O 7MARGENS publica a seguir o oitavo capítulo do estudo do pastor presbiteriano Dimas de Almeida sobre a nova tradução da Bíblia – Os Quatro Evangelhos e os Salmos – publicada no ano passado pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), cuja edição experimental pede sugestões, críticas e comentários.
Dimas de Almeida aceitou para si mesmo o desafio e o resultado concretiza-se neste trabalho que temos vindo a publicar cada sexta-feira, e que terá a sua conclusão daqui a duas semanas, a 18 de Dezembro (os títulos de cada capítulo são da responsabilidade do 7MARGENS).
Com o seu olhar de teólogo, exegeta e autor de várias traduções, Dimas Almeida explicou, na primeira parte deste texto, o modo como leu esta nova tradução; na segunda parte, abordou o problema da pluralidade de leituras, a partir do facto de haver quatro evangelhos e não apenas um; na terceira, debateu os critérios de tradução e a relação disso com o anúncio do evangelho; o quarto capítulo iniciou a abordagem da tradução do Evangelho segundo Mateus e propôs algumas traduções alternativas – uma delas, a do Pai-Nosso; no quinto capítulo, ainda dedicado ao texto de Mateus, debateu, entre outros detalhes, a questão do chronos e do kairós, bem como os messianismos judaicos; no sexto capítulo, falou-se do Evangelho segundo Marcos e do efeito perturbador que o seu prólogo pode ter; no sétimo, iniciou a abordagem do Evangelho Segundo Lucas, que aqui fica concluída, debruçando-se sobre episódios como a mulher pecadora em casa de Simão, a confissão messiânica de Pedro, o encontro com Zaqueu ou a refeição do Ressuscitado à beira do lago, entre outros.

Peter Paul Rubens, Banquete em Casa de Simão, o Fariseu (Museu Hermitage, São Petersburgo): “E com as suas lágrimas começou a banhar os pés dele, e com os cabelos da cabeça dela começou a secar os pés dele…”
Lucas 7:36-50
Texto grego
36 Ἠρώτα δέ τις αὐτὸν τῶν Φαρισαίων ἵνα φάγῃ μετ’ αὐτοῦ, καὶ εἰσελθὼν εἰς τὸν οἶκον τοῦ Φαρισαίου κατεκλίθη.
37 καὶ ἰδοὺ γυνὴ ἥτις ἦν ἐν τῇ πόλει ἁμαρτωλός, καὶ ἐπιγνοῦσα ὅτι κατάκειται ἐν τῇ οἰκίᾳ τοῦ Φαρισαίου, κομίσασα ἀλάβαστρον μύρου
38 καὶ στᾶσα ὀπίσω παρὰ τοὺς πόδας αὐτοῦ κλαίουσα τοῖς δάκρυσιν ἤρξατο βρέχειν τοὺς πόδας αὐτοῦ καὶ ταῖς θριξὶν τῆς κεφαλῆς αὐτῆς ἐξέμασσεν καὶ κατεφίλει τοὺς πόδας αὐτοῦ καὶ ἤλειφεν τῷ μύρῳ.
39 ἰδὼν δὲ ὁ Φαρισαῖος ὁ καλέσας αὐτὸν εἶπεν ἐν ἑαυτῷ λέγων· οὗτος εἰ ἦν προφήτης, ἐγίνωσκεν ἂν τίς καὶ ποταπὴ ἡ γυνὴ ἥτις ἅπτεται αὐτοῦ, ὅτι ἁμαρτωλός ἐστιν.
40 Καὶ ἀποκριθεὶς ὁ Ἰησοῦς εἶπεν πρὸς αὐτόν· Σίμων, ἔχω σοί τι εἰπεῖν. ὁ δέ· διδάσκαλε, εἰπέ, φησίν.
41 δύο χρεοφειλέται ἦσαν δανιστῇ τινι· ὁ εἷς ὤφειλεν δηνάρια πεντακόσια, ὁ δὲ ἕτερος πεντήκοντα.
42 μὴ ἐχόντων αὐτῶν ἀποδοῦναι ἀμφοτέροις ἐχαρίσατο. τίς οὖν αὐτῶν πλεῖον ἀγαπήσει αὐτόν;
43 ἀποκριθεὶς Σίμων εἶπεν· ὑπολαμβάνω ὅτι ᾧ τὸ πλεῖον ἐχαρίσατο. ὁ δὲ εἶπεν αὐτῷ· ὀρθῶς ἔκρινας.
44 καὶ στραφεὶς πρὸς τὴν γυναῖκα τῷ Σίμωνι ἔφη· βλέπεις ταύτην τὴν γυναῖκα; εἰσῆλθόν σου εἰς τὴν οἰκίαν, ὕδωρ μοι ἐπὶ πόδας οὐκ ἔδωκας· αὕτη δὲ τοῖς δάκρυσιν ἔβρεξέν μου τοὺς πόδας καὶ ταῖς θριξὶν αὐτῆς ἐξέμαξεν.
45 φίλημά μοι οὐκ ἔδωκας· αὕτη δὲ ἀφ’ ἧς εἰσῆλθον οὐ διέλιπεν καταφιλοῦσά μου τοὺς πόδας.
46 ἐλαίῳ τὴν κεφαλήν μου οὐκ ἤλειψας· αὕτη δὲ μύρῳ ἤλειψεν τοὺς πόδας μου.
