), cuja edição experimental pede sugestões, críticas e comentários.
Dimas de Almeida aceitou para si mesmo o desafio e o resultado concretiza-se neste trabalho que temos vindo a publicar cada sexta-feira, até 18 de Dezembro, em que os títulos de cada capítulo são da responsabilidade do 7MARGENS.
Com o seu olhar de teólogo, exegeta e autor de várias traduções, Dimas Almeida explicou, na primeira parte deste texto, o modo como leu esta nova tradução; na segunda parte, abordou o problema da pluralidade de leituras, a partir do facto de haver quatro evangelhos e não apenas um; na terceira, debateu os critérios de tradução e a relação disso com o anúncio do evangelho; o quarto capítulo iniciou a abordagem da tradução do Evangelho segundo Mateus e propôs algumas traduções alternativas – uma delas, a do Pai-Nosso; no quinto capítulo, ainda dedicado ao texto de Mateus, debateu, entre outros detalhes, a questão do chronos e do kairós, bem como os messianismos judaicos; no sexto capítulo, falou-se do Evangelho segundo Marcos e do efeito perturbador que o seu prólogo pode ter.
Neste sétimo capítulo, inicia-se a abordagem do Evangelho Segundo Lucas, que se concluirá na próxima semana.

Lucas, visto por Andrea Mantegna (c. 1431-1506): Polittico di S. Luca (pormenor); Pinacoteca de Brera (Milão, Itália): “Lucas é o único que nos dá a saber o modo como trabalhou para elaborar a sua obra.”
INTRODUÇÃO
Como é sabido, há neste evangelho um prólogo (1:1-4) que se reveste de um particular interesse: dos quatro evangelistas Lucas é o único que nos dá a saber o modo como trabalhou para elaborar a sua obra. Quão importante isso é!
Ora, é pena que desse prólogo, na Introdução [da nova tradução da Conferência Episcopal], se diga apenas: “[…] a novidade maior prende-se com o prólogo (1:1-4), pois é o único evangelho a começar deste modo”. Penso que se diz muito pouco tendo em conta o muito de que ele, prólogo, está cheio. A sucinta nota de pé-de-página (p. 177) é, assim me parece, manifestamente insuficiente.
Como já teci algumas considerações sobre a importância desse prólogo para a problemática do modo como os evangelhos se formaram (vd. a primeira parte deste meu trabalho), não me vou repetir aqui.
Vou cingir-me aqui a uma questão que tem a ver com o último versículo desse prólogo. Efetivamente o v. 4, em consonância com os 3 anteriores, dá-nos a ver claramente um Lucas que fala do horizonte em que ele se move como autor de mais uma narrativa a acrescentar às já existentes: um horizonte do qual está completamente ausente o princípio de uma inspiração verbal. Nenhum anjo Gabriel lhe dita aos ouvidos o que ele deve escrever.
Aqui relembro, repetindo-a, a tradução que fiz desse importante prólogo:
1 “Já que muitos meteram mãos à obra ao compor uma narrativa acerca dos eventos consumados entre nós,
2 segundo no-lo transmitiram aqueles que desde o princípio foram testemunhas oculares e servidores da palavra,
3 também a mim, investigador meticuloso de tudo desde as origens, me pareceu uma boa coisa narrá-los ordenadamente para ti, mui excelente Teófilo,
4 a fim de que reconheças a solidez das coisas acerca das quais foste instruído”. (minha tradução)
O v. 4 dá-nos a ver a intenção de Lucas ao incluir Teófilo (um personagem de que não sabemos nada) no horizonte do seu evangelho. É um versículo que começa com uma proposição subordinada (a conjunção ινα, “a fim de que”, abre o caminho) que exprime o objetivo do autor: levar Teófilo a tomar consciência de uma coisa fundamental: não sendo a narrativa um procedimento retórico estranho ao conteúdo que veicula, ele, Teófilo, é exortado a “reconhecer a solidez das coisas acerca das quais foi instruído”.

Lucas 1:4
texto grego
4 ἵνα ἐπιγνῷς περὶ ὧν κατηχήθης λόγων τὴν ἀσφάλειαν.
tradução católica
4 para que reconheças a solidez das palavras com que foste instruído.
eu traduziria
“a fim de que reconheças a solidez das coisas acerca das quais foste instruído”.
