O 7MARGENS publica a seguir o nono e penúltimo capítulo do estudo do pastor presbiteriano Dimas de Almeida sobre a nova tradução da Bíblia – Os Quatro Evangelhos e os Salmos – publicada no ano passado pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), cuja edição experimental pede sugestões, críticas e comentários.
Dimas de Almeida aceitou para si mesmo o desafio e o resultado concretiza-se neste trabalho que temos vindo a publicar cada sexta-feira, e que terá a sua conclusão na próxima semana, a 18 de Dezembro (os títulos de cada capítulo são da responsabilidade do 7MARGENS).
Teólogo, exegeta e autor de várias traduções, Dimas Almeida explicou, na primeira parte deste texto, o modo como leu esta nova tradução; na segunda parte, abordou o problema da pluralidade de leituras, a partir do facto de haver quatro evangelhos e não apenas um; e debateu depois a relação dos critérios de tradução com o anúncio do evangelho.
Iniciando a abordagem da tradução do Evangelho segundo Mateus, propôs algumas traduções alternativas – uma delas, a do Pai-Nosso; debateu a seguir, entre outros detalhes, a questão do chronos e do kairós, ou os messianismos judaicos; falou do efeito perturbador que o prólogo do Evangelho de Marcos pode ter; no sétimo e no oitavo capítulos, abordou o Evangelho Segundo Lucas, onde tratou episódios como a mulher pecadora em casa de Simão, a confissão messiânica de Pedro, o encontro com Zaqueu ou a refeição do Ressuscitado à beira do lago, entre outros.
Neste texto, inicia-se a reflexão sobre a tradução do Evangelho de João, centrando-se em algumas passagens que remetem para pormenores acerca da revelação de Jesus e do génio do autor deste Quarto Evangelho.

O evangelista João, representado no Book of Kells (Fol291v). Trinity College, Dublin.
Segundo João
Se tivermos em conta a investigação bíblica e o trabalho exegético que desde há uns cinquenta ou sessenta anos têm sido levados a cabo tanto no campo católico como no protestante, parece-me podermos dizer que nenhuma dessas duas coisas se reflete nas introduções aos evangelhos que, nesta nova tradução católica, nos são dadas a ler.
Ao lê-las, tanto nos sinópticos como em João, constata-se que delas estão ausentes coisas importantes e que poderiam ser enriquecedoras para uma leitura destas quatro seminais obras que fazem parte das muitas e importantes coisas com que o nosso Ocidente se veio formando.
Há coisas importantes que, sem prolixidade, podiam ter sido escritas como introdução não só a cada um dos evangelhos sinópticos mas também ao de João.
E não o foram. Fica-se sempre prisioneiro da tradição do séc. II como se a investigação histórica dos evangelhos, desde há mais de meio século, não tivesse avançado. Mas avançou e dilatou o horizonte do nosso conhecimento. Enriquecendo-o.
Em relação aos sinópticos – e o mesmo se pode dizer em relação a João – é difícil detetar um grãozinho que seja dos resultados da investigação histórico-exegética a que me refiro. Parece-me podermos dizer que há nisso um lamentável silêncio.
Mas o que é que se ganha com um tal silêncio, sempre nutrido por um desejo de tipo fundamentalista de defender a “fidelidade” apostólica dos evangelhos? Isso não sei. Mas uma coisa sei: com um tal silêncio as mulheres e os homens – os cristãos, sejam eles católicos ou protestantes – que compõem as nossas comunidades ficam privados de informações que alargariam – enriquecendo-o – o horizonte de referência das origens do cristianismo. Origens que são de uma riqueza surpreendente.
Esta introdução ao evangelho de João podia ter sido elaborada há 60 anos. Ora, no campo histórico-exegético quanto não se tem avançado desde aí para cá! E limito-me a evocar dois silêncios acerca de duas coisas que, historicamente, estão imbricadas entre si: a datação do evangelho e o seu autor. Laconicamente as evoco.
No concernente à datação há cada vez mais uma maior tendência entre os exegetas para situar a forma final deste evangelho não antes dos anos 90-100.
No concernente à autoria aumenta também esse consenso no sentido de não se aceitar acriticamente a tradição que faz de João, filho de Zebedeu, um dos apóstolos, o seu autor.
Raymond E. Brown (segunda metade do séc. XX), exegeta católico a quem a exegese do Novo Testamento tanto deve, é uma das muitas vozes que no campo dos estudos joaninos têm sublinhado de um modo sugestivo e enriquecedor as componentes históricas do evangelho joanino. Atribui-lhe uma datação que pode ir até ao ano 110, e sobre o autor exprime-se assim:
“AUTOR SEGUNDO O CONTEÚDO: Um homem que se considera como pertencente à tradição do “discípulo que Jesus amava”. Se se postula um redator depois dele, pode muito bem tratar-se de alguém que pertenceu à mesma tradição. É possível que tenha havido uma escola de escritores joaninos. […] nenhum texto do evangelho foi conservado sem adições.” (Raymond Brown, Que sait-on du Nouveau Testament? Bayard, 2000, p. 377).
* * *
João 1:18

Texto grego
18 Θεὸν οὐδεὶς ἑώρακεν πώποτε· μονογενὴς θεὸς ὁ ὢν εἰς τὸν κόλπον τοῦ πατρὸς ἐκεῖνος ἐξηγήσατο.