47 οὗ χάριν λέγω σοι, ἀφέωνται αἱ ἁμαρτίαι αὐτῆς αἱ πολλαί, ὅτι ἠγάπησεν πολύ· ᾧ δὲ ὀλίγον ἀφίεται, ὀλίγον ἀγαπᾷ.
48 εἶπεν δὲ αὐτῇ· ἀφέωνταί σου αἱ ἁμαρτίαι.
49 Καὶ ἤρξαντο οἱ συνανακείμενοι λέγειν ἐν ἑαυτοῖς· τίς οὗτός ἐστιν ὃς καὶ ἁμαρτίας ἀφίησιν;
50 εἶπεν δὲ πρὸς τὴν γυναῖκα· ἡ πίστις σου σέσωκέν σε· πορεύου εἰς εἰρήνην.
Nova tradução católica
36 Ora, um dos fariseus pedia a Jesus[11] que comesse consigo[12]. Tendo entrado em casa do fariseu, reclinou-se à mesa. 37Eis que havia na cidade uma certa mulher pecadora que, ao saber que Ele estava reclinado à mesa na casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com bálsamo, e 38colocou-se atrás, junto aos seus pés. A chorar, começou a banhar-lhe os pés com as lágrimas e secou-os com os cabelos da sua cabeça; beijava-lhe repetidamente os pés e ungia-os com o bálsamo[13].
39Ao ver isto, o fariseu que o tinha convidado[14] disse para consigo: “Este, se fosse profeta, saberia quem e de que género é a mulher que lhe toca, porque é uma pecadora”.
40Respondendo, Jesus disse-lhe: “Simão, tenho algo a dizer-te”. “Diz, Mestre” – disse ele. 41 “Um credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos denários[15], e o outro cinquenta. 42Não tendo eles com que pagar, perdoou a ambos. Ora qual deles o amará mais?”. 43Respondendo, Simão disse: “Aquele, suponho, a quem mais perdoou”. Disse-lhe Jesus: “Julgaste bem”. 44E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: “Vês esta mulher? Entrei na tua casa e não me deste água para os pés[16]; ela, porém, banhou os meus pés com lágrimas e secou-os com os seus cabelos. 45Não me deste um beijo; ela, porém, desde que entrei, não parou de beijar-me repetidamente os pés. 46Não me ungiste a cabeça com azeite; ela, porém, com bálsamo ungiu os meus pés. 47Graças a isso te digo: estão perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou. Mas a quem pouco se perdoa, pouco ama”. 48E disse à mulher[17]: “Estão perdoados os teus pecados”.
49Os que estavam com Ele reclinados à mesa começaram a dizer entre si: “Quem é este que até pecados perdoa?”. 50Mas Ele disse à mulher: “A tua fé te salvou. Vai em paz”.
Eu traduziria
36 Ora, dos fariseus um deles rogava-lhe que comesse com ele.
E tendo entrado na casa do fariseu, Jesus reclinou-se à mesa.
37 E ei-la:
uma mulher, uma que na cidade era uma pecadora e que tendo sabido
“Ele está reclinado à mesa na casa do fariseu!”
38 trouxe com ela um alabastro cheio de perfume.
E pondo-se por detrás, junto aos pés dele, está a chorar.
E com as suas lágrimas começou a banhar os pés dele,
e com os cabelos da cabeça dela começou a secar os pés dele,
e beijava-os ternamente,
e ungia-os com o perfume.
39 Mas o fariseu – o que o convidou – tendo visto reagiu dentro de si-mesmo
exclamando:
“Este, se fosse um profeta, saberia quem é a mulher que está a tocá-lo
e de que estirpe ela é: uma pecadora!”
40 E Jesus, retorquindo, disse para ele:
“Simão, tenho algo a dizer para ti.”
E ele responde:
“Mestre, fala.”
41 “Eram dois devedores para um certo credor.
Um devia quinhentos denários, o outro cinquenta.
42 Não podendo eles pagar a dívida, a ambos ele perdoou.
Qual deles, pois, o amará mais?”
43 Simão, como resposta, disse:
“Suponho que é aquele a quem mais perdoou.”
E Jesus disse-lhe:
“Julgaste retamente.”
44 E voltando-se para a mulher disse a Simão:
“Estás a ver esta mulher?
Eu entrei na tua casa
e tu não me deste água sobre os pés,
mas ela com as suas lágrimas banhou os meus pés, e com os cabelos dela secou-os;
45 não me deste um beijo,
mas ela desde que entrou não cessa de beijar os meus pés;
46 com óleo não ungiste a minha cabeça,
mas ela com perfume ungiu os meus pés.
47 Sinal de que, digo-te, os pecados dela, muitos, estão-lhe perdoados!
Por esse motivo ela amou muito; mas aquele a quem é perdoado pouco ama pouco.”
48 E disse a ela: “Os teus pecados estão perdoados.”
49 E os convivas reclinados à mesa começaram a dizer por entre dentes uns aos outros:
“Quem é este que até mesmo pecados perdoa?”
50 Ele, porém, disse para a mulher: “Graças à tua fé tu estás salva. Vai em paz.”

Algumas notas:
1) Pela importância de que se reveste, achei por bem ter em conta esta perícope na integralidade da sua tradução, pese embora o facto de ser apenas um versículo o que podemos considerar crucial: o v. 47.