Algumas notas:
1) A preposição περι (acerca de, sobre) aparece duas vezes neste prólogo de Lucas. Na tradução católica é tida em conta apenas uma vez, a primeira. Porquê só a primeira? Traduções há em que nem uma única vez aparece traduzida. Na minha perspetiva ela devia ser vertida as duas vezes, não apenas no versículo 1 mas também aqui neste versículo 4. Aos meus olhos ela cumpre um papel igualmente importante nos dois versículos. (No concernente ao v. 1 não vou aqui repetir o que já disse antes, na primeira parte deste meu trabalho).
2) Vamos supor, pois, que a nova tradução católica tratava o περι do v. 4 como tratou o περι do v. 1 (acerca de). Sem o περι a tradução que ela nos oferece é: “para que reconheças a solidez das palavras com que foste instruído”; com o περι, a tradução teria sido: “para que reconheças a solidez das palavras acerca das quais foste instruído”. Seria exatamente o mesmo? Não me parece que o seja. Quando se ostraciza o περι a “solidez” evocada é a das palavras do catequista; quando o περι não é ostracizado a “solidez” evocada é a das “coisas” para as quais a catequese remete. A catequese está ao serviço dessas outras “coisas” sem se confundir com elas.
3) A minha tradução “a fim de que reconheças a solidez das coisas acerca das quais foste instruído” verte a palavra λογος (uma fantástica palavra grega que pode dar lugar, quando traduzida, a um sem número de vocábulos) verte a palavra logos por coisa (aqui um plural “coisas”).
Assim vertida permite-nos compreender melhor isto: não confundir essas “coisas” com a narrativa (o ensino) que acerca delas podemos elaborar. A solidez de que aqui se fala é a solidez dessas “coisas”: a narrativa está ao serviço delas.
4) Há, contudo, uma estreita ligação entre essa narrativa e as “coisas” de que ela fala: é que a narrativa não é um procedimento retórico estranho ao conteúdo que veicula: há uma solidariedade indissolúvel entre essas “coisas” e a narrativa ou, dito de outro modo, entre a confissão de fé e a narrativa. A tradução que proponho não faz tábua rasa dessa solidariedade, pois solidariedade não é “con-fusão” (a fusão de uma coisa com a outra).
5) Paul Ricoeur, que com a sua vasta obra tanto tem ajudado tantos a entrar no campo da hermenêutica filosófica e bíblica, num dos seus ensaios dá-nos a pensar estas palavras:
“Si la Bible peut être dite révélée, cela doit être dit de la ‘chose’ qu’elle dit; de l’être nouveau qu’elle déploie. J’oserais dire alors que la Bible est révélée dans la mesure où l’être nouveau dont il s’agit est lui-même révélant à l’égard du monde, de la rélité tout entière, y compris mon existence et mon histoire.” (Paul Ricoeur, “Herméneutique philosophique et biblique”, in Du texte à l’action, Essais d’herméneutique, II, pp. 120-133)
Eu traduziria assim o francês de Ricoeur:
“Se da Bíblia se pode dizer ser ela revelada, isso deve ser dito da ‘coisa’ que ela diz; do ser novo que ela manifesta. Eu ousaria dizer então que a Bíblia é revelada na medida em que o ser novo de que se trata é ele mesmo revelante no que diz respeito ao mundo, à realidade toda ela, incluídas nisso a minha existência e a minha história.”
6) Ao longo dos meus mais de 50 anos de aprendiz de exegese ainda nunca os meus olhos foram cair sobre uma exegese semelhante a esta minha. Mas não haverá um grão de coerência exegético-hermenêutica no que eu defendo aqui quando se tem em conta este texto grego de Lucas? Os primeiros quatro versículos do evangelho deste Lucas foram por ele escritos com um requinte helénico distinto! Cada palavra pesa nesta sua prosa.
Permitam-me que repita: nestes quatro versículos que compõem o prólogo deste evangelho cada palavra conta!
Lucas 1:37
Texto grego
37 ὅτι οὐκ ἀδυνατήσει παρὰ τοῦ θεοῦ πᾶν ῥῆμα.
Tradução católica
37 porque nenhuma palavra que vem de Deus é impossível.
Eu traduziria assim
“Porque, provinda de Deus nenhuma palavra ficará impotente”
Algumas notas
1) Tem sido dominante o preceito de que em Lc 1:37 o verbo αδυνατεω (ser incapaz) cumpre funções de verbo impessoal, portanto sem sujeito. A generalidade dos tradutores tem ficado assim prisioneira desse preceito.
