
“As obrigações dos Mandamentos são melhores guias quando os formulamos na forma afirmativa: dar vida, dar ao outro o que lhe pertence, falar a verdade, honrar, ser leal.” Pintura: Rembrandt, Dez mandamentos. Gemäldegalerie, Berlim.
A tradução da Bíblia do grego levada a cabo por Frederico Lourenço contém um interessante reparo relativamente ao termo “pecado”. De acordo com o tradutor, o termo grego significa “erro” e, do ponto de vista semântico, relaciona-se com um verbo cujo sentido literal é “falhar o alvo”.[1]
Do ponto de vista teológico, há uma clara diferença entre erro e pecado. Este último pressupõe um ato livre e esclarecido. Não havendo liberdade e consciência, não existe pecado, ainda que certa conduta dê origem a um grave sofrimento. Pecar pressupõe, assim, uma conduta dolosa através da qual a integridade do próprio, de outra pessoa ou da criação é afetada.
Para várias gerações, a catequese baseava-se na memorização dos grandes pilares do cristianismo, dos dogmas aos mandamentos. Se é verdade que essas são as premissas base que nos guiam no caminho do seguimento de Cristo, sem que se fomente uma abordagem pessoal e dialética das mesmas, esses preciosos ensinamentos correm o risco de permanecer letra morta.
Comecemos pelos Dez Mandamentos. Estes têm a virtude de balizar as interdições morais. Se pensarmos na proibição de matar, lembramo-nos imediatamente da proibição do homicídio. E ninguém contestará que não podemos matar. A pergunta que nos podemos colocar nesta sede é: de que forma é que nós tiramos vida aos outros? Há muitas formas de matar para além de pôr termo à vida biológica. Como há muitas formas de trair, mentir ou ferir a honra de alguém. Partindo desta lógica, concluímos que matamos sempre que impedimos o outro ou nós mesmos de viver em plenitude. Ao examinar a nossa consciência, em vez de nos questionarmos se matámos, no sentido do primeiro termo, poderíamos antes perguntar se fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para que nós próprios e os outros tenham vida em abundância.
As obrigações dos Mandamentos são melhores guias quando os formulamos na forma afirmativa: dar vida, dar ao outro o que lhe pertence, falar a verdade, honrar, ser leal. Em suma criar condições para que haja vida em abundância. Se nos limitarmos a pensar no estrito cumprimento das obrigações elementares estaremos, de facto, a falhar o alvo. Entendidos desta forma, os mandamentos de Deus exigem uma atitude de constante vigilância e cuidado com os nossos atos diários. Isso implica um processo de conhecimento interior, esse é o nosso primeiro dever: conhecer-nos.
Cada um, com as suas diversas circunstâncias, é tentado de formas diferentes. Todos temos as nossas feridas e pontos fracos. Conhecer-nos é o melhor remédio contra a primeira de todas as nossas tentações: o orgulho. É a recusa em reconhecer que somos falíveis e carentes que nos cega e faz cometer os maiores erros e pecados. O medo que sentimos ao constatar as nossas dificuldades, a nossa dependência dos outros leva-nos às mais diversas precipitações. Pode ser não dar determinado bem a quem nos pede, com o medo de que nos possa fazer falta no futuro; a maledicência para sermos ouvidos e admirados; a vitimização para nos desresponsabilizarmos da condução da nossa vida.
Há, contudo, um denominador comum nas grandes tentações que nos assaltam: apresentarem-se como um bem.
O nosso grande “calcanhar de Aquiles” não são as tentações de fazer algo que seja, sem sombra de dúvida errado. Tomemos um exemplo: no desafiante mundo profissional, é quase certo que seremos tanto mais admirados quantas mais horas trabalharmos. Quando, muitas vezes, a dedicação quase exclusiva ao trabalho é um escudo contra a solidão e o isolamento que nos impomos, uma tentativa de ser autossuficiente ou não pensar no que nos atormenta. Outro exemplo: um filho, pequeno ou adulto, que faça aos pais todas as vontades e nunca os contrarie é admirado pela dedicação aos pais. Muitas vezes, essa dedicação é a resposta que tentamos dar ao medo do abandono e da reprovação, à ameaça de perder esse amparo, à recusa em tornar-nos próximos mas independentes e responsáveis pela própria vida.
Jesus e os profetas deram-nos os mandamentos como quem desenha uma rosa-dos-ventos para a oferecer a um peregrino, não um conjunto de prescrições a cumprir sem critério e reflexão. Grande é a tentação de nos demitirmos de ajuizar as situações e examinar a nossa consciência com normas gerais e abstratas que reconfortam a nossa inquietação, sempre presente, acerca do que é o bem ou o mal. O caminho de procura da verdade do nosso coração, por mais dura que seja, é um ponto de partida.
Sofia Távora é jurista e voluntária no Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa do Hospital Dona Estefânia.
[1] Bíblia, volume I, Novo Testamento, 5.ª reimpressão, p 46, tradução de Frederico Lourenço