Nova tradução católica
18 A Deus jamais alguém viu; o unigénito divino[17], que está no seio do Pai, Ele o deu a conhecer[18].
Eu traduziria
18 Ninguém, vez alguma, viu Deus.
Um Unigénito, Deus, o que está no seio do Pai,
esse foi seu intérprete.
Algumas notas
a) Surpreendem-me, na tradução católica, o adjetivo “divino” e a nota de pé-de-página com que se procura justificá-lo: “Deus, sem artigo, tem sentido adjetival.”
Como assim? Uma grande distração, sem dúvida, deve ter levado a fazer uma afirmação dessas. Meu Deus! São dezenas e dezenas de vezes que ao longo do Novo Testamento a palavra θεος, Deus, aparece sem artigo. E não deixa, lá por isso, de ser o “Deus verdadeiro”
Vejam-se como exemplos:
Mt 6:24
Lc 2:14; 20:38
Ro 8:8,33b
2 Cor 1:21; 5:19
Gál 2:19; 4:8
2 Tess 1:8
Tit 1:16; 3:8
Heb 3:4
etc.
Não é do “divino” que se fala. É de Deus.
b) A meus olhos a expressão utilizada “unigénito divino” não é das mais felizes. Não só porque a noção de “divino”, escorregadia como é, dá lugar a equívocos sem fim, mas também porque era o adjetivo utilizado no universo mitológico do helenismo para evocar o “homem divino”, θειος ανηρ, que resultava dos casamentos dos deuses. Além de que, do ponto de vista lexical, a palavra utilizada não era θεος Deus, um substantivo, mas sim θειος, divino, um adjetivo.
Ora não é de nada disso que João fala quando põe lado a lado as duas palavras fundamentais: μονογενης θεος, Unigénito Deus.
Entrarmos no universo teológico do prólogo joanino implica mantermos a força conceptual de que cada uma delas se reveste.
João 7:1-13

Texto grego
1 Καὶ μετὰ ταῦτα περιεπάτει ὁ Ἰησοῦς ἐν τῇ Γαλιλαίᾳ· οὐ γὰρ ἤθελεν ἐν τῇ Ἰουδαίᾳ περιπατεῖν, ὅτι ἐζήτουν αὐτὸν οἱ Ἰουδαῖοι ἀποκτεῖναι.
2 Ἦν δὲ ἐγγὺς ἡ ἑορτὴ τῶν Ἰουδαίων ἡ σκηνοπηγία.
3 εἶπον οὖν πρὸς αὐτὸν οἱ ἀδελφοὶ αὐτοῦ· μετάβηθι ἐντεῦθεν καὶ ὕπαγε εἰς τὴν Ἰουδαίαν, ἵνα καὶ οἱ μαθηταί σου θεωρήσουσιν σοῦ τὰ ἔργα ἃ ποιεῖς·
4 οὐδεὶς γάρ τι ἐν κρυπτῷ ποιεῖ καὶ ζητεῖ αὐτὸς ἐν παρρησίᾳ εἶναι. εἰ ταῦτα ποιεῖς, φανέρωσον σεαυτὸν τῷ κόσμῳ.
5 οὐδὲ γὰρ οἱ ἀδελφοὶ αὐτοῦ ἐπίστευον εἰς αὐτόν.
6 λέγει οὖν αὐτοῖς ὁ Ἰησοῦς· ὁ καιρὸς ὁ ἐμὸς οὔπω πάρεστιν, ὁ δὲ καιρὸς ὁ ὑμέτερος πάντοτέ ἐστιν ἕτοιμος.
7 οὐ δύναται ὁ κόσμος μισεῖν ὑμᾶς, ἐμὲ δὲ μισεῖ, ὅτι ἐγὼ μαρτυρῶ περὶ αὐτοῦ ὅτι τὰ ἔργα αὐτοῦ πονηρά ἐστιν.
8 ὑμεῖς ἀνάβητε εἰς τὴν ἑορτήν· ἐγὼ οὐκ ἀναβαίνω εἰς τὴν ἑορτὴν ταύτην, ὅτι ὁ ἐμὸς καιρὸς οὔπω πεπλήρωται.
9 ταῦτα δὲ εἰπὼν αὐτὸς ἔμεινεν ἐν τῇ Γαλιλαίᾳ.
10 Ὡς δὲ ἀνέβησαν οἱ ἀδελφοὶ αὐτοῦ εἰς τὴν ἑορτήν, τότε καὶ αὐτὸς ἀνέβη οὐ φανερῶς ἀλλ’ [ὡς] ἐν κρυπτῷ.
11 οἱ οὖν Ἰουδαῖοι ἐζήτουν αὐτὸν ἐν τῇ ἑορτῇ καὶ ἔλεγον· ποῦ ἐστιν ἐκεῖνος;
12 καὶ γογγυσμὸς περὶ αὐτοῦ ἦν πολὺς ἐν τοῖς ὄχλοις· οἱ μὲν ἔλεγον ὅτι ἀγαθός ἐστιν, ἄλλοι [δὲ] ἔλεγον· οὔ, ἀλλὰ πλανᾷ τὸν ὄχλον.
13 οὐδεὶς μέντοι παρρησίᾳ ἐλάλει περὶ αὐτοῦ διὰ τὸν φόβον τῶν Ἰουδαίων.
Nova tradução católica
1Depois disto, Jesus andava pela Galileia. Não queria andar pela Judeia, porque os judeus procuravam matá-lo.