Ora, a meus olhos, esse não é um preceito que tenha de, inflexivelmente, ser seguido.
Congratulo-me com esta nova tradução católica por não o ter seguido ao reconhecer o que me parece óbvio: que o verbo αδυνατεω (ser impotente) tem um sujeito que é παν ρημα (toda a palavra)
2) As traduções habituais (sejam elas católicas, protestantes, ecuménicas), assim me parece, tratam o verbo αδυνατεω (ser impotente) como um verbo impessoal, como se fosse um αδυνατει (esta, sim, é uma forma impessoal). Daí a fatalidade de todas essas traduções: “Porque para Deus nada é impossível.”
3) Mas será isso que o texto grego diz? O verbo αδυνατεω (que no texto grego está no futuro) não é aqui um simples αδυνατει impessoal. Tem aqui um sujeito, παν ρημα. E isto foi tido em conta nesta nova tradução católica. Muito bem.
Só que, só que… parece-me necessário avançar um pouco mais.
Há em grego o verbo δυνατεω, ser potente. Ora, o verbo que Lucas emprega tem o sentido oposto, ser impotente, porque tem o alfa privativo, o que dá αδυνατεω (ser impotente).
Estamos aqui a pisar um campo lexical e semântico que não invalida a tradução “ser possível” ou “ser impossível”, mas que nos permite, assim julgo, avançar um pouco.
Estamos aqui a pisar o terreno da δυναμις (potência, poder), que é o mesmo campo do verbo δυναμαι (ter a capacidade de, ser forte o suficiente), e igualmente do verbo δυνατεω (ser poderoso), e ainda do verbo δυναμοω (fortificar); etc.
Isto é, mais do que o possível/impossível, temos aqui o potente/impotente.
4) Assim, podíamos até pegar na nova tradução católica “porque nenhuma palavra que vem de Deus é impossível” e alterar apenas a palavra final: em vez de “impossível” ficaria “impotente”.
5) Eu, por mim, prefiro o campo da potência/impotência ao da possibilidade/impossibilidade.
E é assim que às vezes traduzo:
“porque toda a palavra que vem de Deus não será impotente”, outras vezes
“porque não há uma palavra que venha de Deus e fique impotente”, outras vezes
como sugeri no início: “porque, provinda de Deus nenhuma palavra ficará impotente”.

Lucas 1:67-71
Texto grego
67 Καὶ Ζαχαρίας ὁ πατὴρ αὐτοῦ ἐπλήσθη πνεύματος ἁγίου καὶ ἐπροφήτευσεν λέγων·
68 Εὐλογητὸς κύριος ὁ θεὸς τοῦ Ἰσραήλ,
ὅτι ἐπεσκέψατο καὶ ἐποίησεν λύτρωσιν τῷ λαῷ αὐτοῦ,
69 καὶ ἤγειρεν κέρας σωτηρίας ἡμῖν
ἐν οἴκῳ Δαυὶδ παιδὸς αὐτοῦ,
70 καθὼς ἐλάλησεν διὰ στόματος τῶν ἁγίων ἀπ’ αἰῶνος προφητῶν αὐτοῦ,
71 σωτηρίαν ἐξ ἐχθρῶν ἡμῶν καὶ ἐκ χειρὸς πάντων τῶν μισούντων ἡμᾶς,
Nova tradução católica
67 Zacarias, seu pai, ficou cheio do Espírito Santo e profetizou, dizendo[31]:
68 “Bendito o Senhor, Deus de Israel,
porque visitou e redimiu o seu povo,
69 e nos suscitou uma força de salvação[32]
na casa de David, seu servo –
70 como afirmou desde sempre
pela boca dos seus santos profetas –
71 salvação dos nossos inimigos
e da mão de todos os que nos odeiam,
Eu traduziria
67 E Zacarias, o pai dele, foi cheio do Espírito Santo e profetizou dizendo:
68 “Bendito o Senhor, o Deus de Israel, porque visitou o seu povo e levou-lhe redenção
69 e pôs de pé para nós, na casa de David seu servo, uma salvação poderosa
70 – tal como falou pela boca dos seus santos profetas de outrora –
71 salvação que nos salva dos nossos inimigos e da mão de todos aqueles que nos odeiam”
Duas notas sobre o v. 71
1) A tradução do v. 71 parece-me ambígua: a salvação de que se fala é a nossa ou é a dos nossos inimigos?
