
“Podemos confiar e apoiar-nos numa leitura literal dos textos bíblicos?” Gerard Dou, Old Woman Reading (Velha senhora a ler), pormenor, c. 1631-32. Rijksmuseum, Amesterdão.
Uma pesquisa levada a cabo pela Gallup em 2017 revela que menos de um quarto dos norte-americanos interpretam a Bíblia literalmente, sendo esta a primeira vez em quarenta anos que, os que adotam a leitura literal dos textos bíblicos, foram ultrapassados pelos que acham que a Bíblia é “um livro de fábulas, lendas, história e preceitos morais registados pelo homem”. Enquanto isso, a outra metade dos americanos – uma proporção praticamente inalterada ao longo dos anos – assume uma posição intermediária, afirmando que a Bíblia é inspirada por Deus, mas que nem tudo deve ser interpretado literalmente.
A Bíblia é o livro mais traduzido de todos os tempos, sendo normativo em matéria de fé e prática para judeus e cristãos. Na verdade, não é um livro, mas um conjunto de livros escritos em hebraico, aramaico e grego por diversos autores ao longo de aproximadamente quinze séculos. Podemos desde já afirmar que as próprias escrituras, dada a variedade de estilos literários que a compõem, impelem forçosamente para uma variedade de metodologias interpretativas. Textos escritos em forma poética devem ser interpretados de maneira diferente de textos contendo relatos históricos. O mesmo se deve dizer de livros proféticos ou apocalípticos, que remetem mais para o simbolismo, muitas vezes de interpretação difícil e obscura. Os próprios evangelhos, não sendo propriamente biografias de Jesus, carecem igualmente de preparação de leitura atendendo tanto ao seu contexto sociológico e cultural como à sua morfologia e significado do texto.
O método literal, ou histórico-gramatical como alguns o definem, procura essencialmente descobrir objetivamente a intenção do autor. Tendo em conta o contexto cultural, histórico e literário do texto, esforça-se por aceder ao significado do texto como o foi para o seu público original baseando-se na análise do estilo gramatical.
Um dos grandes limites do uso da leitura literal dos textos, além de muitas vezes assumir os mesmos como plenamente autoritários e infalíveis (segundo algumas correntes dogmáticas, as escrituras foram ditadas, ipsis verbis, pelo próprio Deus), advoga-se que os mesmos tenham significado evidente e aplicabilidade universal, algo que por vezes colide com a nossa cultura contemporânea. Será que, eticamente falando, à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos que ainda se possa advogar e aplicar a pena de morte a qualquer ser humano com base em leituras literalistas de livros do Antigo Testamento? Será ainda aceitável a imposição de uma cultura patriarcal nos dias de hoje, onde a mulher ainda é “obrigada” a submeter-se aos seus maridos e onde até o exercício de certos dons no seio da Igreja lhe sejam muitas vezes negados? Será ainda igualmente aceitável que seja negada a plena comunhão na Igreja a pessoas que se assumem com orientação sexual diferente da norma?
Posto isto, podemos então confiar e apoiar-nos numa leitura literal dos textos bíblicos? Como a poderemos ler nestes tempos pós-modernos, onde muita da cultura e ética bíblica entra em choque com a nossa? Para muitos, o que é visto como ataque à autoridade bíblica, à Palavra de Deus, poderá ser um novo ponto de partida e convite a novas e infinitas leituras. Conforme aponta José Tolentino Mendonça no seu livro A Leitura Infinita: A Bíblia e a sua Interpretação: “os comentadores judeus do Antigo Testamento estavam convictos que para cada passo da Torá existiriam 49 possibilidades de interpretação. Quarenta e nove é o resultado da multiplicação de sete por sete, e sete é o símbolo do infinito. Por isso, a própria leitura da Bíblia pressupõe sempre uma hipótese de infinito.”
Talvez, ao invés de se lerem os textos bíblicos literalmente, duma maneira rigorosa e inerrante, os devêssemos ler como Jesus o fazia, com uma hermenêutica aberta, circunstancial e que aponta primariamente para o amor. Após quase dois mil anos de cristianismo, será este o tempo oportuno para que se deixe de lado uma fé que persiste por vezes ainda numa fase infantilizada e assente em leituras rígidas dos textos bíblicos, para essa maturidade que Deus deseja que alcancemos até à sua culminação e imagem do Seu filho Jesus, que é a derradeira e perfeita Palavra de Deus.
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.