2) O convite dirigido a Jesus pelo fariseu serve de introdução e qualifica o texto como cena de banquete.
Como frequentemente acontece em cenas dessas, um incidente importante provoca um diálogo: e lá o temos no comportamento da mulher (vv. 37-38). De tal modo importante que Lucas volta a ele (vv. 48-50). Termina com a reação do fariseu (v. 39) que condena Jesus, talvez arrependido de o ter convidado.
Jesus conta uma pequena história (vv. 41-42a) que à primeira vista parece nada ter a ver com o incidente da mulher. Trata-se, contudo, de uma história essencial para se entrar no âmago do que está em jogo.
No v. 42b emerge a questão maiêutica de Jesus no que concerne o amor ativo: “Qual deles, pois, o amará mais?” E o debate acontece.
3) Depois de um vivo diálogo, Jesus termina com as palavras dirigidas à mulher: “Graças à tua fé tu estás salva. Vai em paz.” (Traduzo “tu estás salva” porque se trata de um perfeito, σεσωκεν, e sabe-se a força de presente que o perfeito tem em grego: o estado presente de uma ação que começou no passado. É que a história desta mulher tem, sem dúvida, uma pré-história: a de um encontro anterior com Jesus, um desses encontros em que Jesus a levou a descobrir-se na sua dignidade de mulher: é essa força do perdão que a leva a realizar os gestos de amor que realiza e não o inverso. Ela já estava perdoada quando entra em casa do fariseu e manifesta daquele modo o seu amor a Jesus.)
4) A pequena história dos devedores que Lucas introduz na sua narrativa, com a sua dimensão maiêutica, toca no ponto essencial: qual dos dois devedores perdoados ama mais? O amor resulta do perdão.
5) E há ainda a segunda parte do v. 47, as palavras de Jesus: “Mas aquele a quem é perdoado pouco ama pouco.” Não serão elas suficientes para se compreender o que está em jogo, e traduzir οτι não como causal mas sim como consecutivo?
Infelizmente a tradução católica alinha com outras que circulam entre nós (não só católicas mas também protestantes, e nem uma coisa nem outra).
6) O v. 47 é crucial para uma interpretação de toda a perícopa, pelo que a sua tradução se reveste de uma particular importância.
Subjacente à minha tradução está o trabalho que me deu (ele é exaustivo e trabalhoso…) o Léxico do Bauer… (a que já me referi anteriormente mais do que uma vez). Bauer é incontornável!
a) ου χαρις é traduzido por mim “sinal de que” graças ao modo desenvolvido como o Bauer nos abre o vasto campo semântico da palavra χαρις: numa das exaustivas colunas lá aparece χαρις com o significado de sinal: “a (sign of) favor”. Isto é, todos os gestos da mulher evocados nos três versículos imediatamente anteriores (vv 44-46) não são a causa do perdão mas sim a consequência;
b) Οτι ηγαπησεν πολυ é traduzido por mim “por esse motivo ela amou muito”, pois o οτι além do sentido causal (porque) tem também o sentido consecutivo (por esse motivo; razão pela qual) (vd. Bauer, e neste caso não só Bauer…). Divirjo assim da tradução católica que traduz o οτι como causal.
7) A história dos dois devedores é bem reveladora do que está em jogo: aquele a quem mais se perdoa é aquele que mais ama. Mas não é só a história, é também a segunda parte do crucial v. 47: “[…] Mas aquele a quem é perdoado pouco ama pouco.”
8) Obviamente, a figura de Jesus que sai desta perícope de Lucas fica marcada pela tradução que se faz: um Jesus que espera que o amem primeiro para depois perdoar, ou um Jesus que, pelo contrário, é amado porque perdoou primeiro?
Ora, o texto grego rigorosamente traduzido proclama um Jesus que não espera virtudes morais de ninguém para perdoar. É que Jesus não é um profissional da virtude. O fariseu da história, esse sim, é-o. É por isso que ele é muito parecido connosco. Ou o inverso.
Lucas 9:18-22

Texto grego
18 Καὶ ἐγένετο ἐν τῷ εἶναι αὐτὸν προσευχόμενον κατὰ μόνας συνῆσαν αὐτῷ οἱ μαθηταί, καὶ ἐπηρώτησεν αὐτοὺς λέγων· τίνα με λέγουσιν οἱ ὄχλοι εἶναι;
19 οἱ δὲ ἀποκριθέντες εἶπαν· Ἰωάννην τὸν βαπτιστήν, ἄλλοι δὲ Ἠλίαν, ἄλλοι δὲ ὅτι προφήτης τις τῶν ἀρχαίων ἀνέστη.
20εἶπεν δὲ αὐτοῖς· ὑμεῖς δὲ τίνα με λέγετε εἶναι; Πέτρος δὲ ἀποκριθεὶς εἶπεν· τὸν χριστὸν τοῦ θεοῦ.
21 ὁ δὲ ἐπιτιμήσας αὐτοῖς παρήγγειλεν μηδενὶ λέγειν τοῦτο
22 εἰπὼν ὅτι δεῖ τὸν υἱὸν τοῦ ἀνθρώπου πολλὰ παθεῖν καὶ ἀποδοκιμασθῆναι ἀπὸ τῶν πρεσβυτέρων καὶ ἀρχιερέων καὶ γραμματέων καὶ ἀποκτανθῆναι καὶ τῇ τρίτῃ ἡμέρᾳ ἐγερθῆναι.