O texto grego tem a preposição εκ a reger o par de genitivos εχθρων ημων (nossos inimigos). A ambiguidade da tradução reside no facto de ter entendido a preposição εκ como se ela estivesse a reger um genitivo subjectivo (a salvação é a deles) e não um genitivo de separação (a salvação é a nossa) que em inglês se traduziria por from. O nosso de tanto pode admitir o from como o of.
Por vezes um tradutor é confrontado com particularidades desta natureza suscitadas pelo genitivo que levam a hesitações: trata-se de um genitivo subjetivo ou objetivo? (mas em português também se pode configurar algo semelhante: “o amor de Deus” é o amor com que amamos a Deus ou é o amor com que somos amados por Deus? (mas também pode ser as duas coisas ao mesmo tempo…) Ai, esta coisa do genitivo objetivo, do genitivo subjetivo, do genitivo de separação…
2) Ora, neste v. 71 eu não hesitaria em tratar o genitivo como um genitivo de separação: a preposição εκ tem suficiente força para caracterizar este genitivo desse modo, pois supõe naturalmente “fora de”, “provindo de” (o from inglês seria uma preciosa ajuda).
Lucas 2:14

Texto grego
14 δόξα ἐν ὑψίστοις θεῷ
καὶ ἐπὶ γῆς εἰρήνη
ἐν ἀνθρώποις εὐδοκίας.
Nova tradução católica
14 “Glória a Deus nas alturas
e paz[8] na terra
entre os homens de boa vontade[9]“.
Eu traduziria
14 “Nas alturas glória a Deus,
e na terra paz entre os homens destinatários da benevolência divina!”
Algumas notas
1) Raríssimas são as traduções que não afinam pelo mesmo diapasão desta nova tradução católica. E lá temos o “Glória a Deus nas alturas e paz na terra entre os homens de boa vontade.”
2) Qual a leitura que podemos fazer de um texto grego (o de Lucas) assim traduzido?
Esta: que o grandioso acontecimento do Natal – “Nasceu-vos hoje, na cidade de David, um salvador, que é Cristo Senhor” v.11 – transporta consigo a glória a Deus nas alturas e a paz na terra para “os homens de boa vontade”.
Isto é: a paz não é para todos, é apenas para aqueles que, segundo um determinado padrão moral, são considerados “homens de boa vontade”.
3) Pois bem, se tivéssemos de ler o texto grego desse modo, teríamos o inumerável coro angélico a proclamar uma mensagem moralista, manifestação de um Deus que, antropologicamente, divide a humanidade em duas: de um lado os homens de “boa vontade”, do outro lado, obviamente, os homens de “má vontade”. Isto é, a grandiosa boa nova do Natal – a paz-shalom – destina-se apenas àqueles, não a estes: aos “homens de boa vontade” a paz, aos outros sabe-se lá o quê.
E fazemos assim do coro angélico – proclamador de uma boa nova para todos – um frequentador de uma escola de moral onde, a partir de um determinado conceito de boa vontade humana, se legisla para premiar os bons e excluir os que não o são. Por outras palavras: os anjos – esses mensageiros da reconciliação que liga o céu à terra – estariam a proclamar o Natal de um Deus reduzido às dimensões que são as dos nossos conceitos definidores do que é a “boa vontade” e a “má vontade”. Espantoso!
4) Mas será que o texto grego de Lucas diz isso? Vejamo-lo.
A palavra grega que habitualmente é traduzida por “boa vontade” é ευδοκια. Trata-se de uma palavra que aparece unicamente três vezes nos evangelhos (Mt 11:26; Lc 2:14; 10:21). E nas três vezes a “boa vontade” de que se trata é sempre da “boa vontade” de Deus e não da nossa. Lucas, ao proclamar o Natal não está a falar de outra ευδοκια senão da de Deus: ele pôs a palavra no genitivo que, no nosso versículo (tal como nos outros versículos acima evocados) não é um genitivo de homem mas sim um genitivo de Deus. A “boa vontade” é a dele, não a nossa.