2Ora, estava próxima a festa dos judeus, a festa das Tendas[1]. 3Disseram-lhe, por isso, os seus irmãos: “Parte daqui e vai para a Judeia, para que também os teus discípulos vejam as obras que Tu realizas. 4Pois ninguém faz nada em segredo quando procura ser publicamente conhecido. Se fazes estas coisas, manifesta-te ao mundo!”. 5Nem os seus irmãos acreditavam nele. 6Disse-lhes, então, Jesus: “O meu tempo[2] ainda não chegou; o vosso tempo, porém, está sempre pronto! 7O mundo não vos pode odiar; a mim, porém, odeia-me, porque Eu dou testemunho acerca dele: as suas obras são más. 8Subi vós para a festa; Eu não subo para esta festa, porque o meu tempo ainda não se cumpriu”. 9Tendo Ele dito isto, permaneceu na Galileia.
Jesus peregrina em segredo – 10Contudo, quando os seus irmãos subiram para a festa, então também Ele subiu, não abertamente, mas quase em segredo[3]. 11Ora, os judeus procuravam-no durante a festa e diziam: “Onde está Ele?”. 12E entre as multidões havia uma grande murmuração acerca dele; uns diziam: “Ele é bom!”, mas outros diziam: “Não! Pelo contrário, engana a multidão”. 13No entanto, ninguém falava publicamente acerca dele, por medo dos judeus.
Eu traduziria:
1 E depois dessas coisas Jesus pôs-se a calcorrear a Galileia.
Com efeito, ele coibia-se de andar pela Judeia, pois as autoridades judaicas alimentavam a intenção de o matar.
2 Mas estava próxima a festa dos judeus, a das Tendas.
3 Por esse motivo os irmãos dele disseram-lhe:
“Vai-te daqui e caminha para a Judeia, para que também os teus discípulos observem as tuas obras, as que tu andas a fazer!
4 Porque ninguém age na sombra quando procura ser uma figura pública. Dado que andas a fazer estas coisas revela-te a ti mesmo ao mundo!”
5 Com efeito, nem os irmãos dele criam nele.
6 Diz-lhes, portanto, Jesus:
“O momento que é o meu ainda não está presente; mas o momento que é o vosso, esse, está sempre à mão de semear.
7 O mundo não pode odiar-vos, mas a mim odeia porque acerca dele eu atesto isto: as suas obras são más.
8 Subi vós para a festa. Eu não subo para esta festa porque o momento que é o meu ainda não está cumprido na sua plenitude.”
9 E tendo dito estas coisas ele mesmo continuava na Galileia
10 Mas como os seus irmãos subiram para a festa, então ele mesmo também subiu não publicamente mas como em segredo.
11 De modo que as autoridades judaicas puseram-se a procurá-lo na festa e diziam:
“Onde está aquele tipo?”
12 E um bruaá acerca dele soava forte entre a populaça. Uns diziam: “Ele é bom!” Mas outros diziam: “Nada disso! Ele não faz senão ludibriar o povo!”
13 Não obstante, ninguém ousava falar acerca dele publicamente: tinham medo das autoridades judaicas.
Algumas notas
v. 1 – No evangelho de João οι Ιουδαιοι, os Judeus, aparece por vezes a designar não o povo na sua generalidade, mas as autoridades judaicas. Nesta perícope o v. 13 convida-nos a ler a palavra deste modo. Daí a minha tradução. Parece que era particularmente na Judeia onde essas autoridades alimentavam uma maior animosidade contra Jesus.
[expander_maker id=”1″ more=”Continuar a ler…” less=”Ler menos…”]
v. 3 – Nesta nova tradução católica dos evangelhos manifesta-se uma acentuada preocupação na utilização de maiúsculas quando se trata de Jesus, como sejam o “Ele”, ou o “Tu”. Procura-se com esse procedimento, como é óbvio, sublinhar a identidade particular de Jesus: a sua dignidade é única e há que sublinhá-la com o recurso à utilização de maiúsculas.
Na generalidade das traduções um tal procedimento não é adotado, pois não se justifica que o seja.
Pode aflorar, pois, aos lábios do leitor um sorriso ao ler nesta nova tradução católica o modo como nos são dadas a ler as palavras cortantes que os incrédulos irmãos de Jesus lhe dirigem:
“Parte daqui e vai para a Judeia, para que também os teus discípulos vejam as obras que Tu realizas.”. Motivo do sorriso? O “Tu realizas”. Sim, os irmãos de Jesus, que o vituperam, dirigem-se a ele com um “Tu” maiúsculo, um “Tu” expressivo de uma confissão de fé.
Até onde podem levar algumas obsessões (mesmo quando é uma obsessão nutrida pela distração, como talvez aqui) de um tradutor…
v. 6-8 – Há uma palavra grega (uma palavra das grandes) que aparece três vezes nestes 3 versículos: a palavra καιρος, expressiva da ideia de um determinado “momento”, um “momento privilegiado”, uma “circunstância particular”, um “tempo bafejado pela sorte”, etc.
Eu sugeria aos leitores que se interessam por estas coisas a leitura do que já escrevi atrás sobre o καιρος, quando estavam em causa três passos de Mateus (Mt 11:25; 12:1; 14:1-2).
O pouco que aqui vou acrescentar é-me ditado pelo καιρος particular, e tenso, que Jesus está a viver.