Nova tradução católica
18E aconteceu que, estando a rezar sozinho, estavam com Ele os discípulos. Interrogou-os, então, dizendo: “Quem dizem as multidões que Eu sou?”. 19Eles, respondendo, disseram: “João Batista; outros, Elias; e outros, que um profeta dos antigos ressuscitou”. 20Disse-lhes, então: “Vós, porém, quem dizeis que Eu sou?”. Pedro, respondendo, disse: “O Cristo de Deus”[6]. 21Ele, repreendendo-os severamente, ordenou-lhes que não dissessem isto a ninguém, 22afirmando: “É necessário o Filho do Homem sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos doutores da lei, ser morto e ao terceiro dia ressuscitar”[7].
Eu traduziria
18 E aconteceu que – estando ele orando só – os discípulos estavam com ele.
E interrogou-os dizendo: “As multidões dizem que eu sou quem?”
19 E eles, respondendo, disseram:
“João, o Batista; e outros Elias; e outros que um profeta dos antigos
se levantou.”
20 E ele interpelou-os:
“Mas vós dizeis que eu sou quem?”
E Pedro, respondendo, disse:
“O Messias de Deus.”
21 Mas Jesus, depois de uma severa reprimenda, proibiu-os de dizer isso a quem
quer que fosse,
22 acrescentando:
“É preciso o Filho do Homem sofrer muitas coisas, e ser rejeitado pelos anciãos,
e pelos sumos sacerdotes, e pelos escribas, e ser entregue à morte e,
ao terceiro dia, ser despertado.”
Algumas notas
1) V. 20: seria clarificador traduzir χριστος por Messias, pois a confissão de Pedro não é de natureza cristológica mas sim messiânica. Tratar-se-ia, verosimilmente, de um título evocador da figura escatológica davídica, o Messias real que vem para libertar o seu povo da opressão e estabelecer um Reino terrestre.
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2) Compreende-se a “severa reprimenda” de Jesus: não só não quer ser confundido com uma figura nacionalista, como também uma tal proclamação podia provocar da parte da polícia do Templo uma qualquer ação contra Jesus.
3) Traduzir χριστος por Messias ajudaria, pois, a melhor compreender o que está em jogo: a questão dos messianismos judaicos.
E emprego um plural porque, como já disse em outra altura, no tempo de Jesus vivia-se a expectativa da vinda de três messias. Para os monges de Qumrân eram o Messias-sacerdote, o Messias-rei e o Messias-profeta; entre o povo os messianismos incluíam o real, o nacionalista, o guerreiro.
4) Jesus Messias? O que se pode deduzir dos textos é que Jesus nunca se terá proclamado claramente Messias.
Se alguma vez o tivesse feito nenhum sentido teria a interpelação de João Batista:
“Tu és aquele que vem ou temos de esperar um outro?” (Mt 11:3).
Esta pergunta de João não lhe é ditada pela sua “falta de fé”, como alguns alegam (há, de facto, quem seja capaz de medir a fé dos outros, mesmo que à distância de dois mil anos como é o caso de João, o Batista…), mas sim por um outro motivo que, esse sim, é plausível: por Jesus não ter dito que o era.
E note-se: a resposta que Jesus dá aos emissários de João não consiste num sim ou num não. Dá a impressão de não ser um título que lhe interessa: a sua resposta é feita dos milagres que realiza e da boa-nova anunciada aos pobres.
Claro: o título Cristo também tem uma conotação messiânica. Mas é clarificador dá-la a ver na resposta de Pedro. Incontestavelmente, a confissão petrina – dado o mundo de equívocos a que os diversos messianismos podiam dar lugar – é para Jesus indesejável.
Lucas 17:20-21
Texto grego
20 Ἐπερωτηθεὶς δὲ ὑπὸ τῶν Φαρισαίων πότε ἔρχεται ἡ βασιλεία τοῦ θεοῦ ἀπεκρίθη αὐτοῖς καὶ εἶπεν· οὐκ ἔρχεται ἡ βασιλεία τοῦ θεοῦ μετὰ παρατηρήσεως,
21 οὐδὲ ἐροῦσιν· ἰδοὺ ὧδε ἤ· ἐκεῖ, ἰδοὺ γὰρ ἡ βασιλεία τοῦ θεοῦ ἐντὸς ὑμῶν ἐστιν.
Nova tradução católica
20Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus[10], Ele, respondendo, disse-lhes: “O reino de Deus não vem de forma observável[11], 21nem dirão: “Ei-lo aqui” ou “Ei-lo ali”; de facto, eis que o reino de Deus está entre vós”.
Eu traduziria
20 E, tendo sido interpelado pelos fariseus
“Quando vem o reino de Deus?”,
Jesus respondeu-lhes assim:
“O reino de Deus não vem com uma aparência exterior.
21 Nem dirão: “Ei-lo aqui!” ou “ali!”
Porque ei-lo: o reino de Deus está dentro de vós!”
Algumas notas

1) Esta nova tradução católica dá-nos do v. 21 uma tradução que é a habitual. Uma tradução que podemos considerar deplorável, pois além de não ter em conta o que o texto grego diz resulta, assim me parece, do que poderíamos chamar um deplorável preconceito, sabe-se lá se de natureza ideológica ou não.