Se Lucas tivesse querido exprimir essa ideia de “boa vontade” de homem tinha à sua disposição uma outra palavra (utilizada por ele na parábola do Bom Samaritano, Lc 10:37), a palavra ελεος bem expressiva de “boa vontade”, de “misericórdia”, de “benevolência”. Não a utilizou aqui. É que ele vê o Natal não como uma filantropia humana mas sim divina.
5) Sim, uma filantropia divina! Ele é o Deus que, no mistério do Natal, se manifesta cosmicamente, e cuja paz se dirige à humanidade inteira e não apenas a uma parte dela.
Dito de outro modo: a paz proclamada no Natal não exclui mas inclui, não sendo de nenhum modo uma espécie de recompensa moral dada como um prémio aos virtuosamente possuidores de uma “boa vontade”.
6) O mistério do Natal é extraordinariamente proclamado no evangelho segundo João: lá se diz que “O Logos [a Palavra] fez-se carne e acampou entre nós.”
Também em João – ainda que num registo diferente do de Lucas – o mistério do Natal não é um prémio dado à virtude, mas sim a emergência da eternidade no tempo. O tempo, o nosso tempo – o χρονος – é atravessado por um outro tipo de tempo – o καιρος – o momento privilegiado para alguma coisa, qual tempo sem tempo.
7) O contexto literário em que Lucas inscreve a “glória a Deus nas alturas” e a “paz na terra” daí decorrente é também este mundo que é tempo: o palco da glória de Deus em Lucas não é o Templo, símbolo do espaço sagrado, mas sim o mundo profano dos pastores, ritualmente impuros.
Imediatamente antes da proclamação “Glória a Deus nas alturas”, é-nos dito no v.13 que “subitamente juntou-se ao anjo uma multidão celeste”. Esse “subitamente” acentua o milagre.
A palavra grega para “subitamente” é o advérbio εξαιφνης (nesta tradução católica traduzido por “de imediato”, que me parece um pouco fraco): é que o advérbio grego transporta consigo a ideia do “inesperado”, “do repentino”, do “súbito”.
O texto de Lucas sublinha, pois, isto: subitamente, inesperadamente os pastores assistem à liturgia celeste celebrante da glória de Deus: uma glória tão pouco concentrada em si mesma que se difunde na secularidade do mundo e toma aqui forma entre os pastores: eles, declarados em nome da religião ritualmente impuros, estão entre os destinatários da paz que acompanha a glória do Deus que quer ser Deus connosco.
Sublinhemo-lo pois: em Lucas tanto o substantivo εθδοκια (benevolência) como o verbo da mesma família εθδοκεω (ser benevolente, misericordioso, comprazer-se) exprimem sempre a ideia da vontade divina de salvação.
8) Qumran, com os seus Manuscritos do Mar Morto, dá-nos aqui apoio exegético. Com efeito, no mesmo comprimento de onda vibram os seus textos quando se trata deste tema (vd. como exemplos alguns passos, quer nos Salmos de Ação de Graças, quer na Regra da Comunidade, 1QH 4:32-33; 1 QS 8:6,8): também nesses textos, quando se trata do tema da “benevolência” ela nunca é a do homem mas a de Deus. É um acto da graça de Deus. Antes de tudo o mais está o ato de Deus: a graça divina precede a decisão do homem. E isto já no Antigo Testamento.
Que Qumran, com os seus Manuscritos, e já antes de Qumran o Antigo Testamento, nos ajudem a corrigir a nossa catequese (católica e protestante) para a qual o Velho Testamento é apenas o proclamador da Lei (entendida esta apenas como os mandamentos).
Há que, inequivocamente, afirmá-lo: o Deus do Antigo Testamento é o mesmo Deus do Novo Testamento. É o Deus de Jesus.
Lucas 2:41-43

Texto grego
41 Καὶ ἐπορεύοντο οἱ γονεῖς αὐτοῦ κατ’ ἔτος εἰς Ἰερουσαλὴμ τῇ ἑορτῇ τοῦ πάσχα.
42 Καὶ ὅτε ἐγένετο ἐτῶν δώδεκα, ἀναβαινόντων αὐτῶν κατὰ τὸ ἔθος τῆς ἑορτῆς
43 καὶ τελειωσάντων τὰς ἡμέρας, ἐν τῷ ὑποστρέφειν αὐτοὺς ὑπέμεινεν Ἰησοῦς ὁ παῖς ἐν Ἰερουσαλήμ, καὶ οὐκ ἔγνωσαν οἱ γονεῖς αὐτοῦ.