Como já procurei dizer então, com outras palavras, o καιρος grego denota o tempo decisivo e irrevogável para uma ação que é oferecido pela sorte (destino?) ou, alternativamente, por uma constelação cósmica.
Assim, no Novo Testamento, pode desempenhar um papel de fundamental importância: exprimir a ideia de um momento determinado por Deus, sobretudo o momento escatológico no tempo (vd, p. ex.: Lc 19:44; Ap 11:18; I Ped 1:5; etc.)
Aqui, nestes nossos versículos 6-8, não temos um καιρος como o momento propício para a atividade de Jesus: trata-se, sim, de uma questão do “momento espiritual” que foi determinado para o Redentor. E é a partir daí que é o momento decisivo para uma ação.
Estes primeiros 13 versículos do cap. 7 de João revestem-se de uma importância particular: serem uma introdução (e que introdução!) para o que se segue, a festa dos Tabernáculos, toda ela surpreendente no seu καιρος, na sua circunstância e no seu modo.
v. 11 – Ao deslize do “Tu” com letra maiúscula para que chamei a atenção no v. 3 sucede-se aqui um outro deslize, desta vez com um “Ele” também com letra maiúscula posto na boca daqueles (as autoridades judaicas) que estavam animados do desejo de o matar.
Mas aqui não é só a maiúscula intempestiva, é também a tradução de um εκεινος (aquele) que revela aqui desprezo e hostilidade por um respeitoso “Ele”.
* * *
Ainda acerca do καιρος

Alguns manuscritos (tidos como de fraca qualidade) do evangelho de João transmitem-nos algumas palavras (cap. 5, final do v. 3 e todo o v. 4) que não aparecem nos manuscritos tidos como de maior confiança e que por isso são habitualmente suprimidas na generalidade das traduções que hoje se publicam. Curiosamente, a palavra καιρος aparece lá. Lembrei-me dessas palavras porque são uma achega mais em torno da noção de καιρος. Por isso aqui as transcrevo:
João 5:4
Αγγελος γαρ κυριου κατα καιρον κατεβαινεν εν τηι κολυμβηθραι και εταρασσε το υδωρ.
ο ουν πρωτος εμβας μετα την ταραχην του υδατος υγιης εγινετο ωι δηποτε κατειχετο
νοσηματι.
Que traduzo assim:
“Porque um anjo do Senhor, durante um momento, descia ao tanque e agitava a água. De modo que o primeiro que tivesse entrado a seguir à agitação da água ficava sarado, tivesse ele que maleita tivesse.”
Trata-se de um texto que se reveste de uma certa importância para, numa narrativa interessante, tomarmos uma vez mais o pulso ao nosso καιρος, neste caso precedido da preposição κατα.
Que tradução nos oferece deste passo a nova tradução católica? Encontramo-la como nota de pé-de-página do versículo em causa (p. 283):
“[…] pois o anjo do Senhor descia à piscina, de tempos a tempos, e agitava a água; o primeiro que entrasse nela, depois da agitação da água, ficava curado da enfermidade que tivesse.”
Uma vez mais o καιρος fica assim reduzido às dimensões do tempo cronológico (o tempo do calendário). Com efeito, a tradução que nos é oferecida é “de tempos a tempos”. Se assim fosse o pobre do homem não teria de que se queixar: “de tempos a tempos” podia muito bem exprimir a ideia de uma agitação das águas de horas ou até mesmo de dias. De tempos a tempos acontecia uma agitação nas águas que podia durar. Assim como “de tempos a tempos há maré cheia”.
Há que repeti-lo: o καιρος não é o tempo do calendário (o tempo cronológico) mas sim um momento que irrompe (que pode ser um momento privilegiado para se viver o inaudito, o inesperado). Daí a minha tradução “durante um momento”, ou então “momentaneamente”:
Momentaneamente um anjo do Senhor descia. Era o momento privilegiado para os outros todos, mas momento desesperante para o pobre do homem. O καιρος, às vezes, faz dessas.
Claro: há textos em que o καιρος pode aceitar ser reduzido às dimensões do tempo cronológico. Mas é preciso ver bem se é assim, pois pode acontecer o καιρος protestar surdamente contra uma tal redução.
João 8:18-19

Texto grego
18 ἐγώ εἰμι ὁ μαρτυρῶν περὶ ἐμαυτοῦ καὶ μαρτυρεῖ περὶ ἐμοῦ ὁ πέμψας με πατήρ.
19 ἔλεγον οὖν αὐτῷ· ποῦ ἐστιν ὁ πατήρ σου; ἀπεκρίθη Ἰησοῦς· οὔτε ἐμὲ οἴδατε οὔτε τὸν πατέρα μου· εἰ ἐμὲ ᾔδειτε, καὶ τὸν πατέρα μου ἂν ᾔδειτε.
Nova tradução católica
18Sou Eu que dou testemunho acerca de mim mesmo, e acerca de mim dá testemunho também o Pai que me enviou”. 19Diziam-lhe, então: “Onde está o teu Pai?”. Respondeu Jesus: “Nem a mim nem ao meu Pai conheceis. Se me conhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai”.
Eu traduziria
18 “Eu sou o que testemunha acerca de mim mesmo, e aquele que me enviou, o Pai, testemunha acerca de mim.”
19 Interpelavam-no, portanto:
“Onde está o teu pai?”
Jesus respondeu:
“Nem me conheceis a mim nem ao meu Pai. Se me conhecêsseis, também conheceríeis o meu Pai.”