Um deplorável preconceito que tomou conta da generalidade dos biblistas e que consiste nisto: o reino de Deus proclamado por Jesus só pode ser de natureza exterior em relação a cada ser humano e nunca pode ser uma realidade que nos é interior. E vai daí, estas palavras de Jesus em Lucas, incómodas como são para um tal preconceito, têm de ser traduzidas de um modo que satisfaça um tal preconceito. Lamentável, lamentável.
2) E como resolvem o incómodo? Resolvem o incómodo lançando mão de uma solução cómoda: pervertem o significado do incómodo advérbio grego εντος (dentro) por eles traduzido “entre”. Fantástico!
E isso não obstante Jesus ter acabado de afirmar (nesse mesmo momento!) que “o reino de Deus não vem com uma aparência exterior” (v. 20). Mas isso pouco importa para os tradutores: eles querem que venha…
Se Lucas tivesse querido dizer “entre” (ou “no meio de” como se lê em outras traduções) teria escrito em muito bom grego (e Lucas é, dos quatro evangelistas, o que melhor grego escreve), teria escrito εν μεσωι – uma expressão que ele usa não poucas vezes ao longo do seu evangelho quando quer falar de alguém ou de alguma coisa que está “no meio de” ou “entre”.
Sejam estes alguns exemplos (outros e outros seria fastidioso estar aqui a citá-los); a expressão em causa aparece em itálico só para chamar a atenção, sem afetar a tradução:
“Acharam [Jesus] no Templo sentado no meio dos mestres” (2:46)
“e outra [semente] caiu no meio dos espinhos” (8:7)
“Ide e olhai! Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos!” (10:3)
“Mas eu no meio de vós estou como aquele que serve) (22:27)
“Ora, eles acenderam um fogo no meio do pátio e sentaram-se juntos. Pedro estava sentado no meio deles” (22:55)
“Ele próprio [Jesus] pôs-se no meio deles e diz-lhes: “Paz para vós”“ (24:36)
São apenas exemplos tirados do evangelho, porque o evangelho continua nos Atos e nos Atos Lucas emprega a expressão mais uma dezena de vezes.
Pois bem: é uma única vez que Lucas emprega a expressão “dentro de”, em grego εντος. Fá-lo unicamente aqui, em 17:21! A tradução que se impõe é “dentro de”: consultem-se os léxicos, os dicionários, tudo o que tenhamos à mão… o advérbio εντος é um implacável “dentro de”. Traduzi-lo por “entre vós” é um capricho de alguns, sem fundamento (vd Bauer!).
3) Numa tradução protestante recente, em inglês (New English Translation, NET Bible Press, 2003) este v. 21 aparece traduzido como quase sempre o é: Nor will they say, “Look, here it is!” or “There!” For indeed, the kingdom of God is in your midst.
Surpreendente – e extremamente reveladora – é a nota de pé-de-página com que se procura justificar in your midst. Lá se escreve: Although often translated “within you” (so KJV, NIV, TEV, NCV), Jesus would never tell the hostile Pharisees that the kingdom was inside them. The reference is to Jesus present in their midst (NASB, NAB, NRSV, NTL).
Perante uma nota deste jaez, sugiro que caiamos no riso para não cairmos na indignação.
4) De onde será que advém a quase todos os tradutores esse seu sentimento de repugnância em fazer do reino de Deus uma realidade espiritual que tanto nos pode ser exterior (como se impõe traduzir em outros passos) como nos pode ser interior (o texto de Lucas sublinha essa interioridade) – de onde será que lhes advém esse medo da interioridade? Não sei.
Aos teólogos da teologia da libertação era-lhes fundamental – por um motivo fortemente ideológico – a defesa de um reino de Deus que sempre nos é exterior e só exterior.
Há já mais de 30 anos participei em alguns encontros internacionais de teologia onde a presença dos teólogos da libertação era muito forte. Em quantos debates sobre estas coisas não participei eu! Para os teólogos da libertação era uma afronta defender que o reino de Deus proclamado por Jesus, além de ser exterior também podia ser uma realidade interior em cada um de nós. “Interior, dentro de” – isso nunca! Diziam eles.
Também irritava alguns deles que entre os discípulos de Jesus houvesse cobradores de impostos (esses “traidores” ao serviço do “império”). Não podia ser.
Ora uma das coisas que as investigações acerca do Jesus da história nos têm proporcionado é uma melhor compreensão de que Jesus é sempre desconcertante. Quantas não são as vezes em que ele não está onde nós julgamos que está, e quantas não são as vezes em que é o contrário! Dito por outras palavras: nele não podemos pôr um rótulo, pois ele é inclassificável.
5) Mas não será que uma das lutas a travar pelo tradutor é também esta: traduzir com “probidade intelectual” (uma expressão cara a Nietzsche) o texto que tem na sua frente, não só quando esse texto o conforta nas suas convicções mas também quando o desconforta?
Penso que aqui “probidade intelectual” diz tudo, tanto no que diz respeito aos fantasmas confessionais como no que diz respeito aos fantasmas não confessionais. Porque o “não confessional” também tem os seus fantasmas …
Isto de traduzir é uma tarefa tramada … e então quando se trata do grego antigo que todos os deuses do Olimpo nos valham, pois cada trama pode transportar consigo alegrias insuspeitadas.