Nova tradução católica
41 Os seus pais iam todos os anos a Jerusalém[24] para a festa da Páscoa 42e, quando fez doze anos[25], eles subiram até lá segundo o costume da festa. 43E, completados os dias, quando regressavam a casa, o menino[26] Jesus ficou em Jerusalém sem que os seus pais soubessem.
Eu traduziria
41 E ano após ano os pais dele iam a Jerusalém para a festa da Páscoa.
42 E quando ele fez doze anos, subindo eles segundo o costume da festa,
43 e tendo-se cumprido os dias, no regresso deles, o rapaz Jesus quedou-se em Jerusalém. E os pais dele não souberam.
Uma observação
v. 43: há uma nota de pé-de-página relativa a este versículo que é esclarecedora mas que não é respeitada na tradução. Porquê?
Efetivamente, no léxico grego temos a palavra παιδιον que designa uma jovem criança (um infante);
e temos também παις que designa um jovem rapaz e que é a palavra aplicada a Jesus nos seus doze anos: há que traduzir, pois, “o rapaz Jesus” e não “o menino Jesus”. Ora, só raríssimas traduções o fazem.
Será que “o menino Jesus” nunca cresceu?
Lucas 4:1-2
Texto grego
1 Ἰησοῦς δὲ πλήρης πνεύματος ἁγίου ὑπέστρεψεν ἀπὸ τοῦ Ἰορδάνου καὶ ἤγετο ἐν τῷ πνεύματι ἐν τῇ ἐρήμῳ
2 ἡμέρας τεσσεράκοντα πειραζόμενος ὑπὸ τοῦ διαβόλου. Καὶ οὐκ ἔφαγεν οὐδὲν ἐν ταῖς ἡμέραις ἐκείναις καὶ συντελεσθεισῶν αὐτῶν ἐπείνασεν.
Nova tradução católica
1 Jesus, cheio do Espírito Santo[1], voltou do Jordão e era conduzido no Espírito pelo deserto, 2sendo tentado pelo Diabo durante quarenta dias[2]. Não comeu nada nesses dias e, quando eles terminaram, sentiu fome.
Eu traduziria
1 E Jesus, cheio do Espírito Santo, regressou do Jordão e, no deserto, era levado pelo Espírito e tentado pelo
2 diabo quarenta dias.
E não comeu nada naqueles dias,
pelo que, tendo-se esses dias cumprido, teve fome.
Algumas notas

1) Há que fazer emergir na tradução a concomitância das duas coisas: “era levado pelo Espírito” e “tentado pelo diabo”. Com efeito, as duas coisas são simultâneas.
É que o particípio πειραζομενος (sendo tentado) é um particípio presente e, como tal, indicia uma ação em simultaneidade com a ação do verbo principal ηγετο (era levado) um imperfeito que, tal como o particípio, está na voz passiva.
2) Ora, o que é que nos diz esta nova tradução católica? Diz-nos que é o deserto o instrumento que conduz Jesus no Espírito. Isto é: entende o primeiro εν como locativo e o segundo como instrumental, quando é precisamente o contrário.
Eu julgo perceber o que terá levado a uma tal tradução: o desejo de diminuir o mais possível a “responsabilidade” do Espírito na tentação de Jesus. Parte-se do princípio de que o Espírito divino não pode levar Jesus à tentação.
Eu não sei se pode ou não. Leio contudo, por exemplo em Marcos, que na sequência do batismo de Jesus “imediatamente o Espírito o expele para o deserto, e no deserto quarenta dias a ser tentado por satanás” (Mc 1:12-13).
3) N.B.: no v. 1 o imperfeito está na voz passiva “era levado” e o εν é instrumental “pelo”
(vd. Blass / Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature, p. 117 , par. 219 dedicado ao εν instrumental)
Lucas 4:20-24

Texto grego
20 καὶ πτύξας τὸ βιβλίον ἀποδοὺς τῷ ὑπηρέτῃ ἐκάθισεν· καὶ πάντων οἱ ὀφθαλμοὶ ἐν τῇ συναγωγῇ ἦσαν ἀτενίζοντες αὐτῷ.
21 ἤρξατο δὲ λέγειν πρὸς αὐτοὺς ὅτι σήμερον πεπλήρωται ἡ γραφὴ αὕτη ἐν τοῖς ὠσὶν ὑμῶν.