Algumas notas
1) – Há recursos literários que João, não poucas vezes, utiliza. Como sejam: o mal-entendido, a ironia, a linguagem simbólica. E acontece, por vezes, um entrecruzamento desses recursos num único discurso. O mal-entendido e a ironia caminham, por vezes, lado a lado. (vd., como exemplos, 3:1-12; 4:4-26).
2) – Quando se faz uma leitura atenta dos textos (além dos que acabei de dar como exemplos que se leiam também 2:19-22; 7:33-36; 8:21-22; 18:33 e seg.) constata-se que, por vezes, é o próprio Jesus que provoca o mal-entendido. O diálogo com a samaritana dá-o a ver.
3) – Ora, pode-se definir o mal-entendido joanino como um tipo de ironia no sentido em que se pode entender a ironia como um recurso literário mediante o qual o autor do texto desconjunta a realidade conhecida pelo leitor e a aparência que os protagonistas da narrativa tomam pela realidade.
Ambos – o mal-entendido que se nutre da ironia e a ironia que se nutre do mal-entendido – são, pois, utilizados na argumentação do Jesus joanino para levar os seus auditores a reorientarem-se a si mesmos. A ironia do Mestre, tal como João no-la dá a ver, a nós, leitores, visa atingir-nos na nossa vida inteira para nos dar vida.
Rudolf Bultmann, essa figura marcante da exegese do Novo Testamento no séc. XX, sublinha no seu grande comentário do Evangelho de João esta particularidade de Jesus: ele não é o Revelador somente quando se apresenta como o caminho, a verdade e a vida; é-o também quando leva os seus interlocutores a revelarem-se a si mesmos. Diante de Jesus eu, que pensava ser senhor de mim mesmo, encontro-me posto a nu. Face à sua ironia, sou levado a constatar, com um certo arrepio, que as certezas nas quais me apoiava têm a marca da ilusão. Sou levado à suspeita, com a samaritana, de que a minha religião pode funcionar como um obstáculo à verdade. E aprendo, com Nicodemos, que o meu zelo não passa de um empenho duvidoso, ou então, com Pilatos, que a minha pretensa neutralidade não é outra coisa senão uma cobarde velhacaria. Mas é a mim que, ao ser desarmado por ele, ele me oferece a liberdade.
Um dos grandes convites que João nos faz com o seu evangelho tem a forma de um desafio: entrarmos na pedagogia de Jesus.
4) No nosso texto a palavra “pai” gera o mal-entendido. Jesus fala no seu Pai celeste e os seus interlocutores falam do seu pai terrestre, José.
José, no evangelho de João, é mencionado como o pai de Jesus:
“E diziam: “Não é este Jesus o filho de José, do qual conhecemos o pai e a mãe? Como é que então ele diz: “Eu desci do céu”?”“ 6:42 (minha tradução)
A nova tradução católica, ao atribuir uma maiúscula ao pai terrestre (8:19) apaga o mal-entendido e põe os descrentes opositores de Jesus a fazerem uma implícita confissão de fé nele…
João 10:37-39
Texto grego
37 εἰ οὐ ποιῶ τὰ ἔργα τοῦ πατρός μου, μὴ πιστεύετέ μοι·
38 εἰ δὲ ποιῶ, κἂν ἐμοὶ μὴ πιστεύητε, τοῖς ἔργοις πιστεύετε, ἵνα γνῶτε καὶ γινώσκητε ὅτι ἐν ἐμοὶ ὁ πατὴρ κἀγὼ ἐν τῷ πατρί.
39 Ἐζήτουν [οὖν] αὐτὸν πάλιν πιάσαι, καὶ ἐξῆλθεν ἐκ τῆς χειρὸς αὐτῶν.
A nova tradução católica
37Se não realizo as obras do meu Pai, não acrediteis em mim; 38mas se as realizo, mesmo que não acrediteis em mim, acreditai nas obras, para que reconheçais e saibais[13] que o Pai está em mim e Eu estou no Pai”. 39Procuravam, então, de novo prendê-lo, mas Ele escapou-se das suas mãos.
Eu traduziria
37 Se eu não estou fazendo as obras do meu Pai, não creiais em mim;
38 mas se as estou fazendo, mesmo que não creiais em mim, crede nas obras, para que saibais e compreendais que o Pai está em mim e eu estou no Pai.
39 Procuravam, pois, apanhá-lo outra vez. Ele, porém, escapuliu-se da mão deles.
Duas observações sobre o v. 38
a) – O verbo γινωσκω (saber, compreender) aparece duas vezes de seguida: γνωτε (um conjuntivo aoristo), e γινωσκητε (um conjuntivo presente).
Entrarmos no universo semântico deste verbo é permanentemente um desafio: o desafio inerente ao saber e ao compreender (vd. o velho Bauer, por mim tantas vezes evocado!). Dito em outras palavras: trata-se do universo hermenêutico.
Pois bem: ao conjuntivo aoristo (tendo em conta o código genético de um aoristo), julgo acertada a tradução “saibais”; ao conjuntivo presente (tendo em conta o código genético de um presente), julgo acertada a tradução “compreendais”.
Por isso acho inexata a nova tradução católica “reconheçais e saibais”. Ainda se a ordem das palavras fosse a inversa, isto é, saibais e reconheçais…
b) – Como é desafiante este “saibais e compreendais” do texto joanino! Em que terreno é que ele nos introduz? Parece-me ser claro: introduz-nos no campo existencial que é o nosso, o do crer e compreender.