Lucas 19:7-10

Texto grego
7 καὶ ἰδόντες πάντες διεγόγγυζον λέγοντες ὅτι παρὰ ἁμαρτωλῷ ἀνδρὶ εἰσῆλθεν καταλῦσαι.
8 σταθεὶς δὲ Ζακχαῖος εἶπεν πρὸς τὸν κύριον· ἰδοὺ τὰ ἡμίσιά μου τῶν ὑπαρχόντων, κύριε, τοῖς πτωχοῖς δίδωμι, καὶ εἴ τινός τι ἐσυκοφάντησα ἀποδίδωμι τετραπλοῦν.
9 εἶπεν δὲ πρὸς αὐτὸν ὁ Ἰησοῦς ὅτι σήμερον σωτηρία τῷ οἴκῳ τούτῳ ἐγένετο, καθότι καὶ αὐτὸς υἱὸς Ἀβραάμ ἐστιν·
10 ἦλθεν γὰρ ὁ υἱὸς τοῦ ἀνθρώπου ζητῆσαι καὶ σῶσαι τὸ ἀπολωλός.
Nova tradução católica
7Ao ver isto, todos murmuravam, dizendo: “Entrou para se hospedar junto de um homem pecador”[3].
8Mas, de pé, Zaqueu disse ao Senhor: “Eis, Senhor, que vou dar aos pobres metade dos meus bens e, se defraudei alguém nalguma coisa, restituirei quatro vezes mais”. 9Disse-lhe Jesus: “Hoje a salvação veio a esta casa, uma vez que também ele é filho de Abraão. 10Pois o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido”.
Eu traduziria
7 E todos tendo visto rosnavam uns com os outros dizendo:
“Na casa de um homem pecador ele entrou para se alojar!”
8 Ora, tendo-se posto de pé, Zaqueu disse para o Senhor:
“Olhai: a minha metade dos bens, Senhor, estou a dar aos pobres,
e se de alguém extorqui alguma coisa estou a restituir o quádruplo.”
9 Ora, Jesus disse referindo-se a ele:
“Hoje, a salvação manifestou-se nesta casa.
É que também ele é um filho de Abraão.
10 Sim, o Filho do Homem veio procurar e salvar aquilo que está perdido.”
Algumas notas
v. 7 – o verbo διαγογγυζω pode exprimir uma ideia mais forte do que a de um simples “murmurar”: recorri ao “rosnar” por me parecer mais expressivo; além disso é um verbo que supõe uma mutualidade;
v. 8 – o verbo διδωμι (eu dou, estou a dar) está no presente, um tempo que em grego supõe uma ação que está a decorrer: daí a minha tradução “estou a dar”: é isso mesmo que Zaqueu está a dizer. Em nome de que princípio gramatical um presente tem de ser traduzido como futuro? A outra forma verbal αποδιδωμι, também um presente (eu restituo, estou a restituir) é para ser tratada do mesmo modo.
A partícula δε no início deste versículo contrabalança com o δε também no início do versículo seguinte (o v. 9): daí a minha tradução “Ora […] Ora […]” É que há uma inter-relação entre as palavras de Zaqueu neste v. 8 e as palavras de Jesus no v. 9;
v. 9 – a forma verbal εγενετο (um aoristo) é por mim traduzida “manifestou-se”, uma tradução que é frequente quando se trata do verbo γινομαι. A tradução católica tem “veio”: ora, traduzir o verbo γινομαι por “vir” não é um interdito que vigore sempre, mas aqui não vejo muito bem a sua pertinência. Imediatamente no v. seguinte (o 10) temos de facto o verbo vir, mas é o verbo ερχομαι que, esse sim, implica “vir”, ou “ir”.
v. 10 – sendo το απολωλος um particípio perfeito neutro traduzi-o como “aquilo que está perdido” (cá temos, como é regra em grego, um perfeito com a força de um presente).
E temos, assim me parece, uma história de Zaqueu um pouco diferente da história habitual…
Jesus conhecia melhor Zaqueu do que os detratores dele.

Lucas 23:31-32
Texto grego
31 ὅτι εἰ ἐν τῷ ὑγρῷ ξύλῳ ταῦτα ποιοῦσιν, ἐν τῷ ξηρῷ τί γένηται;
32 Ἤγοντο δὲ καὶ ἕτεροι κακοῦργοι δύο σὺν αὐτῷ ἀναιρεθῆναι.
Nova tradução católica
31Porque se fazem isto com o madeiro verde, o que acontecerá com o seco?”. 32Levavam também com Ele outros dois malfeitores para serem executados.
Eu traduziria
31 Porque se no lenho verde fazem estas coisas, no seco que coisa há que não aconteça?!
32 E também outros – dois criminosos – estavam a ser levados para serem executados com ele.
Algumas notas
1) Mantenho na tradução, no v. 31, o conjuntivo aoristo grego.
2) O v. 32 traduzido como está na versão católica– “Levavam também com Ele outros dois malfeitores para serem executados.” – faz de Jesus um malfeitor também. Não se imporá uma correção?
3) O “com ele” – e aqui é que bate o ponto! – refere-se à execução.