22 Καὶ πάντες ἐμαρτύρουν αὐτῷ καὶ ἐθαύμαζον ἐπὶ τοῖς λόγοις τῆς χάριτος τοῖς ἐκπορευομένοις ἐκ τοῦ στόματος αὐτοῦ καὶ ἔλεγον· οὐχὶ υἱός ἐστιν Ἰωσὴφ οὗτος;
23 καὶ εἶπεν πρὸς αὐτούς· πάντως ἐρεῖτέ μοι τὴν παραβολὴν ταύτην· ἰατρέ, θεράπευσον σεαυτόν· ὅσα ἠκούσαμεν γενόμενα εἰς τὴν Καφαρναοὺμ ποίησον καὶ ὧδε ἐν τῇ πατρίδι σου.
24 εἶπεν δέ· ἀμὴν λέγω ὑμῖν ὅτι οὐδεὶς προφήτης δεκτός ἐστιν ἐν τῇ πατρίδι αὐτοῦ.
Nova tradução católica
20Depois de enrolar o livro e de o devolver ao ajudante, sentou-se. Os olhos de todos na sinagoga estavam fixos nele. 21Começou, então, a dizer-lhes: “Hoje[10] aos vossos ouvidos cumpriu-se esta escritura”.
22E todos davam testemunho acerca dele, admiravam-se com as palavras de graça que saíam da sua boca e diziam: “Não é este o filho de José?”. 23Disse-lhes, então: “Certamente me direis este provérbio[11]: “Médico, cura-te a ti mesmo”. O que ouvimos dizer que aconteceu em Cafarnaum, fá-lo também aqui na tua terra natal”[12]. 24E disse: “Amen vos digo: nenhum profeta é aceite[13] na sua terra natal.
Eu traduziria
20 E depois de ter enrolado o livro e de o ter devolvido ao ajudante, sentou-se.
E os olhos de todos na sinagoga, olhando intensamente, estavam postos nele.
21 E começou a dizer-lhes:
“Hoje está cumprida esta Escritura que ecoou nos vossos ouvidos!”
22 E todos testemunhavam contra ele: estavam escandalizados com as palavras
relativas à graça que saiam da sua boca. E diziam:
“Não é este filho de José?”
23 E ele disse-lhes:
“Certamente lançar-me-eis ao rosto este adágio:
“Médico, cura-te a ti mesmo!” e
“Todas as coisas que ouvimos feitas em Cafarnaum,
fá-las também aqui na tua pátria!”
24 E ele disse: “Amen vo-lo digo: ninguém é um profeta bem-vindo na sua pátria.”
Algumas notas
1) O texto continua e sabemos como termina: intentam matar Jesus lançando-o do cimo do monte em que a cidade deles estava edificada.
Do que sabemos pelos evangelhos no concernente às relações entre Jesus e Nazaré, podemos dizer: a mensagem de Jesus é rejeitada. E com a rejeição da mensagem ocorre também a rejeição dele: ele é um rejeitado na sua terra.
2) Ora, a narrativa dessa rejeição que nos é feita por Lucas neste passo do seu evangelho, quando a lemos na generalidade das traduções – eu digo “generalidade” para não dizer todas, pois todas as que conheço, sejam elas católicas, sejam elas protestantes, sejam elas anglicanas, sejam elas feitas por tradutores que se dizem sem confissão religiosa, todas elas afinam pelo mesmo diapasão – a generalidade das traduções, dizia eu, lançam-nos no desconcerto: não nos dão nenhuma ajuda para compreendermos a mudança brusca e sem motivo na atitude do auditório na sinagoga onde a cena se desenrola.
É que, nessas traduções, o auditório começa por nos ser descrito entusiasmado “com as palavras de graça que saíam da sua boca”, e subitamente, sem sabermos porquê, passa à hostilidade.
3) Ora, o v. 22 é o lugar onde essa mudança brusca ocorre. E se ele é traduzido como habitualmente, essa mudança não se compreende.
De facto, surpreende que imediatamente a seguir às palavras (sic nessas traduções): “E todos davam testemunho acerca dele, admiravam-se com as palavras de graça que saiam da sua boca”, surpreende que o texto acrescente “e eles diziam: não é este filho de José?”
Surpreendente! Por que motivo se passa bruscamente do elevado elogio ao ataque ad hominem?
