
“Na casa da minha avó havia um oratório com um Cristo profundamente sofredor”. Foto © Helena Araújo
Há dias, em conversa sobre a coroa de espinhos com que torturaram Jesus, uma amiga minha falou no seu processo pessoal de aprendizagem para recusar o sofrimento que está no cerne da Igreja Católica, “com o seu cortejo de desgraças e ameaças (listas de pecados, de sacrifícios, de boas acções registadas num caderninho para mostrar na catequese) (…). E espinhos, bastam os que nos saem ao caminho… (“não ando aqui para sofrer”, uma das minhas frases preferidas)”.
Perante as várias reacções de concordância que aquela posição mereceu, senti-me como o condutor da anedota que, ao ouvir na rádio o aviso “atenção: há um condutor em contramão na auto-estrada”, protestou: “um?! centenas deles!”
Lá vou eu em contramão…
Na casa da minha avó havia um oratório com um Cristo profundamente sofredor. Aos seis, aos dez anos, a expressão de sofrimento no seu rosto e os sinais da tortura provocavam-me muito incómodo. O diácono Remédios que sempre viveu em mim repetia uma e outra vez, pasmado e mudo: “não havia necessidade”.
Muitos anos depois, compreendi.
O livro “Óscar e a senhora cor-de-rosa”, de Eric-Emmanuel Schmitt, explica bem o sentido desta coroa de espinhos. Sofrer não é um fim em si. O sofrimento de Cristo não é um exemplo de vida, é um símbolo de união com os humanos.
Quantos divindades há por essas religiões fora que sabem por experiência própria o que sofremos? Quantas divindades sofreram na própria carne as dores profundas que dilaceram o coração e o corpo dos humanos?
Se fosse para escolher, preferiam um Deus poderoso e autoritário, um Deus alheio à empatia, ou um Deus que se fez nascer na mais extrema pobreza, que conheceu o exílio para fugir à perseguição de um rei movido por ódio assassino, que criou inimigos entre os poderosos e os instalados porque estava sempre do lado dos excluídos e dos que sofrem, e que acabou por morrer depois de terríveis torturas? Um Deus exterior e superior a nós, ou um Deus que sabe bem o que custa a vida dos humanos, porque sofreu tudo isso na própria pele?

“…é esse Deus que, mesmo do alto da sua cruz – um pedestal, de certo modo -, se encontra ao nível do mais miserável dos humanos”. Foto © Helena Araújo
É justamente a coroa de espinhos que nos permite entender melhor o que significa “Emanuel – Deus connosco”: é esse Deus que, mesmo do alto da sua cruz – um pedestal, de certo modo -, se encontra ao nível do mais miserável dos humanos. O Emanuel não é uma visita de cerimónia que recebemos no salão, é o pobre que, com alguma sorte, encontra abrigo num canto da cozinha, como no conto da Sophia.
Olhando para a coroa de espinhos por outra perspectiva, a das representações da flagelação de Jesus, não é na coroa de espinhos que reparo, mas na maldade de quem a põe na cabeça do prisioneiro. Lucas Cranach, entre muitos outros, cria nesses quadros expressões de bruta perfídia, plenas de actualidade. São os rostos que me ocorrem quando vejo turbas de hienas a atacar alguém nas redes sociais. Também já o fiz algumas vezes – e com vergonha o confesso: conheço o prazer de (metaforicamente falando) espetar espinhos na cabeça de alguém. Nesta perspectiva, a coroa de espinhos na cabeça de Jesus não é uma apologia do sofrimento, mas um espelho que nos interpela: quantos destes espinhos foram postos por ti na cabeça dos pobres, dos doentes, dos famintos, dos sem-abrigo, dos sem pátria? Quantos destes espinhos são postos na cabeça dos mais frágeis para permitir manter o contexto de vantagem geográfica e social em que nasceste?
Hesito agora entre partilhar algumas imagens dos flageladores de Cristo, ou do Cristo do oratório da minha avó. Escolho o Cristo da minha avó, porque imagens da maldade da turba é algo que infelizmente conhecemos todos, em vários estilos e representações.
Helena Araújo vive em Berlim e é autora do blogue 2 Dedos de Conversa, onde este texto foi publicado inicialmente.