Quanto não é o alcance teológico do “executados com ele”! Há que mantê-lo!
A preposição συν (com) reveste-se aqui de uma particular importância. A tradução católica, na minha perspetiva, só ganharia em ter isto em conta: o συν αυτωι (com ele) supõe o αναιρεθηναι (ser executado).
Aqueles dois malfeitores morreram com ele. Ninguém mais, exceto eles, formou com Jesus uma comunidade de uma proximidade tão grande. É a nossa morte a ser assumida por Jesus na sua morte para que a sua vida seja também a nossa vida.
“Executados com ele”: eis aí a primeira comunidade cristã, certa, segura, indissolúvel.
Lucas 24:36-43

Texto grego
36 Ταῦτα δὲ αὐτῶν λαλούντων αὐτὸς ἔστη ἐν μέσῳ αὐτῶν καὶ λέγει αὐτοῖς· εἰρήνη ὑμῖν.
37 πτοηθέντες δὲ καὶ ἔμφοβοι γενόμενοι ἐδόκουν πνεῦμα θεωρεῖν.
38 καὶ εἶπεν αὐτοῖς· τί τεταραγμένοι ἐστὲ καὶ διὰ τί διαλογισμοὶ ἀναβαίνουσιν ἐν τῇ καρδίᾳ ὑμῶν;
39 ἴδετε τὰς χεῖράς μου καὶ τοὺς πόδας μου ὅτι ἐγώ εἰμι αὐτός· ψηλαφήσατέ με καὶ ἴδετε, ὅτι πνεῦμα σάρκα καὶ ὀστέα οὐκ ἔχει καθὼς ἐμὲ θεωρεῖτε ἔχοντα.
40 καὶ τοῦτο εἰπὼν ἔδειξεν αὐτοῖς τὰς χεῖρας καὶ τοὺς πόδας.
41 ἔτι δὲ ἀπιστούντων αὐτῶν ἀπὸ τῆς χαρᾶς καὶ θαυμαζόντων εἶπεν αὐτοῖς· ἔχετέ τι βρώσιμον ἐνθάδε;
42 οἱ δὲ ἐπέδωκαν αὐτῷ ἰχθύος ὀπτοῦ μέρος·
43 καὶ λαβὼν ἐνώπιον αὐτῶν ἔφαγεν.
Nova tradução católica
36Enquanto eles falavam disto, Ele apresentou-se no meio deles e disse-lhes: “A paz esteja convosco!”, 37mas, aterrorizados e assustados, pensavam estar a ver um espírito.
38Disse-lhes: “Porque estais perturbados e por que razão surgem esses pensamentos no vosso coração? 39Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo. Tocai-me e vede, porque um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que Eu tenho”.
40Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés. 41E dado que, de alegria, ainda não acreditavam e estavam admirados, disse-lhes: “Tendes aqui alguma coisa para comer?”. 42Eles deram-lhe um pedaço de peixe assado. 43Tomando-o, comeu diante deles[9].
Eu traduziria
36 Ora, estando eles dizendo estas coisas, ele pôs-se no meio deles. E diz-lhes:
“Paz seja convosco!”
37 Mas eles, aterrados como estavam, e possuídos pelo medo, julgavam estar a ver um espírito.
38 E ele disse-lhes:
“Porquê estais perturbados e por que motivo as dúvidas invadem o vosso coração?”
39 Vede as minhas mãos e os meus pés: sou eu mesmo. Tocai-me e vede: um espírito não tem carne e ossos tal como – observai – eu tenho.”
40 E tendo dito isto mostrou-lhes as mãos e os pés.
41 Mas continuando eles incrédulos, sem alegria, estupefactos, ele disse-lhes:
“Tendes alguma coisa para comer aqui?”
42 Eles deram-lhe uma parte de um peixe grelhado.
43 E ele, tendo-o tomado, comeu-o à frente deles.
Algumas notas sobre a minha tradução do v. 41
1) Não conheço tradução alguma em que a preposição απο apareça vertida “sem”, tal como aparece nesta minha tradução. E isso intriga-me.
A tradução habitual é “por causa de”: é por causa da alegria que eles continuam incrédulos. E para justificar esse estado de espírito recorre-se à psicologia: uma grande alegria pode levar à incredulidade.
Eu não sou psicólogo e, portanto, não digo uma única palavra sobre isso. Mas compreendo, sem compreender, que haja exegetas que recorram à psicologia, sem nela serem especialistas, para defender uma determinada tradução. Tenho até aqui à minha frente um Comentário exegético do Evangelho de Lucas, de um protestante (I. Howard Marshall, The Gospel of Luke, 928 págs.) que recorre à psicologia (mas ele não é único) para defender uma tal tradução do v. 41: It is thoroughly credible from a psychological point of view e it was too good to be true (p.902)
2) A palavra χαρα (alegria) volta a aparecer 10 versículos depois, no v. 52, no fim do evangelho. E aí é-nos dito:
“E eles, depois de se terem prostrado à sua frente, voltaram para Jerusalém com uma grande alegria.”
Mas aí a preposição é μετα, com (rege um genitivo): μετα χαρας μεγαλης “com uma grande alegria”, e a sintaxe não levanta dúvidas acerca do “com”.
3) De facto, a preposição απο pode ser traduzida “por causa de”, tal como pode ser traduzida de outros modos, de tão expressiva que ela é.