Mas será que o grego desse v. 22 tem de ser traduzido do modo estandardizado como o é? Alinhavo a seguir alguns pontos, procurando com eles fundamentar a minha tradução.
4) Sendo o v. 22 o passo onde a questão emerge, por aí procuro começar.
Impõe-se-nos, assim, dilucidar o que está em causa com o importante verbo μαρτυρεω (testemunhar) que aparece nesse v. 22.
Efetivamente, as primeiras quatro palavras do versículo podem ser fonte de equívoco: é que o verbo μαρτυρεω (testemunhar), quando rege um dativo (αυτωι) como aqui, tanto pode ser entendido como “testemunhar a favor de” como “testemunhar contra”. Se o entendemos como “testemunhar a favor de” (o modo estandardizado de ser traduzido), torna-se inexplicável a brusca e inopinada mudança de humor do auditório.
5) Quanto não tenho ficado a dever ao longo de dezenas de anos (já não poucas) ao clássico Blass/Debrunner (essa indispensável, trabalhosa, exaustiva gramática do grego do Novo Testamento que já evoquei numa outra altura deste meu trabalho)!
A ela podemos recorrer para que alguma luz seja lançada sobre esta questão que aqui nos ocupa.
Com efeito, ela aborda esta problemática, e sobre ela se pronuncia. Cito-a:
“The dative of advantage and disadvantage: (dativus commodi et incommodi) with various verbs serves to designate the person whose interest is affected” – e a seguir são citados numerosos exemplos.
Isto é, há um dativus commodi que quando acompanhado por μαρτυρεω implica “testemunhar a favor de”, e há um dativus incommodi que implica “testemunhar contra”.
A gramática Blass / Debrunner é uma mina inesgotável. Mas dá muito trabalho.
6) Joachim Jeremias, um luterano do séc. XX, a quem a exegese do Novo Testamento – praticada por católicos e protestantes – tanto ficou a dever, defensor do dativus incommodi neste v. 22, também me ajudou muito na dilucidação da problemática exegética inerente a esta questão. No seu Jésus et les païens (1956), pp 39-40, diz-nos:
“Que sentido escolher? A segunda frase deve no-lo indicar: και εθαυμαζον επι τοις λογοις της χαριτος τοις εκπορευομενοις εκ του στοματος αυτου. Aqui, impõe-se-nos logo à partida ter em conta que θαυμαζειν pode exprimir tanto o espanto que resulta da admiração, como a surpresa ou o escândalo, e que οι λογοι της χαριτος, neste grego semitisante, não significa ‘palavras cheias de graça’, ‘deslumbrantes palavras’, mas ‘palavras relativas à graça (de Deus)’ – ‘Eles estavam atónitos por ele falar da graça de Deus.’

Porquê então a gente de Nazaré está atónita por Jesus falar da graça de Deus? Tinham eles esperado outra coisa? A resposta ei-la: o texto sobre o qual Jesus prega interrompe-se bruscamente no meio de uma frase. Com efeito, às palavras ‘tornar público um ano de graça do Senhor’ (Lucas 4:19 // Isaías 61:2), sucedem-se imediatamente, no Antigo Testamento, como fim de frase: ‘e um dia de vingança do nosso Deus’ (Isaías 61:2).
Jesus erradica o dia da vingança! Eis aí o motivo que os leva não à admiração mas à indignação.
‘Todos eles protestavam (παντες εμαρτυρουν) e estavam indignados (και εθαυμαζον) pelo facto de ele falar (somente) da graça (de Deus) e (de ter suprimido a vingança messiânica).’
A isso se junta, muito naturalmente, a terceira frase: ‘e eles diziam: Não é o filho de José?’
Ele não estudou, ele não foi consagrado – como é que ele pode ousar proclamar a vinda do tempo da salvação, e onde é que ele se acha possuidor do direito de suprimir, com a sua própria autoridade, uma passagem da Escritura?
Assim, em Lucas 4:22 não há nenhuma rutura brusca na atitude dos ouvintes em relação a Jesus. Desde o princípio, eles respondem com uma indignação unânime à sua pregação.
É o anúncio do evangelho que suscita a sua irritação e, em particular, o facto de Jesus suprimir do quadro dos dias futuros a vingança contra os pagãos.”
Na próxima semana: segunda parte do texto sobre o Evangelho de Lucas