O incontornável campo da hermenêutica aí está, sugestivamente sugerido pelas palavras do Jesus joanino. Esse campo de que os diversos fundamentalismos se distanciam com passo acelerado. Com medo do quê?
João 17:20-23

Texto grego
20 Οὐ περὶ τούτων δὲ ἐρωτῶ μόνον, ἀλλὰ καὶ περὶ τῶν πιστευόντων διὰ τοῦ λόγου αὐτῶν εἰς ἐμέ,
21 ἵνα πάντες ἓν ὦσιν, καθὼς σύ, πάτερ, ἐν ἐμοὶ κἀγὼ ἐν σοί, ἵνα καὶ αὐτοὶ ἐν ἡμῖν ὦσιν, ἵνα ὁ κόσμος πιστεύῃ ὅτι σύ με ἀπέστειλας.
22 κἀγὼ τὴν δόξαν ἣν δέδωκάς μοι δέδωκα αὐτοῖς, ἵνα ὦσιν ἓν καθὼς ἡμεῖς ἕν·
23 ἐγὼ ἐν αὐτοῖς καὶ σὺ ἐν ἐμοί, ἵνα ὦσιν τετελειωμένοι εἰς ἕν, ἵνα γινώσκῃ ὁ κόσμος ὅτι σύ με ἀπέστειλας καὶ ἠγάπησας αὐτοὺς καθὼς ἐμὲ ἠγάπησας.
Nova tradução católica
20Não peço apenas por estes, mas também por aqueles que acreditam em mim, por meio da sua palavra: 21para que todos sejam um só[16]; tal como Tu, Pai, estás em mim e Eu em ti, que também eles estejam em Nós, para que o mundo acredite que Tu me enviaste. 22Eu dei-lhes a glória que Tu me deste, para que sejam um só, tal como Nós somos um só. 23Eu estou neles e Tu em mim, para que sejam consumados num só, para que o mundo saiba que Tu me enviaste e os amaste, tal como me amaste a mim.
Eu traduziria
20 Ora eu rogo não só por estes mas também pelos que, mediante a sua palavra, estão crendo em mim,
21 para que todos sejam um, tal como tu, Pai, em mim e eu em ti, para que também eles sejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste.
22 E eu a glória que me deste dei-lha a eles, para que sejam um tal como nós um;
23 eu neles e tu em mim, para que sejam levados à plenitude do um, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste tal como me amaste.
Algumas notas
1) – Surpreende-me, nesta nova tradução católica, um insólito (assim me parece) advérbio “só” acrescentado à joanina proclamação do “um”: em 3 versículos lá temos repetidos quatro vezes “um só”.
Vejo este “só” como um indesejável aposto ao “um”. O que é que se pretende com ele? Na ambiguidade que é a sua, ficamos sem saber onde se pretende pôr o acento tónico: no “um” ou no “só”?
De uma tal ambiguidade pode vir a resultar um empobrecimento do “um” proclamado por João.
E vêm-me à cabeça palavras outras que se inscrevem num universo de pensamento diferente do de João. O registo é outro. A mundividência é outra. Mas o grego forte em que essas palavras se inscrevem é também grego. Estou a pensar em Heraclito que, uns cinco séculos antes de João, também fez uma proclamação (f. 50):
“[…] ομολογειν σοφον εστιν εν παντα ειναι.”
que traduzido dá: “[…] é sábio confessar: todas as coisas são um.”
Pensemos nisto: o que daria um “só” acrescentado ao “um”?
2) – Nas últimas palavras do v. 11 deste cap.17 Jesus roga ao Pai pelos seus discípulos “para que sejam um como nós”. Agora, nos vv. 21-23, roga por aqueles que estão crendo nele mediante a palavra dos discípulos: que também eles sejam um. E em cada caso o modelo evocado por Jesus para uma tal unidade é a unidade existente entre o Pai e o Filho.
Como é óbvio, a pergunta que decorre do rogo de Jesus é esta: no que consistirá essa unidade?
3) – Particularmente os versículos 21-23, graças ao movimento ecuménico que atravessou uma boa parte do séc. XX, têm sido infalivelmente evocados (e invocados!) como uma espécie de automático slôgane quando se trata da unidade da Igreja.
Habituei-me a ouvi-los, já lá vai mais de meio século, citados por católicos, protestantes, ortodoxos, anglicanos, como o objetivo a atingir no diálogo inter-eclesial. O ecumenismo institucional (chamo assim ao ecumenismo animado pelo desejo de se atingir uma Igreja una feita de unicidade institucional) era a nota forte dos diálogos de que o horizonte era uma Igreja assim unida.
Ao exprimir-me assim, de nenhum modo estou a pôr em causa a existência da igreja como instituição. Ela não pode existir historicamente sem o ser. Compete-nos ter isso em conta quando sobre ela falamos, seja em registo católico ou protestante.
4) – O que para mim começa a ser problemático é um conceito de unidade institucional que perde de vista a dimensão da pluralidade.
5) – É por esse motivo que ao longo de todas estas décadas de diálogo inter-eclesial, quando se faziam orações para voltarmos à unidade do princípio, não podia evitar um certo sorriso interior: é que se trata de uma petição justa que se fundamenta num equívoco histórico.
Qual é o motivo por que ela é justa? Porque há justeza nessa petição.