Pode ser entendida como supondo um genitivo de separação ou privação (como aqui neste v. 41) de um modo tal que faça emergir a ideia de “separação” ou “privação”.
Socorramo-nos do imprescindível Blass / Debrunner (essa incontornável Gramática que já tenho evocado). Na secção 211 podemos colher esta informação.
“Απο used to designate separation, alienation.
Απο denotes alienation in some expressions […]”. E cita exemplos vários como sejam:
Rom 9:3: ηυχομην γαρ αναθεμα ειναι αυτος εγω απο του Χριστου υπερ των αδελφων μου.
“Porque eu desejaria ser eu mesmo anátema, separado do Cristo em lugar dos meus irmãos.” (minha tradução);
Col 2:20: Ει απεθανετε συν Χριστωι απο των στοιχειων του κοσμου […] “Se morrestes com Cristo estais separados dos elementos do mundo […]” (minha tradução).”
4) Neste mesmo capítulo 24 (vv. 13-33) temos aquela narrativa, admiravelmente composta por Lucas, da aparição do Ressuscitado aos discípulos de Emaús. Jesus ressuscitado caminha lado a lado com eles. Eles estão de rastos: acabam de passar pela maior deceção das suas vidas. Vivem uma amargura indescritível. Jesus cita-lhes os profetas, e o que eles disseram a seu respeito, mas os olhos deles não se abrem. Só se lhes abrem quando Jesus, à mesa, toma o pão, pronuncia a bênção, parte-o, deu-lho. Aí tudo começa a ser novo para eles: os olhos abrem-se-lhes e reconhecem o Ressuscitado.

5) Talvez na nossa perícope (vv. 36-43) os vv. 42-43 desempenhem um papel essencial: é numa refeição que o Jesus Ressuscitado se dá a ver.
Os dois de Emaús andavam de rastos; estes também. Num caso e noutro é numa refeição-eucaristia que o Ressuscitado é reconhecido. E a grande alegria emerge.
Logo desde as origens cristãs a presença de Cristo na eucaristia era representada por um peixe.
6) Ora, o que eu sugiro é isto: é nos vv. 42-43, na refeição eucarística do peixe, que a “grande alegria” do v. 52 começa. E sustento que o απο do v. 41 não indicia “por causa de” mas sim “sem”.Não lhes chega as palavras de Jesus, como não chegou aos dois de Emaús, a presença física de Jesus mesmo ao lado deles: é no “partir do pão” que os olhos se lhes abrem!
7) Compreende-se que haja sempre, na tradução, uma tendência para diluir a incredulidade deles. Ou, pelo menos, esbatê-la. Mas uma tal tendência, animada embora da melhor das intenções, acaba por se revelar inconsequente.
Chega-se a traduzir assim o v. 41:
“Mas vacilando eles ainda e estando transportados de alegria, perguntou: “Tendes aqui alguma coisa para comer?” (Novo Testamento, Editorial Missões, Cucujâes, 1957)
É curioso (e significativo): essa propensão para embelezar começou bastante cedo com os evangelhos apócrifos: na ressurreição de Jesus é tudo uma maravilha, tudo é esplendor, todos creem! Fantástico! O contraste com o evangelho de Marcos é total: o final deste (sem a segunda conclusão, que é um acrescento tardio) sublinha o medo. E como é importante que o genial Marcos sublinhe esse medo como sublinha. Isso é essencial para compreendermos onde está o motivo da grande reviravolta na vida daqueles homens e mulheres que estavam de rastos.
Ora é muito significativo que os evangelhos sublinhem essa incredulidade. Isso tem a ver com a autenticidade do que estão a narrar: começar a narrativa das origens cristãs com a incredulidade de todos não é heroico, mas é genuíno; não é uma narrativa inventada (se o fosse tudo apareceria logo à partida revestido das cores mais belas e grandiosas) é verdadeira.
E porque é verdadeira e nos confronta com a incredulidade deles convida-nos a formular uma questão que é essencial: o que é que levou, afinal de contas, aquelas pessoas a passarem do medo e da incredulidade à ousadia e à fé?
A ressurreição de Jesus! Sem ressurreição não teria havido cristianismo. Sem ressurreição não há cristianismo: é a sua marca.
8) Defendo a minha tradução do v.41: não só por ter em conta a sintaxe do grego em que nos é dado lê-lo mas também por ser contrastante com a generalidade das traduções. Há casos em que o contraste pode desempenhar um papel de novidade. E a novidade pode transportar consigo alguma coisa boa.
Nos Atos Lucas aborda igualmente o tema da alegria eucarística. Usa então uma palavra imensa: αγαλλιασις, (regozijo, exultação): Vejamos Atos 2:46
Texto grego de Atos 2:46
46 καθ’ ἡμέραν τε προσκαρτεροῦντες ὁμοθυμαδὸν ἐν τῷ ἱερῷ, κλῶντές τε κατ’ οἶκον ἄρτον, μετελάμβανον τροφῆς ἐν ἀγαλλιάσει καὶ ἀφελότητι καρδίας
que traduzo assim:
“Dia após dia
– não só perseverando unanimemente no Templo, mas também partindo o pão em cada casa – partilhavam a comida com regozijo e simplicidade de coração.”
Na próxima semana: primeira parte do estudo e análise sobre o Evangelho de João
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