Qual é o motivo por que ela se fundamenta num equívoco histórico? Porque se pensa que a unicidade institucional existiu, no princípio, na forma que hoje desejamos que ela tivesse existido. E não existiu assim.
6) – Durante muito tempo, nos nossos passados como Igrejas (católicos, ortodoxos, protestantes, anglicanos) vivemos o tempo do anátema recíproco. E quão fortes não foram muitos desses anátemas!
Depois, com o começo do século XX e os princípios do movimento ecuménico (que é de origem protestante: quem conhece a história sabe isso muito bem) e depois com o Concílio Vaticano II, começou-se lentamente a passar do anátema recíproco ao diálogo.
Hoje, dezenas de anos depois, uma nova passagem se impõe: a passagem do diálogo ao reconhecimento do outro.
Cada vez mais, com um cansaço feito de tédio, o palco dos dialogantes se mostra vazio e o auditório deserto.
7) – Mas voltemos a João 17:21-23. E admitamos que é da unidade da igreja que aí se trata (alguns exegetas negam-no).
Então, se admitimos isso, daí resulta uma forma de unidade sugestiva. Se a unidade dos crentes (e, consequentemente, das comunidades cristãs) tem como modelo a unidade do Pai e do Filho, então uma tal unidade implica a diversidade, pois o Pai e o Filho continuam pessoas distintas não obstante a sua unidade. E, como consequência, a diversidade denominacional das igrejas não implicaria uma rutura da unidade.
8) – Mas permitam-me dizê-lo: muito mais lamentável do que o cisma de 1054 (Igreja do Oriente / Igreja do Ocidente) e do que o cisma do séc. XVI ocorrido com a Reforma protestante, incomparavelmente mais lamentável do que esses cismas foi o cisma original (finais do séc. I), aquele que nunca devia ter existido: a separação Sinagoga / Igreja. Ou, dito com outras palavras: Judaísmo / Cristianismo.
As consequências históricas dessa separação, sabemo-lo muito bem, repercutiram-se ao longo dos séculos com as dimensões da tragédia. Uma tragédia impregnada de antissemitismo.
João 20:1-10

Texto grego
1 Τῇ δὲ μιᾷ τῶν σαββάτων Μαρία ἡ Μαγδαληνὴ ἔρχεται πρωῒ σκοτίας ἔτι οὔσης εἰς τὸ μνημεῖον καὶ βλέπει τὸν λίθον ἠρμένον ἐκ τοῦ μνημείου.
2 τρέχει οὖν καὶ ἔρχεται πρὸς Σίμωνα Πέτρον καὶ πρὸς τὸν ἄλλον μαθητὴν ὃν ἐφίλει ὁ Ἰησοῦς καὶ λέγει αὐτοῖς· ἦραν τὸν κύριον ἐκ τοῦ μνημείου καὶ οὐκ οἴδαμεν ποῦ ἔθηκαν αὐτόν.
3 Ἐξῆλθεν οὖν ὁ Πέτρος καὶ ὁ ἄλλος μαθητὴς καὶ ἤρχοντο εἰς τὸ μνημεῖον.
4 ἔτρεχον δὲ οἱ δύο ὁμοῦ· καὶ ὁ ἄλλος μαθητὴς προέδραμεν τάχιον τοῦ Πέτρου καὶ ἦλθεν πρῶτος εἰς τὸ μνημεῖον,
5 καὶ παρακύψας βλέπει κείμενα τὰ ὀθόνια, οὐ μέντοι εἰσῆλθεν.
6 ἔρχεται οὖν καὶ Σίμων Πέτρος ἀκολουθῶν αὐτῷ καὶ εἰσῆλθεν εἰς τὸ μνημεῖον, καὶ θεωρεῖ τὰ ὀθόνια κείμενα,
7 καὶ τὸ σουδάριον, ὃ ἦν ἐπὶ τῆς κεφαλῆς αὐτοῦ, οὐ μετὰ τῶν ὀθονίων κείμενον ἀλλὰ χωρὶς ἐντετυλιγμένον εἰς ἕνα τόπον.
8 τότε οὖν εἰσῆλθεν καὶ ὁ ἄλλος μαθητὴς ὁ ἐλθὼν πρῶτος εἰς τὸ μνημεῖον καὶ εἶδεν καὶ ἐπίστευσεν·
9 οὐδέπω γὰρ ᾔδεισαν τὴν γραφὴν ὅτι δεῖ αὐτὸν ἐκ νεκρῶν ἀναστῆναι.
10 ἀπῆλθον οὖν πάλιν πρὸς αὐτοὺς οἱ μαθηταί.
Nova tradução católica
1No primeiro dia da semana[1], Maria Madalena foi de manhã cedo ao sepulcro, estando ainda escuro, e viu que a pedra tinha sido retirada do sepulcro. 2Foi a correr ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, aquele de quem Jesus era amigo[2], e disse-lhes: “Tiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o puseram”. 3Pedro e o outro discípulo saíram, então, e foram ao sepulcro. 4Corriam os dois juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro. 5Debruçando-se, viu as ligaduras de linho depostas, mas não entrou[3]. 6Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguia; entrou no sepulcro e viu as ligaduras de linho depostas 7e o sudário, que estivera sobre a cabeça de Jesus, não deposto com as ligaduras de linho, mas enrolado, num lugar à parte. 8Entrou também o outro discípulo, o que tinha chegado primeiro ao sepulcro; viu e acreditou. 9De facto, ainda não tinham compreendido a Escritura: era necessário Ele ressuscitar dos mortos.10Os discípulos foram, então, novamente para junto dos seus.
Eu traduziria
1 Ora, no primeiro dia da semana, Maria, a Madalena, vem de madrugada – ainda há negrume – ao sepulcro. E vê removida a pedra do sepulcro.
2 Corre, pois, e vai ter com Simão Pedro e com o outro discípulo a quem Jesus amava e diz-lhes:
“Eles tiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o puseram”.
3 Pedro, pois, saiu e o outro discípulo: iam para o sepulcro.
4 E puseram-se a correr os dois ao mesmo tempo, mas o outro discípulo correu mais rápido do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro.
5 E inclinando-se vê, jacentes, as ligaduras de linho. Não obstante, não entrou.
6 Chega, pois, também Simão Pedro, vindo no seu encalço, e entrou no sepulcro. E observa as ligaduras de linho jacentes
7 e o lenço (que estivera sobre a cabeça dele) jacente não com as ligaduras de linho mas dobrado num lugar à parte.
8 Foi então que entrou também o outro discípulo (o primeiro chegado ao sepulcro) e discerniu e creu.
9 Com efeito, ainda não haviam discernido a Escritura: “é preciso ele ressuscitar dos mortos”.
10 Os discípulos regressaram, pois, de novo às suas casas.
Algumas notas
1) – É contestável a nota de pé de página que se pode ler invariavelmente repetida ao longo de todo o evangelho de João (ocorre 11 vezes: 5:20; 11:3,36; 12:25; 15:19; 16:27; 20:2; 21:15-17).
Com ela defende-se que se traduza o verbo φιλεω, phileo, por “ser amigo”, para o distinguir de αγαπαω, agapao, “amar”.
Não será que se quer assim distinguir aquilo que João não distingue? É que ao longo do seu evangelho ele emprega, de facto, indistintamente os dois verbos. Até em relação ao discípulo amado ele os emprega indistintamente: no v. 2 desta perícope emprega phileo, e no v. 20 do capítulo seguinte (o cap.21) emprega agapao. A tradução que se nos impõe nos dois casos, assim me parece, não deverá estar no campo lexical do “ser amigo” mas sim no do “amar”. Obediente ao por ela estabelecido (a necessidade de distinguir) esta nova tradução católica não hesita em fazer do “discípulo amado” aquele “de quem Jesus era amigo” (v. 2). Serão a mesma pessoa?
Mais à frente – quando tivermos pela frente o cap. 21 – voltarei a esta questão, ampliando o seu tratamento.
2) – No grego antigo textos há, com efeito, em que se impõe ter em conta essa possível distinção. Mas neste caso trata-se do evangelho de João, onde a sugestiva problemática do φιλεω / αγαπαω se reveste de contornos próprios.
Como acabei de dizer na nota anterior, um pouco mais à frente, quando no cap. 21 esta questão voltar a emergir (com a pergunta que Jesus faz a Pedro, repetida três vezes, “… tu amas-me …”) procurarei desenvolver este tema.
3) – Ao longo dos muitos anos em que este evangelho de João tem feito parte do meu horizonte de trabalho exegético (já traduzi nem sei quantas vezes, para consumo interno, muitas perícopes do texto deste enigmático João) quantas vezes não me tenho defrontado com este tema aqui em causa.
Tempos houve (para mim já distantes) em que o clássico ÉRÔS ET AGAPÈ. La Notion Chrétienne de l’Amour et ses Transformations, Aubier, 1952, 3 vols. (a primeira edição, sueca, data de 1930) do protestante Anders Nygren, encontrou em mim acolhimento. Não um acolhimento entusiasta, mas acolhimento. Foi importante para mim, na altura, a distinção estabelecida por Nygren entre eros e ágape. Hoje continua a ser importante, mas já não na mesma maneira. Vim tomando consciência de que Nygren terá levado longe demais essa sua distinção.
É óbvio: a problemática que nos ocupa neste caso (ágape / philia: amor / amizade) reveste-se de outros contornos mas não exclui este. É que as três noções em causa (ágape, philia, eros: amor / amizade / eros) revestem-se de uma complexidade maior do que aquela com que não poucas vezes são vistas.
4) – Se na minha leitura de João, no concernente à problemática philia / ágape (amizade / amor) me tenho afastado por um lado do protestante Nygren, tenho-me aproximado por outro lado do católico Raymond Brown. O seu notável comentário (2 vols) do evangelho de João é precioso em muitos aspectos, incluindo este. Mas mais à frente, ao abordar o cap. 21 de João, voltarei a este tema.
5) – Ao longo da minha vida, a leitura deste evangelho joanino sempre despertou em mim uma diversidade de interrogações, dada a natureza enigmática das questões que o habitam.
Que génio religioso estará por detrás daqueles textos surpreendentes?
Ele parece ter compreendido muito melhor do que nós o quanto há de problemático na demarcação de uma fronteira entre agape e philia. E constrói narrativas de onde emergem indícios de que uma tal demarcação de fronteiras pode muito bem resultar de uma ilusão. Ele emprega indistintamente um e outro termo. Para ele parece não existir uma αγαπη, ágape (amor) em estado puro, nem uma φιλια, philia (amizade) em estado puro.

Na próxima semana: segunda parte do Evangelho de João e conclusão do ensaio.
[/expander_maker]